O advento da lei de Registros Públicos e das legislações posteriores objetivaram conferir sobretudo segurança jurídica para os registros imobiliários brasileiro, principalmente em relação a melhor delimitação do imóvel, qualificação dos proprietários e da continuidade registral. Observa-se que em muitas transcrições e matrículas mais antigas sequer possuíam a qualificação completa dos adquirentes ou transmitentes, inclusive com omissão de informações imprescindíveis como sobrenome, documentos pessoais e até mesmo a qualificação do cônjuge. Outrossim, em relação aos imóveis rurais, percebe-se que estes não possuíam descrições e coordenadas precisas, além do registros de retificações e desmembramentos realizados sem observância a procedimentos e documentos comprobatórios, o que confere imprecisões nas descrições perimetrais dos imóveis rurais no Brasil.
Objetivando maior segurança no controle e registro das propriedades rurais, o georreferenciamento tornou-se obrigação legal com o advento da lei 10.267/01 e, posteriormente regulamentada pelo decreto 4.449/02. Consequentemente, a lei 6.015/73, conhecida como lei de Registros Públicos, teve a inclusão do § 3° no artigo 176, aduzindo que nas hipóteses de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, o georreferenciamento passa a ser exigido como documento obrigatório para efetivação do registro. Essas legislações representaram importante avanço para regularização do grau de precisão e confiabilidade nas descrições e limitações das áreas dos imóveis rurais e, consequentemente a sua delimitação.
Contudo, a lei 10.267/01 e a lei de registros públicos foram omissas sobre a anuência expressa dos confrontantes e a apresentação dessa declaração no momento da averbação do georreferenciamento. Essa omissão fez com que muitos Oficiais dos Cartórios de Registros de Imóveis exigisse essa declaração, com fulcro nos casos de retificação de área que tal documento é exigido, utilizando-se, portanto, de uma interpretação analógica.
Já o decreto 4.449/02 trouxe a regulamentação dos marcos temporais para a obrigatoriedade do georreferenciamento, conforme o tamanho da propriedade rural em hectares, além de trazer aspectos procedimentais como a declaração expressa dos confrontantes de que os limites divisórios foram respeitados, com suas respectivas firmas reconhecidas.
Provavelmente, o decreto objetivava resguardar a segurança jurídica e o direito de propriedade de terceiros ao exigir a anuência dos titulares de direito real que são confrontantes ao imóvel, contudo representa entrave para a regularização do imóvel, principalmente na localização desses confinantes para a coleta da assinatura na declaração, por exemplo.
Insta repisar que a exigência da apresentação da assinatura dos confinantes, encontra-se regulada no artigo 9°, § 6° do decreto 4.449/02 e não na lei de Registros Públicos e sobre esse ponto, o decreto teria a função de estar adstrito a lei com o papel de apenas regulamentá-la. Ocorre que, o decreto mencionado alhures, ao trazer a obrigação da apresentação da anuência dos confrontantes criou obrigação não prevista em lei, extrapolando os limites impostos na ordem jurídica de apenas regulamentar, representando inovação legislativa. Consequentemente, o impasse em relação a apresentação da declaração dos confrontantes persistia.
Nessa senda, não pode se perder de vista que a lei de Registros Públicos aponta a responsabilização na esfera civil e criminal a qualquer tempo do requerente e do profissional que assinou o memorial descritivo, na hipótese de ser constatado que as informações apresentadas não foram verdadeiras. Essa responsabilização é possível, principalmente, porque o georreferenciamento já é realizado por profissional com anotação de responsabilidade técnica, além da certificação ser realizada pelo INCRA que verifica a existência ou não de sobreposição de áreas.
Nesse cenário, a lei 13.838, de 4 de junho de 2019, alterou a lei de Registros Públicos para dispensar a anuência dos confrontantes na averbação do georreferenciamento de imóvel rural, finalizando a divergência que arrastava-se por anos, o qual assim determina:
Art. 1º O art. 176 da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (lei de Registros Públicos), passa a vigorar acrescido do seguinte § 13:
“Art. 176. ...................................................................................................
.........................................................................................................................
§ 13. Para a identificação de que tratam os §§ 3º e 4º deste artigo, é dispensada a anuência dos confrontantes, bastando para tanto a declaração do requerente de que respeitou os limites e as confrontações.” (NR)
Importante esclarecer que a declaração passa a ser do Requerente de que respeitou os limites, mantendo assim a sua responsabilização por informações inverídicas. Ademais, a lei 13.838/19 é expressa ao determinar a dispensa da anuência dos confrontantes apenas nas hipóteses do §§ 3º e 4º do artigo 176 da lei de Registros Públicos, ou seja, a exigência nos demais casos permanece, como por exemplo na retificação do registro ou averbação da alteração de medida perimetral que resulte ou não em alteração de área. Tal requerimento deverá estar acompanhado da planta com memorial descritivo assinado pelo profissional técnico e também pelos confrontantes, conforme dispõe o artigo 213, inciso II da lei de Registros Públicos.
O CNJ publicou recomendação 41, em 2 de julho de 2019 sobre a dispensa dos Cartórios de Registros de Imóveis da anuência dos confrontantes com intuito de uniformizar a interpretação sobre o tema, principalmente sobre o procedimento de retificação após a lei 13.838/19.
A recomendação do CNJ esclarece dois pontos relevantes, o primeiro que merece destaque trata da hipótese de retificação quando houver inserção ou alteração de medida perimetral, resultando ou não alteração de área. A recomendação trazida é no sentido dos Registradores continuarem exigindo a anuência dos confrontantes neste caso, conforme explanado anteriormente. Outrossim, o legislador trouxe a possibilidade de proceder com a notificação do confrontante, a requerimento do interessado, como forma de comunicá-lo da retificação, resguardando assim o seu direito, nos termos do artigo 213, § 2º da lei de Registros Públicos, quando o requerente não apresentar a planta e memorial descritivos assinados. Tal procedimento continua vigente no ordenamento jurídico e a declaração que trata a lei 13.838/19 não tem o condão de afastá-la.
O segundo ponto da recomendação trazida pelo CNJ trata da retificação de área prevista no artigo 213 da lei de Registros Públicos, excluindo a hipótese do inciso II, que resulte no desmembramento, parcelamento ou remembramento e, consequentemente da exigência do georreferenciamento nos moldes da lei 10.267/01. Nestas circunstâncias, o CNJ entende que bastará a declaração do Requerente dispensando a anuência dos confrontantes, nos moldes da lei 13.838/19. Neste caso, o Oficial do Cartório de Registro de Imóveis dispensará a anuência dos confrontantes por se tratar de retificação na matrícula decorrente de desmembramento, parcelamento ou remembramento e não de inserção ou alteração de medida perimetral.
A lei aprovada em plenário e sancionada pelo presidente veio para pacificar esse impasse, suprindo a omissão existente desde os idos de 2001. A partir de então, nas hipóteses de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais o requerente apresentará declaração de que foi respeitado os limites, dispensando a declaração expressa dos confrontantes do imóvel rural. Tal exigência representava entrave na regularização dos imóveis, em virtude de muitas vezes atrasar o procedimento diante da dificuldade de localizar todos os confrontantes, inviabilizando até mesmo a regularização dos imóveis georreferenciados o que contrariava, inclusive, a própria finalidade da norma que era de corrigir as descrições perimetrais imprecisas.
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*Grasielle Amorim de Souza Flores é advogada da área imobiliária e cível do escritório MoselloLima Advocacia. Mestranda em Direito.
*Mateus D’Assumpção Beltrão é colaborador da área imobiliária e cível do escritório MoselloLima Advocacia.