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Nova LINDB e o debate sobre o conceito jurídico de “orientação geral”

A preocupação com o tema aumenta na medida que se observa que inclusive já foi editado regulamento da lei e a controvérsia não foi sanada, haja vista que o decreto se limita a reproduzir a lei nesse tocante, deixando aberto à interpretações diversas.

24/9/2019

Não é novidade que o mote da nova LINDB é a segurança jurídica - nas atividades de regulação, interpretação, controle e sanção, seja na esfera administrativa ou judicial. Não é simples, no entanto, a instrumentalização desse escopo institucional. Dentre os dispositivos introduzidos pela lei 13.655/181, está o art. 242, que apresenta o instituto da vedação à retroatividade de interpretação geral normativa na análise de atos recém-viciados que tenham criado situações de fato e de direito já estabilizadas.

Paradoxalmente, esse artigo consagra novo ponto de controvérsia jurídica, haja vista que se passou a discutir sobre o conceito de “orientação geral da época”, cuja observação permitiria a preservação futura dos atos administrativos eivados de vício novo, decorrente de interpretação superveniente, em prol do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada – judicial ou administrativa.

Entende-se que a mudança na interpretação de enunciado normativo seria equivalente à própria norma jurídica, de sorte que não poderia retroagir no tempo. A justificativa é clara: trata-se de garantia de sobreposição da manutenção dos efeitos práticos sobre a atenção à legalidade estrita. Ainda assim, existirá dúvida quanto à condição autorizativa da aplicabilidade desse instituto: qual é a definição do conceito de orientação geral?

O art. 24, parágrafo único, dá diretriz. As orientações gerais estariam contidas, por exemplo, em: (i) atos públicos de caráter geral – os atos normativos de regulação geral em âmbito nacional; (ii) jurisprudência majoritária – aquela que é pacífica nas cortes superiores e nas instâncias administrativas de revisão, preferencialmente sumulada; (iii) prática reiterada e de amplo conhecimento público – como os clausulados gerais de editais e minutas de contratos administrativos, bem como os atos autorizativos para determinadas atividades, pautados em critérios específicos, reiterados e notórios.

A resposta à questão conceitual proposta acima parece encontrar solução parcial no art. 30 da nova LINDB: seria dever da Administração Pública se valer de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas, todos estes vinculantes, ainda que passíveis de revisão, para reforçar os alicerces da segurança jurídica. Gradualmente, portanto, caberá à Administração Pública estabelecer claramente quais são as ditas “orientações gerais”. O problema persiste, contudo, para se definir o conceito em cenários passados, quando não havia essa obrigação pedagógica da Administração.

Trazendo o problema conceitual à prática, pode-se pensar em cenário de pleito de invalidação de processo licitatório, a pedido de licitante, por violação aos preceitos do edital e da lei geral de licitações. Como argumentar, enquanto licitante, que o entendimento à época do ato impugnado era outro e não aquele que protegeria o ato da nulidade, ao passo que a Administração poderia simplesmente arguir que se trata de um entendimento divergente do licitante? Como diferenciar e comprovar a existência de uma orientação geral da Administração contra ela mesma? Nesse sentido, difícil qualificar o novo instituto da LINDB como garantia ao administrado, haja vista que, por mais interessante e coerente que seja no plano abstrato, ainda não foi desenhada sua instrumentalização efetiva.

A preocupação com o tema aumenta na medida que se observa que inclusive já foi editado regulamento da lei e a controvérsia não foi sanada, haja vista que o decreto se limita a reproduzir a lei nesse tocante, deixando aberto à interpretações diversas. Precisamos, portanto, de ações concretas, pedagógicas, a respeito da questão da orientação. Do contrário, haverá outro risco: o da incerteza, exatamente num campo destinado a fim oposto – a segurança jurídica.

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1 -  A lei 13.655/18, conhecida como a nova LINDB, inclui no decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942 (lei de introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.

2 - Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. 

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*Sofia Carbonell é associada do escritório Tauil & Chequer Advogados.

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