Estima-se que cerca de oito mil usuários do Facebook faleçam diariamente1. Naturalmente, essas pessoas deixam para trás um legado digital registrado em cada uma das redes sociais das quais era usuário. E o que fazer com esse verdadeiro rastro virtual?
Muitas problemáticas advêm desse questionamento: a família teria direito a acessar os perfis sociais dos falecidos? O Direito Sucessório poderia disciplinar essa transferência? A privacidade do falecido não estará sendo devassada, mesmo que perante seus próprios familiares? E a privacidade dos terceiros que se comunicaram privativamente com o extinto através da plataforma digital visada? Quem passa a ser titular daqueles dados enquanto ativo economicamente tangível, se não os transferirmos para outrem? Temos mais interesse em proteger tais dados considerados enquanto direitos patrimoniais ou direitos da personalidade? São tantos os questionamentos e complexidades que não há, até então, uma resposta amplamente aceita pela comunidade jurídica global.
Em 2005, o militar estadunidense Karl Linn foi morto em combate no Iraque, – durante seu tempo distante, a maneira que o mesmo encontrava de se comunicar com familiares e conhecidos era através de uma plataforma digital chamada “mailbank.com” – razão pela qual seus familiares requereram acesso à conta de usuário do referido site, sem sucesso: o provedor em questão priorizou a privacidade do seu consumidor, negando acesso aos familiares2.
Casos análogos se amontoam no histórico recente de toda e qualquer rede social que resguarde informações de seus usuários, e, assim, tais plataformas vão desenvolvendo suas próprias políticas para lidar com a situação. Por exemplo, o Facebook, que já se deparou com a referida situação inúmeras vezes, concedeu acesso limitado aos pais de um adolescente que se suicidou em 2011 cerca de um ano após o infeliz evento3. Hoje em dia o Facebook disponibiliza as seguintes opções na sua plataforma: pode-se optar pela transformação de conta em memorial, indicando-se um contato herdeiro para administrá-la, bem como é possível optar pela exclusão da conta no evento do óbito do usuário4. Cabe ao usuário escolher.
Quando os interessados nas informações do falecido não se contentam com a resposta dada pelos provedores a situação pode ser judicializada, obrigando os tribunais ao redor do planeta a darem solução para a questão. No Brasil, em 2013, a Justiça do Mato Grosso do Sul determinou que o Facebook removesse a página de uma jovem falecida, haja vista pleito de sua mãe neste sentido. Segundo a notícia veiculada no G1, a mãe da jovem afirmou que a página da falecida no Facebook havia virado um muro de lamentações, e que “Ver tudo isso é muito doloroso pra mim e também para os amigos e para a família. Ela morreu e precisa ficar em paz, precisa se desligar desse mundo”5.
Em 2018, após anos de litígio, a Suprema Corte Alemã garantiu aos pais de uma adolescente que faleceu, morta por um trem, o direito de acessar a conta do Facebook da filha. O principal interesse era descobrir se o óbito se tratou de um suicídio ou de um acidente, inclusive sob o argumento de que, caso se tratasse de um suicídio, o motorista do trem teria direito a uma compensação6.
A Suprema Corte Alemã se alicerçou no § 1922 do Código Civil Alemão, o qual determina o princípio da sucessão universal, garantindo que os direitos e deveres oriundos da relação contratual entre usuário e rede social são passados para os herdeiros, sejam eles da ordem patrimonial ou pessoal7, dando, portanto, uma solução com base no Direito Sucessório.
O caso é especialmente interessante, pois o julgamento se deu após a legislação de proteção de dados europeia, a General Data Protection Regulation (GDPR), encontrar-se pronta e acabada. O GDPR possui uma gama de “Recitais”, os quais detalham, pormenorizam e até interpretam o regulamento, sendo que no Recital 27 está expressa a exclusão da aplicação do GDPR aos dados pessoais de pessoas falecidas8.
No entanto, o caso alemão teria sido facilmente resolvido justamente mediante aplicação do GDPR pela extensão do artigo 6º, §1º, alínea f9 do GDPR10 às pessoas já falecidas, o qual estabelece o legítimo interesse como justificativa para tratamento de dados – que poderia muito facilmente se traduzir na necessidade da família ou de quem de direito, de acordo com o caso analisado, de tutelar os dados do de cujus. Ademais, a disposição também se adianta em salvaguardar a hipótese de o legítimo interesse violar direitos fundamentais do falecido titular dos dados, não franqueando, portanto, irrestrito controle ao legítimo interessado sobre os dados em questão.
