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Negócio processual e aplicação no direito cível e empresarial

É fundamental que as empresas se atentem às possibilidades que se descortinam com os negócios processuais, bem como às oportunidades deles decorrentes.

27/11/2019

O CPC/15 instituiu os negócios jurídicos processuais, passando a possibilitar às partes regulamentar atos processuais dentro e fora do processo, o que refletiu diretamente na liberdade de contratar. O CPC nada mais fez que introduzir ao ordenamento jurídico processual o princípio da autonomia da vontade, destacando a autocomposição e permitindo que efeitos processuais sejam ajustados antes ou no curso do processo.

Os negócios processuais não foram exatamente uma novidade, já que o antigo CPC estabelecia a possibilidade de negócios processuais típicos, tais como a escolha do foro judicial aplicável à relação, convenção de arbitragem, desistência do recurso após sua interposição, convenção para suspensão do processo ou para adiamento de audiência, entre outros. O que se trouxe, como importante novidade, é a possibilidade de convencionar negócios processuais atípicos, o que significa em última análise que no campo processual será a possível a negociação, desde que em conformidade com o previsto no artigo 190 do CPC:

Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

Note-se, portanto, que o artigo permite a negociação entre as partes desde que estas sejam capazes e que verse sobre direitos que admitam autocomposição. Esse ponto difere da arbitragem no sentido de que esta apenas pode versar sobre direitos disponíveis, enquanto os negócios processuais podem tratar tanto de direitos disponíveis como indisponíveis, desde que sejam passíveis de autocomposição1

Os ajustes sobre regras procedimentais ajustadas pelas partes devem observar os limites legais, ou seja, as convenções referentes não poderão ser contrárias à lei ou aos princípios que norteiam o processo, tais como contraditório, ampla defesa, imparcialidade do juiz e publicidade do processo. Por exemplo, as partes não poderão permitir a produção de provas ilícitas, dispensar a intervenção do Ministério Público nas hipóteses cabíveis, dispensar a fundamentação da decisão ou criar um recurso novo. Não podem ampliar o procedimento ou mitigar princípios, mas podem excluir alguns atos conforme seu interesse, ou seja, mitigar aqueles que sejam desnecessários para a satisfatória resolução da questão perante o Judiciário.

Quando se fala em negócios jurídicos processuais voltados para a área empresarial, certamente o grande destaque é a possibilidade de tornar eventuais discussões mais rápidas e efetivas, de forma a evitar prolongamentos desnecessários que gerem prejuízos financeiros às partes. Como mecanismos para garantir esta rapidez podemos citar como exemplos a inserção de cláusulas contratuais relativas à limitação de provas, renúncia ao direito recursal, acordo de rateio das despesas, estabelecimento de bens que serão objeto de penhora para cumprimento da obrigação, dentre outras.

Ainda neste sentido, o CPC trouxe, também, a possibilidade de se estabelecer um cronograma próprio, conforme previsto no artigo 191:

Art. 191. De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.

§ 1º O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados.

§ 2º Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário.

 

Este modelo já é bastante utilizado nas arbitragens em que, embora haja previsão de prazos nos regulamentos das câmaras de arbitragem, as partes, juntamente com os árbitros, podem celebrar um cronograma em que fixam os prazos para apresentação das peças processuais e outros temas relativos à discussão.

A possibilidade de utilização de medidas anteriormente aplicáveis apenas na arbitragem resulta em evidente potencial para flexibilização do processo judicial e consequente redução de custo e tempo.

No caso mencionado abaixo, o Tribunal de Justiça de São Paulo acatou o ajuste contratual no sentido de possibilitar a penhora e arresto de bens antes da citação da parte inadimplente:

Agravo de instrumento – Execução de título extrajudicial - Instrumento particular de confissão de dívida - Cláusula contratual que prevê, em caso de novo inadimplemento, a possibilidade de penhora e arresto de bens antes mesmo da citação – Indeferimento da pretensão na origem, sob fundamento de inconstitucionalidade do art. 190 do CPC – Descabimento – A partir do advento do novo CPC, é possível às partes celebrarem negócio jurídico processual, amoldando as normas processuais de acordo com os seus interesses - Negócio jurídico celebrado entre partes plenamente capazes – Medidas constritivas autorizadas, fixando-se, todavia, a penhora de recebíveis de cartões de crédito e de ativos financeiros a 15% dos valores que vierem a ser encontrados, até quitação integral da dívida, para não inviabilizar a continuidade das atividades da empresa - Decisão reformada - Recurso parcialmente provido. (TJ/SP 20020876520188260000 SP 2002087-65.2018.8.26.0000, Relator: Sergio Gomes, Data de Julgamento: 17/04/2018, 37ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/04/2018) – grifos nossos

Como se vê, o referido instituto privilegia a autonomia da vontade, possibilitando às partes uma participação mais efetiva não só nos provimentos jurisdicionais, mas principalmente na própria estruturação do procedimento, adequando-o às peculiaridades da sua relação contratual, razão pela qual sua utilização deve ser melhor explorada no âmbito do direito empresarial e societário.

Assim, cabe às partes, no momento de estabelecimento da relação contratual, avaliar, com base em experiências anteriores, quais são as recorrentes dificuldades enfrentadas em disputas judiciais e então estabelecer regras processuais que possam lhes beneficiar ou, ao menos, tornar a disputa mais célere e menos onerosa.

E, se a utilização do negócio processual desde a vigência do atual CPC ainda estava tímida, certamente poderá ser incrementada a partir da publicação da lei da liberdade econômica (lei 13.874/19).

Essa lei, entre outras regras que visam garantir a proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, trouxe alterações significativas relativas à interpretação contratual e prevalência da autonomia da vontade. Dentre essas, destaca-se a alteração do art. 421 e inserção do art. 421-A no CC com as seguintes previsões:

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.

Esses recentes dispositivos legais colocam a autonomia da vontade em destaque e prevalência, estabelecendo que os contratos privados poderão, além de estabelecer critérios para sua interpretação, indicar pressupostos para sua revisão ou resolução, bem como que a revisão contratual passa a ser exceção e não regra, determinando ao Poder Judiciário promover a mínima intervenção possível.

Portanto, conciliando a permissão do CPC para estabelecimento em contrato de regras processuais aplicáveis à eventual disputa judicial e o reforço trazido pela Lei da Liberdade Econômica quanto à prevalência perante os Tribunais Pátrios da autonomia da vontade, reforça-se a ideia de efetividade dos negócios processuais perante o Judiciário. Cabe somente às partes o exercício desse direito, sendo que eventuais ajustes correlatos que extrapolem dos limites legais serão declarados nulos pelo Poder Judiciário, sem acarretar qualquer sanção referente e, em contrapartida, aqueles que forem acatados, certamente trarão benefícios, garantindo uma melhor prestação jurisdicional.

Assim sendo, é fundamental que as empresas se atentem às possibilidades que se descortinam com os negócios processuais, bem como às oportunidades deles decorrentes.

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1 - Como exemplo tem-se o direito a alimentos que se trata de um direito indisponível, na medida em que é irrenunciável, e, por isso, não pode ser submetido à arbitragem, mas pode ter seu valor, vencimento e forma de satisfação acordados entre as partes.

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*Juliana Joppert Lopes é advogada do escritório Gaia Silva Gaede Advogados, em Curitiba.

*Ludmila Knop Hauer é advogada do escritório Gaia Silva Gaede Advogados, em Curitiba.

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