O que desejamos tratar neste breve arrazoado é um tema de eminente repercussão prática aos advogados, bem como de interesse àqueles que irão prestar o exame de ordem, por ser questão passível de englobar diversos problemas concretos e serem trazidos pelas perguntas sob a forma de casos hipotéticos. Trataremos da possibilidade de o advogado atuar contra um ex cliente, ou seja, contra alguém que em um momento pretérito foi cliente seu e por quem atuou em favor.
Como sabemos a advocacia recebeu posição de proeminência, desde o labor do constituinte originário, na medida em que foi erigida à categoria de indispensável à função jurisdicional do Estado, tendo o próprio constituinte previsto, no art. 133 da Constituição, imunidade material ao advogado, pelos atos e manifestações que realizar no exercício da profissão. As prerrogativas profissionais dos advogados são tratadas, em especial, nos arts. 6º e 7º da lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB - EAOAB). As chamadas imunidades, de cunho penal, figuram no parágrafo 2º, do art. 7º, estabelecendo a incidência da imunidade profissional para os atos praticados no exercício da profissão e que, fora dela, viessem a configurar injúria, difamação ou desacato.1
A preocupação do constituinte originário em elevar a advocacia à tamanha relevância, bem como a atenção outorgada pelo legislador infraconstitucional ao tratar minuciosamente a temática das prerrogativas e imunidades profissionais do advogado decorrem, como é cediço, não de qualquer tipo de privilégio à advocacia. Ao contrário, as prerrogativas profissionais configuram autênticos instrumentos para o bom exercício da atividade profissional e, por conseguinte, são garantias aos próprios cidadãos jurisdicionados.
Em atenção ao relevante papel exercido pela advocacia e a imprescindibilidade para a solução pacífica dos conflitos sociais, com ou sem a intervenção direta do Poder Judiciário, fato é que emanam daí, também, diversas exigências de cunho deontológico e ético ao advogado no exercício de sua profissão e, em específico para o que nos importa neste artigo, nas relações que mantêm com seus clientes.
A disciplina das relações entre advogado e cliente é trazida dos arts. 9º ao 26 do Código de Ética e Disciplina da OAB (CED), onde localizaremos os dispositivos que tratam de duas hipóteses de relevo para o tema tratado: a) o conflito entre clientes de um mesmo advogado (art. 20 do CED); b) a advocacia contra um ex-cliente (art. 21 do CED). Tratemos, portanto, dos temas respectivos.
I - A base da relação entre advogado e cliente
As relações entre advogado e cliente fundam-se, primordialmente, na confiança recíproca entre as partes. A confiança é elemento intrínseco da relação, conforme art. 10 do CED. Para o bom desenvolvimento da relação profissional mostra-se essencial a existência de confiança do cliente para com o advogado e, não podemos negar que boa parte desta confiança decorre da própria natureza do serviço profissional prestado pelo advogado, o qual além de eminentemente técnico, é, por dever, absolutamente sigiloso.
Tudo aquilo que o cliente revelar ao advogado e que, portanto, este tome conhecimento em razão do exercício da profissão, estará abarcado pelo sigilo profissional, independentemente de previsão contratual. O sigilo decorre da própria índole da atividade profissional do advogado, tratando-se de cláusula indisponível (art. 35 do CED).
