O Supremo Tribunal Federal tem entendido ser admissível como prova a gravação unilateral de conversas realizada por um dos interlocutores, para que possa se defender em processo crime.
Desde o julgamento do RE583937 com repercussão geral, fixou o Supremo Tribunal Federal entendimento em considerar lícita a prova constituída de gravação produzida de forma unilateral por um dos participantes da conversação, sem que seu interlocutor tenha conhecimento, para ser utilizada na defesa de seus direitos em processo crime. Firmou-se desde então a tese, de que nesses casos não existe violação a intimidade protegida pela carta cidadã.
O art. 5º, inc. X, da Constituição da República, claramente define a inviolabilidade da intimidade, ou seja, a regra continua sendo que as gravações unilaterais de conversas são ilícitas, pois são violadoras da intimidade protegida pela CF, excetuando-se apenas em casos de realizar-se a gravação para defender-se em procedimento criminal, continuando neste caso sendo a prova clandestina mais não ilícita.
Ocorre, que diferente das gravações ambientais autorizadas pelo Poder Judiciário, que são submetidas a regras e controles para a sua obtenção, a gravação ambiental clandestina não se sujeita a qualquer controle, podendo-se haver em seu conteúdo, desde o induzimento das conversações, como alteração do contexto por meio de edições.
Inexiste na gravação colhida clandestinamente qualquer controle de captação. Sendo a cadeia de custódia à observância a protocolos de procedimentos destinados a garantir a originalidade e autenticidade, documentando toda a ordem cronológica da gravação que poderá vir a servir como prova. Já nas gravações clandestinas esta cadeia de custódia que certificaria a origem e modo de produção do vestígio não existe, criando-se assim uma lacuna no controle de elementos que poderão ter elevado valor processual.
Em razão da gravação clandestina não possuir uma cadeia de custódia, mesmo assim, mantem-se a obrigação do Estado no dever de preservação da integridade probatória da fonte de prova, que há de ser observado desde o momento da colheita do elemento probatório, até a sua eventual valoração. O que no caso das gravações clandestinas realizadas por um dos interlocutores, faz-se impossível saber como se produziu e manteve-se o áudio até a entrega ás autoridades.
A realização de ciladas para gravar um interlocutor, induzindo a dinâmica das conversações, configuraria evidente flagrante preparado e crime impossível, refutando-se tal prática, conforme entendimento expresso no enunciado sumular 145 do Supremo Tribunal Federal. Porém, ainda sim, é subjetiva a análise de tais circunstâncias, pois se depende da apreciação e valoração do julgador caso a caso, para que se defina ser ou não caso de flagrante preparado.
A gravação produzida unilateralmente de forma clandestina, portanto, deve ser vista com reservas quanto a seu teor probatório, em razão da ausência de controle prévio a sua produção, não podendo seu destinatário auferir em quais condições ou ânimos a mesma foi produzida.
Muitas vezes, a gravação clandestina é a única evidência do cometimento de um suposto delito, principalmente quando analisamos a prática de delitos formais ou de mera conduta, onde nem sempre se identifica lesão efetiva a bem jurídico (exaurimento), restando todo vestígio da prática do delito em muitos casos, produzida unilateralmente de forma clandestina, podendo ser tomado como exemplo a prática do delito de corrupção passiva pelo verbo solicitar, fazendo com que nesses casos seja possível que uma gravação unilateral clandestina seja a única comprovação da realização da conduta ilícita.1
Certamente, concorda-se quanto a possibilidade de defender-se em processo crime por meio da produção de gravação clandestina, todavia, diante da ausência de qualquer acompanhamento na produção deste tipo de gravação, a mesma pode constituir-se ilegítima e inidônea, em razão de sua motivação, ou ainda, ser produto de edição posterior com alteração no contexto das falas.
Portanto, quando iniciamos a análise da prova produzida unilateralmente por meio de gravação ambiental, devemos sempre colocar sobre análise ao menos duas situações, para que possamos considerar a sua licitude, sendo a primeira questão; saber quem produziu a prova; seu interesse na apresentação dos fatos; sua relação com o denunciado, e em segundo lugar, deve-se analisar a integridade da prova; a autenticidade dos diálogos; se houve edição no material colhido, etc.
A análise moral da evidência não pode se desprender da análise jurídica, sendo o direito espécie do gênero moral, não se faz possível a contraposição entre ambos, pois havendo negativa moral não se pode admitir a vinculação ao direito, pois nesse caso estaríamos aceitando a tese de que a espécie poderia alterar a natureza do gênero, o que não é possível, nos ensina Ricardo Terra em análise a Kant “a moral deve ser entendida como gênero, sendo a ética e o direito espécies. Assim observa-se a necessária classificação do direito da mesma forma que ética, como parte da filosofia moral de Kant, não como um conceito diverso, como, por exemplo, separado da teoria moral, e fundamentado como um imperativo sustentado empiricamente.”2
A primeira questão colocada em análise diz respeito ao elemento subjetivo ou psicológico, elemento este que antecede a gravação, fazendo referência ao aspecto moral e ético, o ânimo na sua constituição, os interesses daquele que a produz, não devendo o direito aceitar e validar ações imorais pautadas em interesses egoísticos, como aquele que sendo inimigo ou opositor cria situação para prejudicar seu desafeto. Com efeito, a prova imoral não pode ser considerada lícita, comportando-se o Estado como homologador de interesses pessoais obscuros. Nunca devendo a gravação clandestina ser considerada como forma de apontar fato delituoso atribuído a terceiro, mas somente como elemento defensivo, evitando-se assim a formação de vontades espúrias, utilizando-se o Estado para punir um desafeto.