A Lei Geral de Proteção de Dados Brasileira (LGPD), lei federal 13.709/18 (que passará a vigorar em agosto de 2020), tem disposição correspondente no artigo 7º, inciso IX, que também trata do legítimo interesse e a ressalva perante a violação do direito do titular de dados11.
Assim, nos parece que o instituto do legítimo interesse do tratamento de dados pode oferecer uma saída para o problema no Brasil, haja vista não haver disposição expressa que impeça a aplicação da LGPD aos dados pessoais de quem já veio a óbito. Dependeremos de como a Autoridade Nacional de Proteção de Dados e o Poder Judiciário interpretarão o referido dispositivo. A mais nítida vantagem do uso do referido instituto é justamente manter a proteção e tutela dos nossos legados digitais sob a seara do direito à privacidade e proteção de dados ao invés de relegá-lo ao Direito Sucessório, que sobremaneira prioriza a transferência dos dados aos herdeiros em detrimento do direito do real titular das informações.
Contudo, o Brasil tem mostrado certa tendência legislativa de regulamentar a questão com base no Direito Sucessório, em termos similares à solução dada pela mais alta Corte Alemã, a exemplo dos projetos de lei 4.847/12, 4.099/12 e 1.331/15, os quais tramitaram no Congresso Nacional, mas foram arquivados. Este último, por exemplo, propôs que o cônjuge, ascendentes e descendentes fossem partes legítimas para exigir a exclusão dos dados pessoais do extinto.
Não nos parece a melhor opção, dado que, conforme Lívia Teixeira Leal elucida brilhantemente “a garantia de tutela post mortem dos direitos da personalidade do de cujus, considerando-se o aspecto objetivo da personalidade, pode se operar inclusive em face dos familiares”12. Assim, franquear a decisão exclusivamente aos familiares pode acabar por não concretizar um direito de disposição dos dados que é personalíssimo do de cujus.
O tema é profundamente complexo e comporta ulteriores debates e aprofundamentos para elaboração de uma solução: muito provavelmente veremos o seu desenvolvimento legislativo, doutrinário e jurisprudencial de forma mais intensa nos próximos tempos.
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1 About 8,000 Facebook users die daily, is your digital will ready? Khaleej Times, 29 de janeiro de 2019. Technology. Disponível em: clique aqui. Acesso em 12 de novembro de 2019.
2 CHA, Ariana Eunjung. Families of military dead fight for digital memories. The Seattle Times, 05 de junho de 2005. Disponível em: clique aqui. Acesso em 12 de novembro de 2019.
3 BOYLE, Louise. Grieving parentes battle Facebook for access to 15-year-old son’s profile after he committed suicide. The Daily Mail, 19 de fevereiro de 2013. Disponível em: clique aqui. Acesso em 12 de novembro de 2019.
4 CENTRAL de Ajuda. Facebook. Disponível em: clique aqui. Acesso em 12 de novembro de 2019.
5 QUEIROZ, Tatiane. Mãe pede na Justiça que Facebook exclua perfil de filha morta em MS. G1, 26 de abril de 2013. Disponível em: clique aqui. Acesso em 12 de novembro de 2019.
6 Facebook ruling: German court grants parentes rights to dead daughter`s account. BBC News, 12 de julho de 2018. Europe. Disponível em clique aqui. Acesso em 12 de novembro de 2019
7 Patti, Francesco Paolo e Bartolini, Francesca, Digital Inheritance and Post Mortem Data Protection: The Italian Reform (January 13, 2019). European Review of Private Law (ERPL), Forthcoming; Bocconi Legal Studies Research Paper No. 3397974, June 2019. Disponível em . Acesso em 12 de novembro de 2019.
8 Europa. General Data Protection Regulation. Recital 27. “Esse Regulamento não se aplica aos dados pessoais de pessoas falecidas. Estados Membros podem prover regras a respeito do processamento de dados pessoais de pessoas falecidas”. Tradução nossa.
9 Europa. General Data Protection Regulation. Disponível em: <_https3a_ _gdpr-info.eu2f_="">. Acesso em 12 de novembro de 2019. Tradução nossa.
10 Patti, Francesco Paolo e Bartolini, Francesca, op. cit.
11 Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:
(...) IX - quando necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro, exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais;
12 LEAL, Livia Teixeira. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCilvil, Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018.
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*Alberto Talma Catão Quirino é advogado do escritório Alves, Duarte e Advogados.