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MP da liberdade econômica e as alterações nos requisitos para a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica

Deve prevalecer a intelecção de que para a deflagração bastaria a alegação da presença dos pressupostos legais, momento em que seria oportunizada a produção de provas da alegação no ambiente processual adequado.

30/8/2019

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, disciplinado do art. 133 ao art. 137 do Código de Processo Civil, constitui valioso instrumento que propicia ambiente processual adequado à instrução probatória da alegação de abuso da personalidade jurídica feita pela parte ou pelo MP, sob o crivo do contraditório, dada a previsão no art. 135 de que “o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias”. É verdadeira inovação da lei de ritos de 2015, que, ao longo de mais de três anos de vigor e vigência, possui larga aplicação entre os operadores.

Sinteticamente, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica deve observar as condições da lei, a teor do §1º do art. 133, e, conforme o §4º do art. 134, o requisito para se deflagrar o incidente é a demonstração do “preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica”, que, em regra, nas relações cíveis-empresariais, são aqueles de natureza material, prescritos no art. 50 do Código Civil, notadamente o “abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”. Trata-se da adoção pelo diploma civil da chamada “teoria maior”, que se aplica tão somente diante dos casos em que a personalidade jurídica é utilizada para a prática de atos ilegais ou ímprobos e não simplesmente diante da ausência de patrimônio da pessoa jurídica.

Não obstante, diante da jurisprudência já antes consolidada no tocante às hipóteses de aplicação do instituto, no sentido de que a inexistência de bens por si só, não caracterizaria quaisquer dos pressupostos do art. 50, cogitou-se, ainda, que a insolvência seria também um requisito de indispensável demonstração para a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, pois, concorde defensores dessa posição, se acaso não demonstrada, ausente estaria o interesse de agir evidenciado na presença do trinômio necessidade-utilidade-adequação.

O STJ, entretanto, já dirimiu essa questão no REsp 1.729.554/SP, de relatoria do min. Luis Felipe Salomão, que consignou em seu didático voto que “além de a constatação da insolvência não ser suficiente à desconsideração - para o caso do art. 50 do CC -, com mais razão a inexistência de bens do devedor não pode ser condição para a instauração do procedimento que objetiva aquela decretação”.

O cenário, então, passou a ser bastante claro e seguro aos jurisdicionados: A instauração do incidente tem como requisito a demonstração das condutas previstas no art. 50 do Código Civil, sob a perspectiva da teoria da asserção, notadamente o abuso da personalidade jurídica caracterizado pela confusão patrimonial ou pelo desvio de finalidade.

Sucede que a propalada MP da Liberdade Econômica, a medida provisória 881/19, alterou sensivelmente o indigitado art. 50 do Código Civil, acrescentando-lhe, ainda, parágrafos que especificam e conceituam as citadas condutas cuja demonstração constitui requisito para a deflagração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e, em verdade, limitam-nas.

Desde a publicação da MP, muitas análises sobrevieram, destacando-se os impactos das alterações promovidas com relação a essa disposição de natureza material, mas especialmente voltadas para interpretações quanto ao próprio mérito dos pleitos de superação da personalidade jurídica diante da aplicação do instituto.

Aqui, entretanto, busca-se evidenciar os possíveis entraves que o início do procedimento adequado para se operacionalizar tais pedidos de desconsideração da personalidade jurídica poderá enfrentar, obstando a sua análise de mérito em sede propícia justamente em razão da dificuldade de se demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais antes de inaugurado o ambiente adequado à instrução probatória quanto às condutas autorizadoras do levantamento do véu que protege a autonomia obrigacional da pessoa jurídica.

Na última semana a malsinada MP encerrou sua tramitação no Congresso Nacional, quando, aprovada pelo Senado Federal, foi encaminhada com modificações à sanção presidencial na forma do projeto de lei de conversão 21/19.

Quanto ao objeto pretendido, o texto do Executivo passou por ligeira modificação no Legislativo, e, afora a adição de um art. 49-A, aparentemente de pouca expressão normativa, o novo texto proposto ao art. 50 do Código Civil possui a seguinte redação:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. §1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. §2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. §3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. §º 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.”

 

O texto final materializado na forma de projeto de lei de conversão, no que concerne à matéria aqui exposta, apenas corrigiu tautologia contida no texto original, com a supressão do termo “dolosa” contido antes no parágrafo primeiro, evidentemente desnecessário, diante da previsão de que é a utilização da pessoa jurídica “com o propósito de lesar” que caracteriza o desvio de finalidade, e manteve, no mais, a redação, malgrado alterações mais drásticas tenham sido deliberadas na comissão mista e na Câmara dos Deputados.

Posto isso, tudo leva a crer, por óbvio, que o texto será sancionado, nesse particular, de tal sorte que se mostrava recomendável o exame da controvérsia aqui apontada, uma vez que a terão que enfrentar os combativos operadores do direito que atuam nas laboriosas trincheiras do moroso contencioso judicial.

Pois bem. Recapitulando que o Código de Processo Civil disciplina em seus arts. 133, §1º, e 134, §4º, que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica deve observar os pressupostos legais e a instauração do incidente que se revela a via adequada ao seu processamento depende da demonstração do preenchimento de tais pressupostos, então, logo, dever-se-á observar e demonstrar os requisitos previstos na nova redação conferida ao dispositivo material aplicável ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica nas demandas de natureza civil-empresarial para se requerer a inauguração do incidente.

