Migalhas de Peso

O twitter e a Constituição

Sendo impossível separar a figura do Presidente da República daquela do simples cidadão, as normas constitucionais e de direito público acabam prevalecendo, impondo tratamento isonômico a todos aqueles que interagem com o agente público.

11/11/2019

Redes sociais são ferramentas presentes no cotidiano das pessoas. O extenso alcance e a enorme agilidade na divulgação de conteúdo tornaram esses instrumentos populares, a ponto de pessoas públicas e autoridades passarem a utilizá-los para divulgar os mais diversos acontecimentos e as mais variadas opiniões.

Muito embora pareçam normais, a utilização de redes sociais por autoridades desperta interessantes discussões de natureza jurídica. A questão ganhou destaque quando o presidente da República, utilizando sua conta oficial no Twitter, optou por bloquear alguns seguidores que expressaram opiniões contrárias à sua política. Dentre esses seguidores estava o jornalista William de Luca, que impetrou mandado de segurança no STF, pleiteando por seu desbloqueio.

A medida adotada pelo seguidor, inédita do Brasil, trouxe à tona discussão jurídica muito interessante: ao utilizar redes sociais para divulgar informações, pode um presidente da República bloquear seguidores, sem ferir os princípios basilares da administração pública, da liberdade de expressão e da democracia?

A controvérsia ilustra bem como a internet e as novidades que a acompanham desafiam paradigmas tradicionais do direito. Nesse caso específico, a dúvida se volta diretamente sobre a tradicional divisão entre a esfera pública e a privada. Por um lado, as redes sociais correspondem a manifestação da autonomia da vontade do indivíduo, que pode livremente escolher com quem se comunica. Por outro, a utilização desse canal por autoridade, e para divulgar informações oficiais, torna a situação mais complexa, conferindo margem para a aplicação de princípios que regem a Administração, tais como a imparcialidade e a impessoalidade.

Apesar de recente, a questão já foi alvo de discussão na justiça americana, quando o presidente Donald Trump, também utilizando seu twitter oficial, bloqueou seguidores que expressaram opiniões contrárias às suas. Na ocasião, a United States Court of Appeals for the Second Circuit of New York entendeu que a atitude adotada pelo presidente viola a liberdade de expressão de seus seguidores, prevista na Primeira Emenda da Constituição dos EUA e determinou o desbloqueio dos seguidores.

No entendimento da Corte Americana, Donald Trump, ao fazer uso público de seu Twitter, concede à plataforma um caráter oficial, retirando seu caráter privado. Sua conta, portanto, passa a ser vista como conta oficial do governo norte-americano, e suas declarações adquirem a conotação de pronunciamento oficial. Nesse ponto, bloquear usuário de conta oficial acarretaria ofensa à liberdade de expressão e caracterizaria até mesmo eventual censura.

No cenário brasileiro, bloqueios realizados por figuras políticas se tornaram comuns. O próprio presidente Jair Bolsonaro, quando na função de presidente eleito em 2018, já havia bloqueado uma série de jornalistas que se posicionaram contra suas declarações. Outros políticos e membros da administração pública também adotaram condutas similares.

Não se discute aqui a simples possibilidade de bloqueio de pessoas em redes sociais privadas. O usuário comum, que não exerce função pública, ou que a exerce, mas não utiliza as redes sociais como canal de comunicação oficial, detém total gerência sobre sua rede, e pode escolher quem poderá ou não ter acesso às suas publicações.

A situação é diferente, entretanto, em relação às redes oficiais do presidente da República ou de quaisquer outros políticos no exercício da função. Em que pese o caráter privado da rede, seus respectivos titulares estão sujeitos aos princípios e regras aplicáveis à Administração Pública, destacando-se os princípios da impessoalidade e imparcialidade. Sob essa perspectiva, o presidente da República simplesmente não pode bloquear determinado usuário com fundamento em divergências de natureza política. É necessário que exista base legal para tanto, ou seja, que o usuário tenha violado disposição normativa ao se expressar.

A impossibilidade de bloqueio se torna ainda mais clara, considerando-se que os fatos ocorridos se relacionam diretamente à liberdade de expressão. Tamanha a importância dessa garantia constitucional, que chega a ser possível afirmar que ela possui maior relevância do que a grande maioria dos direitos resguardados na Constituição da República. Eventual restrição à liberdade de expressão – tal como o bloqueio no Twitter – apenas pode ocorrer em situações altamente excepcionais, e não por mera divergência de natureza política.

A internet definitivamente alterou as relações humanas em muitos aspectos. Ao aproximar o público do privado, a rede de computadores cria desafios jurídicos, trazendo questões nunca enfrentadas. Sendo impossível separar a figura do presidente da República daquela do simples cidadão, as normas constitucionais e de direito público acabam prevalecendo, impondo tratamento isonômico a todos aqueles que interagem com o agente público.

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*Renato Duarte é advogado do escritório Cascione Pulino Boulos Advogados.

*Júlia Citrangulo é advogada do escritório Cascione Pulino Boulos Advogados.

 

 

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