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Repercussões do art. 36 da lei 13.869/19 na efetividade da execução trabalhista

O dispositivo em questão traz a possibilidade de ameaça à atuação jurisdicional no que pertine à tentativa de satisfação do crédito trabalhista por meio do bloqueio de dinheiro pelo sistema BacenJud ou outra forma similar de constrição judicial de ativos financeiros.

2/10/2019

O crédito trabalhista é dotado de natureza social, pois possui inarredável escopo de assegurar a progressiva e ininterrupta dignidade do trabalhador ao tutelar um patrimônio social mínimo inerente à subsistência e às necessidades básicas vitais daquele que exerce seu labor (art. 1º, III c/c art. 6º e 7º da CF e convenção 95 da OIT).

Sob tal prisma, referido crédito, ante seu caráter alimentar, é superprivilegiado (art.186 do CTN), prevalecendo sobre quaisquer outros, o que vai ao encontro do princípio protetor que embala e norteia o Direito do Trabalho.

Nesse encalço, com o avanço da sociedade, o procedimento de execução, como medida coercitiva, passou a seguir o princípio da humanização na busca do patrimônio do devedor a fim de satisfazer o crédito do exequente.

Nesse sentido, na execução, a suscetibilidade do patrimônio a suportá-la pode advir tanto dos bens do devedor principal quanto do devedor subsidiário e dos sócios da pessoa jurídica devedora com a desconsideração da personalidade jurídica e aplicação da teoria menor.

Embora essa suscetibilidade seja a medida para assegurar o pagamento do credor, em grande parte dos casos o trabalhador não recebe seu crédito ou demora a recebê-lo, o que vilipendia seus direitos fundamentais à razoável duração do processo e à sua própria dignidade enquanto merecedor de tal garantia.

Isso nos conduz a uma reflexão similar à do jusfilósofo italiano Norberto Bobbio em sua obra "A Era dos Direitos" para quem “(...) o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje não é tanto justificá-los, mas protegê-los”. Ou seja, o ordenamento jurídico tem medidas que visam assegurar o crédito obreiro, mas a proteção que se dá, bem como as regras para assegurá-lo carecem de efetividade ante as contumazes e criativas formas de inadimplência.

Nessa quadratura, os direitos de acesso à justiça e à ordem jurídica justa, conquanto sejam garantias fundamentais (art. 5º, XXXV, da CF), ainda não são exercidos em suas inteirezas, mormente em razão da “cultura de resistência às ordens judiciais” em nosso país, em que o executado, muitas vezes, tenta resistir ferrenhamente a cumprir o comando sentencial transitado em julgado, empregando toda sua diligência no sentido de ocultar o seu patrimônio e fraudar a execução trabalhista.

Para isso, a Justiça Laboral envida esforços a fim de tentar dar efetividade à execução por meio da utilização de ferramentas tecnológicas. A título de exemplificação temos a mais utilizada que é a “penhora online” por meio do BacenJud, que permite que sejam penhorados valores existentes nas contas do devedor do processo judicial em qualquer banco no âmbito nacional.

Assim é que dá atenta leitura da novel lei 13.869/19, uma questão recai ao falarmos da efetivação do crédito trabalhista: a aplicação do art. 36 do referido diploma pode obstar a atuação jurisdicional?

Narra o indigitado dispositivo que constitui novo tipo penal “decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”.

Sem adentrar na discussão da inconstitucionalidade de vários dispositivos da tenra legislação, mormente ante a evidente violação da cláusula pétrea da separação dos poderes (art. 60, §4º, III, da Carta Magna), sobreleva-se que o dispositivo em questão traz a possibilidade de ameaça à atuação jurisdicional no que pertine à tentativa de satisfação do crédito trabalhista por meio do bloqueio de dinheiro pelo sistema BacenJud ou outra forma similar de constrição judicial de ativos financeiros.

Nesse aspecto, mister evidenciar que a própria legislação exige tipos específicos de dolo do agente público para que se conclua que a sua conduta constitui crime de abuso de autoridade. A intenção do agente deverá ser prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo, beneficiar terceiro, por mero capricho e por satisfação pessoal – CF. art. 1º, §1º do diploma em referência. Do contrário, não há falar em fato típico.

Ademais, a exacerbação do valor da dívida não significa que o juiz não possa mais determinar bloqueios de valores nas contas dos devedores nos processos trabalhistas. O que a lei previu foi que não se pode bloquear valores acentuadamente superiores ao devido para satisfação do crédito e, caso isso ocorra, a parte deve instar o julgador a se manifestar quanto ao alegado demonstrando o excesso para que esse possa ser corrigido.

Nesse ponto ainda vale dizer também que se o juiz mantiver a indisponibilidade, em decisão fundamentada (art. 93, IX, da CF), não há falar em crime, uma vez que a própria lei prevê que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade” (art. 1º, §2º, do diploma). Isso tudo porque para o cometimento do famigerado crime deve existir o dolo do agente, sendo difícil o vislumbre de que em um processo judicial se tenha alguma intenção do magistrado de benefício próprio ou de terceiros ou satisfação que não seja a entrega da prestação jurisdicional e extinção do processo.

Não é demais lembrar que existem medidas judiciais aptas caso reste configurado o excesso da penhora de dinheiro em que a parte pode se valer visando a liberação do que entende indevido (embargos, exceção de pré-executividade, mandado de segurança, etc.), não se podendo restringir a atividade julgadora colocando uma mordaça no juiz para que ele não prolate uma decisão de bloqueio de dinheiro e, com isso, descumpra com o seu dever funcional de assegurar a entrega da prestação jurisdicional efetiva às partes envolvidas no processo.

Desta forma, estes entraves para assegurar o crédito obreiro devem ser sopesados, na medida do possível, por meio de uma atuação em que, respeitando o devido processo legal substancial, haja a satisfação do crédito trabalhista.

Assim, em virtude do processo ser meio de efetivação do direito material, à luz do Estado Democrático de Direito e dos princípios constitucionais que norteiam o processo do trabalho, todos os sujeitos do processo devem estar engajados para que haja a entrega do bem da vida àquele que busca pelo recebimento do seu crédito, o que contribuirá para reduzir o descompasso entre a justiça teórica e a justiça real, além de amenizar parte da descrença do jurisdicionado no Poder Judiciário.

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* Adriano Marcos Soriano Lopes é juiz do trabalho substituto do TRT da 3ª região.

* Solainy Beltrão dos Santos é juíza do trabalho substituta do TRT da 3ª região.

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