O Tribunal Superior Eleitoral tem se manifestado em considerar ilícita a gravação ambiental realizada por opositor político, realiza gravação clandestina de suposta prática de crime eleitoral, pois no caso, segundo o Tribunal, a prova não é obtida para defesa em processo crime conforme é aceita pelo STF, mais trata-se de violação a intimidade no intuito de prejudicar opositor, o que faz com que a prova seja ilícita “[...] AIME. Corrupção eleitoral. Gravação ambiental. Prova ilícita. Omissão. Existência. Acolhimento. Efeitos infringentes. Atribuição. 1. A teor da jurisprudência desta Corte Superior, a gravação ambiental somente é viável mediante autorização judicial e quando utilizada como prova em investigação criminal ou processo penal, sendo a proteção à privacidade direito fundamental estabelecido na Constituição Federal a regra. 2. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos infringentes, para dar provimento ao recurso especial.3
O Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 834897 DF, da lavra do ministro Celso de Mello, também se manifesta no sentido de serem inadmissíveis as provas produzidas por opositor sem o conhecimento do interlocutor, reafirmando a necessidade de que se faça juízo acerca da conduta ética daquele que produz a prova em seu benefício, “Como se percebe, o tema ora em análise consiste em saber se a prova testemunhal produzida em juízo mediante gravação ambiental clandestina já considerada ilícita pelo Tribunal Regional (...) Destaco, de início, que não desconheço o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no sentido da licitude da prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores, desde que não haja causa legal de sigilo, tampouco de reserva da conversação, e, sobretudo, quando usada para defesa própria. Ou seja, potencializa-se o direito de defesa do acusado em todas as suas possibilidades (...) Entretanto, vale destacar que, no presente caso, as gravações foram produzidas diretamente pelos adversários políticos dos recorrentes, clandestinamente, sem a ciência dos eleitores(...) Tenho, pois, que a análise da prova em tela, a meu ver, deve ocorrer sob a ótica das nuances que envolvem o processo eleitoral, no qual as acirradas disputas pelo poder dão ensejo a condutas apaixonadas que extrapolam, muitas vezes, o limite da ética e da legalidade.
Neste contexto, a prova obtida por meio de gravação unilateral clandestina, deve inicialmente ser depurada pelo crivo moral e ético, para que se possa avaliar as condições subjetivas antecedentes a captação, evitando assim que se venha a validar provas inidôneas obtidas com a intenção de causar dano a adversário, em beneficio daquele que cria todas as circunstâncias para produzir o embuste.
Sendo apurado o elemento subjetivo, relativo as circunstâncias que antecedem a realização da gravação clandestina, passa-se a análise do elemento objetivo ou material, que é a captação de conversação por meio de equipamento eletrônico, digital ou analógico com a capacidade de armazenar áudio, sendo imperiosa a realização de perícia na gravação captada, principalmente para que se verifique a veracidade e autenticidade do material, como preceitua o art. 158 do Código de Processo Penal, principalmente quando se trata de prova de autoria de crimes que dispensam o exaurimento para a sua configuração, “Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.
Em muitos casos, geralmente a gravação unilateral é a única evidência da prática do delito, assim sendo, é imperiosa a realização de pericia técnica para que possa conferir a autenticidade dos relatos contidos na gravação, sendo esta imposição legal que gera nulidade absoluta em sua ausência, não podendo nem mesmo ser suprida pela confissão dos fatos pelo interlocutor gravado clandestinamente.
No caso de gravações unilaterais clandestinas, que se apresentam como único meio de prova de autoria, mostra-se evidente a necessidade da realização de exame técnico para que se possa certificar a autenticidade das gravações, aliás, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a nulidade decorrente da falta de realização do exame de corpo de delito Ocorre quando não existam outros elementos de prova de autoria, o que vincularia ao Estado a obrigatoriedade de avaliação técnica da prova clandestina que solitariamente imputa a prática de delito.4
Assim, ao analisar todos os aspectos relacionados a idoneidade e veracidade da prova produzida de forma unilateral por um dos interlocutores, conclui-se que deve-se ter maior cuidado com a prova produzida em ambiente sem qualquer tipo de controle estatal, principalmente em razão das circunstâncias pessoais que podem interferir na produção da prova, vindo a ser o interlocutor gravado vítima de possível induzimento, razão pela qual sustento que não se deve admitir a prova produzida por inimigo ou opositor no intuito de imputar fato ilícito, em razão da contaminação prévia do ânimo daquele que a produz.
Do mais, assevera a necessidade de que todas as gravações unilaterais clandestinas sejam submetidas a perícia técnica para a averiguação de sua autenticidade, pois é prova produzida em ambiente não controlado e sob a violação da garantia constitucional da intimidade, devendo, portanto, ser submetida a maior rigor analítico para que possa ser admitida como prova em juízo.
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1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v. IX. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
2 TERRA, Ricardo. “A distinção entre direito e ética na filosofia kantiana”, in: Revista de filosofia política V. IV. 1987.
3 Ac. de 24/6/14 no ED-REspe 54178, rel. Min. Luciana Lóssio.
4 HC 74.265/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão.
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*Sidney Duran é advogado.