Daí porque encontraremos infrações éticas disciplinares que, na essência, são simplesmente hipóteses específicas de ruptura de confiança, como por exemplo as infrações previstas nos incisos IX, XX e XXI do art. 34 do EAOAB. Vejamos julgado da lavra do Conselho Federal da OAB, no que atine ao tema da confiança entre advogado e cliente:
RECURSO 49.0000.2012.001773-1/SCA-TTU. Recte.: V.S.B. (Advs.: Andrey Cavalcante OAB/RO 303-B e OAB/AC 3501 e Outros). Recdos.: Conselho Seccional da OAB/Rondônia e M.G.F. (Advs.: Roberto Vieira OAB/RO 742 e Outro). Relator: Conselheiro Federal Leonardo Accioly da Silva (PE). EMENTA 072/2012/SCA-TTU. Nas relações do causídico com o cliente o elemento mais importante é a confiança. O advogado, na medida em que patrocina demandas contrárias ao dirigente de uma empresa para quem presta assessoria jurídica, quebra, intencionalmente, tal vínculo, sendo desimportante a ausência de coincidência entre as partes na ação judicial. Configurada a infração prevista no inc. I do art. 34 do EAOAB e art. 20 do CED. Recurso parcialmente provido, apenas para converter a pena de censura em advertência em ofício reservado, sem registro nos assentamentos do recorrente, em razão da observância da atenuante da primariedade, nos termos do art. 36, parágrafo único do EAOAB. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros da Terceira Turma da Segunda Câmara do CFOAB, por unanimidade, em conhecer do recurso e dar-lhe provimento parcial, nos termos do voto do relator, que integra o presente. Brasília, 17 de abril de 2012. Renato da Costa Figueira, Presidente em exercício. Leonardo Accioly da Silva, Relator. (DOU. 16/5/12, S. 1, p. 117)
Da confiança, que é autêntico elemento do contrato entre cliente e advogado, surge a expectativa concreta de que o advogado atue sempre no melhor interesse de seu constituinte. De certo que, se surgir conflito ou mesmo interesses antagônicos entre dois clientes do mesmo advogado ou sociedade de advogados, o trabalho do advogado ficará comprometido. Como poderá o advogado despender a melhor técnica em prol de um constituinte, quando outro de seus constituintes colide com o mesmo interesse?
Daí porque, na hipótese de sobrevir conflitos entre clientes do mesmo advogado, não sendo possível harmonizá-los, constitui dever do advogado optar por um dos mandatos e renunciar ao outro. Não há escolha. Se o advogado permanecer representando ambos os clientes e interesses conflitantes, praticará infração ética, violando diretamente o art. 20 do CED, que assim estatui:
Art. 20. Sobrevindo conflitos de interesse entre seus constituintes e não conseguindo o advogado harmonizá-los, caber-lhe-á optar, com prudência e discrição, por um dos mandatos, renunciando aos demais, resguardado sempre o sigilo profissional.
Desse modo, existindo interesses conflitantes entre clientes do advogado e, que se mostrem inconciliáveis, deverá o causídico optar por um dos mandatos, renunciando aos demais.
O sigilo profissional deverá ser preservado, uma vez que decorrente da própria atividade do advogado.
A importância do conteúdo do presente dispositivo é tamanha que é objeto de tutela penal a conduta do advogado que patrocina simultaneamente partes contrárias na mesma causa, praticando o crime de patrocínio infiel, previsto no parágrafo único do art. 355 do Código Penal (CP). É o exemplo da popularmente chamada prática da “casadinha”, em que o advogado pratica ato de tergiversação por meio do patrocínio simultâneo de ambas as partes e a simulação de litígio judicial que possui por finalidade a fraude a lei. Vejamos:
EMENTA: ADVOGADOS E DEFESA DE INTERESSES ANTAGÔNICOS E CONFLITANTES DE SEUS CONSTITUINTES. FATOS NÃO PROVADOS. IMPROCEDÊNCIA DA REPRESENTAÇÃO. Não estando provada nos autos, de forma clara e objetiva, a existência do patrocínio em juízo de clientes com interesses conflitantes e antagônicos, não há como se condenar os advogados representados por infringência aos incisos IX e XXV, do artigo 34, da lei 8.906/94 e por violação aos artigos 17 e 18, do Código de Ética da Advocacia, impondo-se a sua absolvição.
Vistos, relatados e examinados estes autos do processo disciplinar no 0006/10 – Jaboticabal, acordam os membros da Oitava Turma Disciplinar do Tribunal de Ética e Disciplina, por unanimidade, nos termos do voto do Relator, em julgar improcedente a representação e determinar o arquivamento dos autos.
Sala das Sessões, 26 de outubro de 2012. Rel. Dr. Nilson Bélvio Camargo Pompeu - Presidente Dr. Edgar Francisco Nori.