Não obstante o louvável intuito de se garantir maior segurança jurídica à atividade empresarial, em congruência com as demais disposições do projeto que institui a declaração dos direitos da liberdade econômica, é nessa seara, contudo, que a nova redação que confere ao art. 50 do Código Civil cria embaraços não apenas ao próprio deferimento da superação da personalidade jurídica, como também à simples instauração do mecanismo adequado para se processar essa pretensão, o que também acaba por desemparar, de outro lado, a boa empresa e o bom empresário, que, na condição de credores, necessitam valer-se de tal instituto e encontram os entraves dos agora mais rígidos requisitos para a deflagração do procedimento.

Veja-se, em primeiro lugar, o caput do art. 50 do Código Civil agora é específico ao definir que a extensão de certas e determinadas obrigações somente se dará aos sócios e administradores da pessoa jurídica que foram beneficiados pelo abuso havido, ainda que indiretamente. Isso significa que, ao se requerer a instauração do incidente, deve haver a demonstração de quais sócios ou administradores foram efetivamente favorecidos com o ilícito perpetrado, o que constitui exigência de demasiado rigor à parte postulante, considerando ainda que, presumidamente, o abuso da personalidade macula toda a sociedade, dado que a sua própria instituição prescinde de affectio societatis.

Não obstante, o cotejo de elementos para se demonstrar, quando do requerimento de instauração do incidente, de modo individualizado, o sócio beneficiado é incumbência deveras difícil à parte credora, mormente porque o judiciário protege de modo praticamente intransponível o sigilo bancário de terceiros e, antes de iniciado o incidente, os sócios nem sequer são parte e não é facultada ao requerente, por exemplo, a requisição de extratos bancários pelo convênio BACEN JUD 2.0, instrumento factível na forma do art. 17, III, do seu regulamento, que constituiria importante subsídio para justamente se produzir a prova do alegado, ou antes, em outras palavras, a demonstração do preenchimento dos pressupostos legais. Nem se diga ainda que o, por vezes, ignorado art. 1º, §4º, da lei complementar 105/01, disciplina que o sigilo bancário pode ser quebrado para a apuração de qualquer ilícito, inclusive os de natureza civil, mas a sua aplicação é praticamente nenhuma em situações como essas.

Em segundo lugar, no parágrafo primeiro, a redação irrompe novo conceito de desvio de finalidade, antes consagrado como qualquer ato que desborda do objeto social da pessoa jurídica, e agora é definido como o manejo da empresa com o intuito de lesar credores e para a prática de qualquer ilícito, o que também poderá implicar entraves à deflagração do incidente, conquanto torna necessária, ao menos, a presença de evidência de conduta intencional praticada especificamente para lesar o credor.

Em terceiro lugar, quanto à confusão patrimonial, o parágrafo segundo restringe a sua caracterização, exigindo agora que a parte que pede seja dado início ao incidente demonstre não apenas que sociedade ou sócio cumpriu obrigação particular de um ou de outro, mas sim que esse ato de confusão patrimonial seja repetitivo, o que também evidentemente consubstancia entrave à parte diante da ausência de possibilidades amplas de prova antes de efetivamente iniciado o incidente.

Em quarto lugar e, por fim, quiçá o empecilho mais flagrante que poderá advir, refere-se à previsão contida no parágrafo quarto, segundo a qual a formação de grupo econômico, por si só, não é requisito para a desconsideração da personalidade jurídica, o que revela mais um verdadeiro obstáculo que se colocará à instauração do incidente porque a parte postulante não possui meios de prova antes do procedimento ser aberto para demonstrar sequer indícios de condutas outras como de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial nos moldes agora especificados, mormente porque grupos econômicos tendem a ser bem estruturados e o desmantelamento de suas complexas composições societárias para se buscar demonstrar condutas específicas agora previstas no diploma material é demasiadamente austero ao credor.

Assim, malgrado entenda-se que deve prevalecer a intelecção de que para a deflagração bastaria a alegação da presença dos pressupostos legais, momento em que seria oportunizada a produção de provas da alegação no ambiente processual adequado, imagina-se que a nova redação que o PLV 21/19 pretende conferir ao art. 50 do Código Civil poderá obstruir a própria instauração do incidente, ensejando ainda excessivos recursos versando sobre o preenchimento dos agora bastante específicos requisitos cuja observância e demonstração são indispensáveis.

Essa preocupação pode parecer excessivamente alarmista no contexto hodierno, mas breve pesquisa ao repositório de jurisprudência do TJ/SP (sem qualquer rigor metodológico, frise-se, mas apenas para ilustrar a questão), apontou centenas de recursos de agravo de instrumento contra decisões que indeferiram ou deferiram a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, em que a controvérsia era, essencialmente, uma só, isto é, a presença dos pressupostos legais, ainda sob uma perspectiva perfunctória, para se deflagrar o procedimento, tudo isso ainda na vigência da redação anterior do art. 50 do Código Civil, que já possuía interpretação sedimentada, de tal sorte que, com tal alteração, pensa-se que realmente os obstáculos serão muitos não apenas ao deferimento da desconsideração da personalidade jurídica, mas também à própria instauração do incidente adequado ao processamento de seu pedido.

___________

*Francisco Tadeu Lima Garcia é advogado e cientista social. especialista em Direito Tributário. Mestrando em Direito Político e Econômico.

 

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