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Criminalização da advocacia deve ser repudiada pela sociedade

Resgatando as lições de Ruy Barbosa, reafirma-se que todas as tentativas de criminalizar a advocacia merecem o repúdio veemente de toda a comunidade jurídica, pois essas atitudes são antidemocráticas e importam em violações ao texto constitucional.

30/10/2019

O julgamento das ADC (43, 44 e 54) sobre o início do cumprimento da pena antes de serem esgotadas todas as possibilidades de recurso evidenciou o aparecimento de diferentes tipos de discursos na sociedade. A saber, a extrapolação da função contramajoritária das Cortes Constitucionais, em cenários específicos, nos quais circunstâncias externas podem ter paralisado o processo político majoritário, o Tribunal Constitucional poderia assumir a função de assegurar direitos e conquistas sociais; fatores extrajurídicos que têm a potencialidade de relacionar-se ao decision making, tais como a expressão de certos grupos sociais a respeito de um tema do qual mantenham interesse comum, junto com a atuação da mídia na publicidade mediata do processo.

Sublinha-se, da mesma forma, alguns juízos de valor expressados na mídia e nas redes sociais que podem, em certa medida, provocar a criminalização do exercício da advocacia, quando se observam expressões, como, por exemplo, “advogados de bandidos”, cumplicidade entre advogados e juízes, confraternização, entre outras. Discursos que, em seu íntimo, associam-se à tentativa de criação de um estigma no concernente à atividade de um múnus público que objetiva assegurar, para todos os cidadãos brasileiros, as garantias constitucionais do processo e, por consequência, reafirmar os sustentáculos do Estado Democrático de Direito.

Surge com isso uma tendência que busca promover a mudança no sentido do exercício da advocacia, especialmente a criminal, na tentativa, diga-se inadequada, de afastar o compromisso com o dever de justiça e a confiabilidade do profissional da advocacia, associando-o aos tipos penais que estão sendo discutidos em um determinado processo, objetivando, dessa forma, vincular a função social desempenhada pelos advogados e assegurada pela CF a questões relacionadas à sentimento de impunidade.

Explique-se que o objetivo deste texto não é discutir o mérito das ADC, tampouco os votos dos ministros do STF divulgados até o presente momento, ou ainda as diferentes percepções que a sociedade apresenta acerca da temática. Igualmente, esclarece-se, desde já, que este advogado que vos escreve não atua na área criminal, nem nos múltiplos reflexos do direito penal, todavia preocupa-se permanentemente com a liberdade do exercício da advocacia no Brasil, origem e direção desta coluna.

Para tanto, é suficientemente adequada a menção à correspondência entre Ruy Barbosa e Evaristo de Morais, verdadeira lição de ética profissional, datada do início do século XX, na qual o segundo buscou orientação do primeiro, frente a um caso concreto de homicídio por adultério que chocou a sociedade da época e envolvia personalidade de campo político oposto dos correspondentes, especialmente se deveria aceitar a defesa do sujeito perante o Judiciário.

Sobre o contexto político daquele momento histórico, explique-se a divisão na campanha presidencial de 1910 entre hermistas (liderados pelo Marechal Hermes da Fonseca e no qual estava inserido o potencial cliente de Evaristo de Morais) e civilistas (liderados por Ruy Barbosa), enquanto tentativa de alterar a forma de atuação política da República Velha (1889-1930).

Nesse sentido, Evaristo de Morais questiona Ruy Barbosa “(i) devo, por ser o acusado, nosso adversário, desistir da defesa iniciada?; (ii) prosseguindo nela, sem a menor quebra dos laços que me prendem à bandeira do civilismo, cometo uma incorreção partidária?”. De forma magistral, Ruy Barbosa esclarece o papel da advocacia em situações como esta e o objetivo da defesa do acusado, ao mesmo tempo que consigna o entendimento de que o direito de defesa é amplo e irrestrito, aspectos que sempre devem ser lembrados, para que se afaste qualquer tipo de movimento que tencione a criminalização da advocacia.

A advocacia, nesse contexto, surge como a “voz do direito no meio da paixão pública”, com a missão sagrada de não concordar que a indignação se transforme em desumanidade e a pena jurídica em extermínio cruel, reivindicando o cumprimento das garantias legais, equidade, imparcialidade e humanidade, resistindo, pois “à impaciência dos ânimos exacerbados, que não tolera a serenidade das formas judiciais”, “trabalhando para que não faleça ao seu constituinte uma só dessas garantias da legalidade”.

Apresenta-se atual, desse modo, o comentário do professor Edward Christian sobre o tratado “Commentaries on the laws of England” de William Blackstone, de acordo com o qual “por mais atrozes que sejam as circunstâncias contra um réu, ao advogado sempre incumbe o dever de atentar por que o seu cliente não seja condenado senão de acordo com as regras e formas, cuja observância a sabedoria legislativa estabeleceu como titulares da liberdade e segurança individual”.

Assim, evidencia-se a perspectiva de que o advogado não é somente procurador da parte, mas colaborador do sistema de justiça nacional, da forma como a Constituição de 1988 estabeleceu a advocacia enquanto indispensável à administração da Justiça, de maneira que a liberdade de exercício profissional associa-se diretamente à garantia de valores democráticos, tais como ampla defesa, devido processo legal e contraditório a todos os cidadãos brasileiros, não sendo adequado, por isso, responsabilizá-lo moralmente por eventual ato praticado pela parte.

Dessa forma, Ruy Barbosa destaca que a defesa, por mais detestável que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a acusação, a defesa não quer a apologia da culpa, ou do culpado, mas sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente, ou criminoso, a voz dos seus direitos legais, se tornando, por isso, obrigatória e adequada ao arcabouço axiológico de um Estado Constitucional de Direito, não se admitindo a confusão entre justiça e vingança, a fim de que não se sacrifique o império da lei.

Por tudo isto o direito de defesa é amplo e irrestrito ou nas palavras de Ruy Barbosa “ninguém, por mais bárbaros que sejam os seus atos, decai do abrigo da legalidade”, assim, não há cidadão ou causa que seja “indigno de defesa”, ou seja, na função social desempenhada pelo advogado não comporta-se a recusa da defesa de um acusado, independentemente do delito que seja imputado, o que leva a conclusão do jurista “nem por isso, todavia, a assistência do advogado, na espécie, é de menos necessidade, ou o seu papel menos nobre”.

Logo, resgatando as lições de Ruy Barbosa, reafirma-se que todas as tentativas de criminalizar a advocacia merecem o repúdio veemente de toda a comunidade jurídica, pois essas atitudes são antidemocráticas e importam em violações ao texto constitucional, porque o advogado no exercício do seu mister concretiza o direito de defesa garantido indistintamente pela Constituição a todos os cidadãos brasileiros, devendo serem afastadas afirmações que contrariam os próprios valores do Estado Democrático de Direito, ressaltando que tais declarações não atingem somente os advogados e as advogas, mas também os objetivos institucionais intimamente vinculados à própria noção de um regime político democrático, significa dizer, pois, que tentar criminalizar a advocacia é posicionar-se contrariamente a própria democracia.

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*Wilson Sales Belchior é sócio-diretor do escritório Rocha, Marinho E Sales Advogados.

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