Extrai-se da leitura dos arts. 1º, caput, II e III e 3º, I, III e IV, ambos, da Carta Magna, que a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a promoção da igualdade material foram definidas pelo constituinte originário como norte a ser observado em todas as ações desempenhadas pelos Poderes da República, constituindo pilares do próprio Estado Democrático de Direito.
Não é por acaso que os referidos vetores também constituem a base de atuação da Defensoria Pública, já que, segundo o art. 3º-A, I, II e III, da LC 80/94, representam objetivos dessa instituição a primazia da dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais, a afirmação do Estado Democrático de Direito e a prevalência e efetividade dos direitos humanos.
Do cotejo entre a Lei Orgânica da Defensoria1 e a Constituição da República constata-se, sem margem de dúvidas, que a instituição defensorial foi incumbida pelo legislador de tutelar, judicial e extrajudicialmente, a cidadania e a dignidade da pessoa humana de um expressivo número de brasileiros (expostos a diversas situações de vulnerabilidade), assegurando que esses sujeitos de direito, que até então participavam apenas da vida política do Estado (por meio do exercício do direito ao voto), deixem de ser meros espectadores da vida jurídica estatal e possam fazer-se representar, exigindo o respeito a direitos individuais e coletivos reconhecidos pela CF (igualdade material).
É justamente nesse ponto que reside a importância da Defensoria Pública como agente protagonista no papel de democratizar o acesso da população assistida às políticas públicas e ao sistema de Justiça no Brasil, (i) viabilizando a educação em direitos por meio de ações institucionais e dos atendimentos nos núcleos defensoriais2, (ii) garantindo efetiva representatividade dos necessitados perante órgãos públicos3, (iii) viabilizando a prestação jurisdicional em favor de pessoas que, em virtude de situação de vulnerabilidade, foram alijadas desse direito fundamental por décadas e (iv) promovendo, ao fim e ao cabo, a redução das desigualdades sociais, objetivo comum à Defensoria Pública4 e à República Federativa do Brasil5.
Sobre o tema, confira-se trecho de elucidativo voto prolatado pelo ministro Relator Herman Benjamin nos autos do AgInt no REsp 1.573.481/PE6, no qual Sua Excelência ressalta a relevância da defensoria no cenário político-jurídico pós Constituição Cidadã:
A rigor, mormente em países de grande desigualdade social, em que a largas parcelas da população – aos pobres sobretudo – nega-se acesso efetivo ao Judiciário, como ocorre infelizmente no Brasil, seria impróprio falar em verdadeiro Estado de Direito sem a existência de uma Defensoria Pública nacionalmente organizada, conhecida de todos e por todos respeitada, capaz de atender aos necessitados da maneira mais profissional e eficaz possível.
Dissertando sobre o assunto, Marinoni afirma que7, “[...] o direito de acesso à Justiça não é apenas necessário para viabilizar a tutela dos demais direitos, como imprescindível para uma organização justa e democrática. Não há democracia em um Estado incapaz de garantir o acesso à Justiça”.
Corroborando referida argumentação, tem-se que o Pretório Excelso, nos autos da ADIn 3.943, concluiu pela constitucionalidade do ajuizamento de ações civis públicas por parte da Defensoria e, em voto proferido pela relatora min. Carmen Lúcia, reconheceu a importância dessa instituição na construção de um Estado Democrático de Direito8.
A Defensoria Pública caracteriza-se, portanto, como verdadeira amiga da democracia (amicus democratiae9), instituição aberta à sociedade civil (oxigenada pela participação popular por meio de audiências públicas10 e da atuação de membro não integrante da carreira no Conselho Superior11) e constitucionalmente vocacionada a promover, em um Estado como o brasileiro - historicamente marcado pela inobservância dos direitos fundamentais de considerável parcela da população -, a igualdade material entre os cidadãos por meio do integral acesso dos assistidos ao Sistema de Justiça e aos demais órgãos competentes, estando habilitada, inclusive, a se pronunciar formalmente durante processo legislativo de norma que possa repercutir na população necessitada (teoria dos poderes implícitos).
E por pessoas necessitadas não se compreendem somente aquelas hipossuficientes, mas, sim, toda a população vulnerável definida de acordo com o art. 4º, XI, da LC 80/94 e com as regras de Brasília sobre acesso à Justiça das pessoas em condição de Vulnerabilidade12.
No mesmo sentido, a Corte Especial do STJ, no julgamento do EREsp 1.192.577/RS13, concluiu, em precedente relatado pela ministra Laurita Vaz, que:
A expressão “necessitados” (art. 134, caput, da Constituição), que qualifica, orienta e enobrece a atuação da Defensoria Pública, deve ser entendida, no campo da Ação Civil Pública, em sentido amplo, de modo a incluir, ao lado dos estritamente carentes de recursos financeiros – os miseráveis e pobres –, os hipervulneráveis (isto é, os socialmente estigmatizados ou excluídos, as crianças, os idosos, as gerações futuras) (...)