Assim sendo, o colega que se deparar com interesses inconciliáveis entre si, entre dois de seus clientes deverá, em respeito ao art. 20 do CED, renunciar a um dos mandatos, optando por um dos clientes, o qual continuará representando. O que ocorrerá, no entanto, se o advogado receber uma demanda que envolve a atuação contra aquele que outrora foi seu constituinte? É o que passaremos a expor no próximo item.
II - Da advocacia contra ex-cliente
Ao patrocinar interesses voltados contra ex clientes ou ex empregadores, exige o art. 21 do CED que se resguarde o sigilo profissional. O que o dispositivo ora em comento impõe é que o advogado não faça uso de informações privilegiadas, que tenha recebido em razão da função de advogado exercida em favor do cliente anterior. Vejamos a redação do dispositivo ora em comento:
Art. 21. O advogado, ao postular em nome de terceiros, contra ex-cliente ou ex-empregador, judicial e extrajudicialmente, deve resguardar o sigilo profissional.
Isto é, não pode o advogado utilizar de informação obtida em razão de suas funções contra o seu próprio ex cliente. O sigilo da relação e das informações recebidas é não só um direito (inciso XIX do art. 7º do EOAB), como um dever do advogado imposto pela norma deontológica e que decorre da própria natureza da relação mantida entre advogado e cliente, que é baseada na confiança recíproca. O advogado não pode, portanto, fazer uso das informações que recebeu de cliente antigo pela advocacia exercida anteriormente, para patrocinar interesse contra este mesmo ex cliente.
Para a limitação envolvendo as informações recebidas quando da atuação em favor do ex cliente, bem como na mesma causa em que atuou, o advogado deverá preservar o sigilo sem limite de tempo. Poderá, contudo, advogar contra ex cliente em causas posteriores que não tenham qualquer relação com os assuntos pelos quais tratou outrora com seu ex cliente.
O ponto crucial aqui é, basicamente, o de que, ao advogar contra ex-cliente, o advogado não se valha de qualquer informação que tenha recebido em razão do trabalho advocatício outrora exercido para este ex-cliente. Não havendo nexo causal entre o serviço atual e o anterior, bem como, preservando-se o sigilo profissional, será hígida a atuação do advogado contra o ex-cliente.
Sabemos que há discussão jurisprudencial nos Tribunais de Ética e Disciplina de diversas Seccionais da OAB quanto à necessidade de decurso de prazo mínimo entre o encerramento das atividades para um cliente para que se possa advogar contra ele. A parcela jurisprudencial que assim entende, costuma fixá-lo em dois anos.
Em nosso entendimento, contudo, a questão do prazo é inócua. O que está em jogo aqui é o respeito ao sigilo profissional. Este não decai com o tempo, não passa a ser disponível pelo advogado com o decurso cronológico, devendo ser respeitado ad aeternum pelo causídico, ressalvadas as hipóteses de justa causa para violação do sigilo profissional, consoante art. 37 do CED. Sendo a questão atinente ao sigilo profissional, o que se mostra crucial não é o transcurso de um prazo qualquer - como, por exemplo, o prazo de dois anos que ora se menciona - mas sim a preservação do sigilo. Isto é, o que importa é que entre o trabalho atualmente desenvolvido contra um ex-cliente e o que o fora despendido no passado em favor deste inexista nexo causal de modo a que alguma informação obtida por ocasião e em razão da advocacia prestada ao ex-cliente sirva agora de subsídio contra o mesmo. Este é o ponto que importa e, isto, independentemente do tempo transcorrido.