De rigor, deve ser reconhecida a legitimidade da atuação individual e coletiva da Defensoria Pública em prol dos direitos humanos14, dos hipossuficientes15 e dos hipervulneráveis (vulneráveis etários, organizacionais, físicos, mentais e sensoriais, indígenas, por migração e por privação de liberdade), ou seja, de todos aqueles cidadãos individual e coletivamente considerados nas mencionadas regras de Brasília, sob pena de descaracterizar a mens legis que fez surgir a própria instituição defensorial e incidir em patente inconstitucionalidade diante do que prescreve o art. 134, caput, da CF/88, dispositivo que confere à Defensoria a nobre função de ser “expressão e instrumento do regime democrático”.
Resta, pois, demonstrado que a atuação da Defensoria Pública em prol dos direitos humanos e da população brasileira necessitada (hipossuficientes e hipervulneráveis) constitui a própria razão da existência da instituição, que é a de garantir voz a esse contingente de cidadãos excluídos do Sistema de Justiça e negligenciado por políticas públicas que, em muitas das vezes, não se revelam aptas a assegurar a concretização dos direitos fundamentais mais comezinhos.
Ponto que merece destaque e que retrata o papel democratizador da Defensoria Pública no Sistema de Justiça se deu no julgamento do HC coletivo 143.64116 (inicialmente impetrado pelo coletivo de advogados de Direitos Humanos), em que a Suprema Corte, embora não tenha utilizado expressamente o termo custos vulnerabilis, admitiu o ingresso da Defensoria Pública do Estado do Ceará nos autos do writ reconhecendo sua legitimidade para atuar como “[...] Procuratura Constitucional dos Necessitados”17.
No curso do citado feito, a DPU terminou por se habilitar nos autos e figurar no polo ativo do remédio constitucional, tendo o órgão de cúpula do Poder Judiciário reconhecido a Defensoria Pública como guardiã dos vulneráveis e autorizado a instituição, de sponte propria, a ingressar em demanda que envolva discussão de direitos dessa população, garantindo-lhes representatividade e reais condições de êxito em um litígio judicial.
Referido entendimento vem sendo acolhido por Tribunais pátrios, tendo o Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, em aresto proferido no corrente ano18, concluído pela legitimidade da Defensoria Pública Estadual para, em nome próprio, intervir como custos vulnerabilis e interpor recurso em processo no qual não figurava como parte, impugnando decisão desfavorável à população vulnerável que litigava em ação possessória multitudinária.
No mesmo sentido, a 2ª seção do STJ admitiu o ingresso da DPU como custos vulnerabilis no recurso repetitivo em que foi fixada a tese de que as operadoras de planos de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA19.
Na mesma toada, o TRF da 4ª Região, em processo que tratava de reintegração de posse de terra indígena, admitiu o ingresso da DPU como custos vulnerabilis dos indígenas20.
Ainda no tocante a esse tema, faz-se necessário registrar brilhante precedente do TJ/AM que, em sede de revisão criminal (na qual o sentenciado estava representado por advogado), determinou a intimação do defensor Público-Geral do Estado para, na condição de custos vulnerabilis, apresentar, com esteio no art. 81-A da LEP, no art. 4º, XI, da LC 80/94 e no art. 134 da CF/88, parecer sobre o caso concreto de acordo com “sua posição institucional na defesa dos direitos humanos dos vulneráveis”21.
Na referida decisão (mantida em julgamento de agravo pelas Câmaras Reunidas do Tribunal de Justiça22), o eminente Relator Des. Anselmo Chíxaro concluiu que a legitimidade institucional da Defensoria Pública para atuar como custos vulnerabilis guarda relação com o seu papel de amicus democratiae e visa (i) “amplificar a democracia processual”, (ii) contribuir na formação dos precedentes em todas as instâncias (efetivando a paridade de armas entre Estado acusação e Estado defesa), bem como (iii) contrabalançar o doping processual existente na seara criminal “porque ao Ministério Público, não raras vezes, é dado influenciar na formação da jurisprudência por duas vezes em cada instância – como custos legis e dominus litis”.
Constata-se que, além de tutelar os interesses da população assistida, a intervenção da Defensoria como fiscal dos vulneráveis visa aperfeiçoar a prestação jurisdicional (por meio do diálogo institucional), fato que inexoravelmente irá refletir na redução da taxa de recorribilidade.
Demonstrada a nobre missão atribuída pela CF à Defensoria Pública, torna-se de fácil dedução a existência i) de um grande volume de demandas represadas em um país como o Brasil (dotado de sociedade plural e historicamente caracterizada pela desigualdade) e ii) de uma população dotada de um sentimento de não pertencimento ao Estado Democrático de Direito insculpido na Carta Magna.
E foi justamente com o objetivo de sanar esse déficit de representatividade que a Defensoria Pública foi reforçada pelo legislador constituinte derivado por meio das EC’s de 45/04, 74/13 e 80/14, diplomas que outorgaram à instituição garantias necessárias ao fiel desempenho do seu mister, que consiste em, por meio de profissionais especializados em identificar as demandas individuais e coletivas da população vulnerável, oportunizar aos cidadãos necessitados o direito a ter direitos efetivos e materializar uma República que seja de fato inclusiva (e igualitária), já que de nada adianta haver a previsão de um extenso rol de direitos fundamentais na Constituição sem que haja mecanismos para efetivá-los.
Esse movimento legislativo de fortalecimento da Defensoria Pública vai ao encontro do disposto nas Resoluções de 2.887/16 e 2.928/18 editadas pela OEA23 e no Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos divulgado no ano de 201824, documentos que prescrevem aos países membros o compromisso de fortalecer essa instituição pública.
Releva consignar, contudo, que apesar de previstos constitucionalmente, os direitos de representatividade e de acesso gratuito à ordem jurídica justa25(e a uma série de outros direitos fundamentais, por via de consequência) continuam obstados a considerável parcela da população vulnerável do Brasil, sendo premente a necessidade de reversão do status quo, já que somente com uma Defensoria Pública dotada de verba orçamentária suficiente, capaz de garantir sua presença (e estrutura com servidores da área meio) em todas as Comarcas e Subseções Judiciárias, será possível à instituição desempenhar o seu papel constitucional na construção de uma sociedade mais justa, solidária e democrática.
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1 - LC n. 80/94
2 - Art. 4º, III, da LC n. 80/94
3 - Art. 4º, XX e § 2°, da LC n. 80/94
4 - Art. 3º-A, I, da LC n. 80/94
5 - Art. 3º, III, da CF/88
6 - AgInt no REsp 1573481/PE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 27/05/2016
7 - MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006. P. 462-463.
8 - A quem interessaria restringir ou limitar, aos parcos instrumentos da processualística civil, a tutela dos hipossuficientes (tônica dos direitos difusos e individuais homogêneos do consumidor, portadores de necessidades especiais e dos idosos)? A quem interessaria limitar os instrumentos e as vias assecuratórias de direitos reconhecidos na própria Constituição em favor dos desassistidos que padecem tantas limitações? Por que apenas a Defensoria Pública deveria ser excluída do rol do art. 5º da Lei n. 7.347/1985?
A ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que compõem o sistema constitucional de Estado Democrático de Direito.
ADI 3943, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-154 DIVULG 05-08-2015
9 - Expressão cunhada por Jorge Bheron Rocha. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-10/cobrar-tornozeleira-inconstitucional-defensoria-ce. Acesso em 08 de outubro de 2019
10 - Art. 4º, XXII, da LC n. 80/94
11 - Art. 105-B, caput, da LC n. 80/94
12 - Disponível em https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf. Acesso em 08 de outubro de 2019. P. 5-6.
13 - EREsp 1192577/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, CORTE ESPECIAL, julgado em 21/10/2015, DJe 13/11/2015
14 - Art. 134, caput, da CF/88
15 - Art. 5º, LXXIV, da CF/88
16 - HC 143641, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 20/02/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-215 DIVULG 08-10-2018
17 - Tribunais admitem legitimidade da Defensoria como custos vulnerabilis.
18 - TJ-AM - AI: 40023350920188040000 AM 4002335-09.2018.8.04.0000, Relator: Paulo César Caminha e Lima, Data de Julgamento: 11/03/2019, Primeira Câmara Cível
19 - EDcl no REsp 1.712.163/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, julgado em 25/09/2019
20 - Tribunais admitem legitimidade da Defensoria como custos vulnerabilis.
21 - Processo n. 4000881-57.2019.8.04.0000. Despacho datado de 09/05/2019
22 - TJ-AM - AGR: 00036978020198040000 AM 0003697-80.2019.8.04.0000, Relator: Anselmo Chíxaro, Data de Julgamento: 25/09/2019, Câmaras Reunidas
23 - #DefensoriaSim: OEA aprova nova resolução para a autonomia e fortalecimento da Defensoria Pública.
24 - Disponível em https://www.dpu.def.br/noticias-institucional/233-slideshow/47709-relatorio-da-cidh-pede-fortalecimento-da-defensoria-publica-da-uniao Acesso em 08 de outubro de 2019
25 - Art. 5º, XXXV, da CF/88
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*Rodrigo Casimiro Reis é defensor Público do Estado do Maranhão e especialista em Direito Constitucional pela Unisul.