Neste sentido, por exemplo, o TED da OAB/SP já decidiu:
EMENTA: Exercício Profissional. Advocacia contra ex-cliente. Limites éticos. Possibilidade – A advocacia contra antigo cliente somente é possível em causas diferentes das que patrocinou e, além disso, se não houver necessidade ou risco de uso de qualquer dado revestido pelo sigilo profissional e, ainda, se inexistir o risco de vantagens ilegítimas, decorrentes da Advocacia anteriormente exercida em favor do antigo cliente, independentemente do lapso temporal decorrido. As ações diversas não poderão ter qualquer relação fática ou jurídica com aquelas em que tenha atuado, nem tampouco conexão, entendida esta em sentido amplo. Não há impedimento ético quanto à possibilidade de o advogado patrocinar causas contra ex- cliente ou ex- empregador, desde que sejam com fundamentos jurídicos diversos das que havia patrocinado a favor dos mesmos. Obedecidos esses limites éticos, não é necessário aguardar qualquer prazo para advogar contra ex-cliente. Precedentes: E- 4.098/2012, E-4.020/2011, E- 3.982/2011, E- 3.866/2010, E-3. 918/2010 E E- 4.109/2012. Proc. E-m 4.187/2012, v.m., em 22/11/2012, do parecer e ementa do julgador dr. Flávio Pereira Lima, vencido o rel. dr. Fábio de Souza Ramacciotti, com declaração de voto parcialmente divergente do ver. Dr. Luiz Antônio Gambelli, presidente dr. Carlos José Santos da Silva. - Grifo nosso**
Na seara do Direito Eleitoral, para exemplificar, é muito comum que o advogado atue, simultaneamente para um partido político e para os seus candidatos, os quais, a princípio, possuem interesses consentâneos, nada impedindo a atuação conjunta, portanto. Pode ocorrer que, no curso do mandato, todavia, o candidato - agora eleito - e o partido político pelo qual se elegeu - até então, ambos clientes do mesmo advogado - conflitem. Nesta hipótese, caso seja impossível a harmonização do conflito, vimos que, consoante disposto pelo art. 20 do CED, a postura a ser adotada pelo advogado será a renúncia a um dos mandatos. Deverá o advogado, neste caso exemplificativo renunciar ou ao mandato do candidato ou ao mandato do partido político e permanecer atuando para o outro normalmente.
Supondo, neste mesmo exemplo, que o advogado opte por advogar pelo candidato eleito. Nesta hipótese, bastará que, nos conflitos estabelecidos contra o partido político - seu ex-cliente- preserve o sigilo profissional e, atue normalmente, desde que no conflito concreto tratado não interfira qualquer informação obtida em virtude da advocacia prestada preteritamente ao ex-cliente.
III - Considerações finais
Colocadas as presentes questões, que revelam situação hodierna no dia a dia da advocacia, caberá ao advogado, zelosamente, verificar eventuais situações das quais emane conflito entre dois ou mais de seus constituintes. Concluindo pela existência de uma situação deste jaez, caberá ao advogado analisar se é possível a harmonização dos interesses. Não sendo viável esta solução, o advogado terá o dever de renunciar a um dos mandatos e permanecer atuando apenas para um dos clientes, seguindo a inteligência do art. 20 do CED.
Por fim, no que tange à advocacia contra ex-cliente, cientes das posições jurisprudenciais divergentes, para nós parece bastante claro que não procede a exigência de aguardar o transcurso temporal - seja ele qual for - para advocacia contra ex-cliente. O que importa, nesta situação é a preservação do sigilo profissional, aferível mediante o exame de nexo causal entre o trabalho desenvolvido contra o ex-cliente e as informações que obteve no exercício e em razão da advocacia prestada ao ex-cliente. Inexistindo nexo causal e havendo preservação do sigilo, não há qualquer óbice à atuação contra ex-cliente.
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1 Devendo-se destacar, apenas quanto ao desacato, o fato de que o STF, por ocasião do julgamento da ADI 1.127-8 ter declarado a sua inconstitucionalidade. Deste modo, a imunidade penal do advogado incide tão somente para os crimes de injúria e difamação.
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*Alvaro de Azevedo Gonzaga é livre-docente em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-doutor pela faculdades de Direito da Universidade Clássica de Lisboa e pela Universidade de Coimbra. Doutor, mestre e graduado em Direito pela PUC-SP. Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da PUC-SP, tanto na graduação em Direito, como na pós graduação stricto sensu.
*Roberto Beijato Junior é mestre e doutorando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor titular da Escola Paulista de Direito (EPD), tanto na graduação quanto nos cursos de pós graduação (lato sensu) em direito penal e processual penal. Na mesma faculdade exerce o cargo de Coordenador do curso de Graduação em Direito. Autor e co-autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito, em especial sua Teoria Ontológica do Direito, publicada pela editora Lumen Juris.