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Abusos das autoridades ou da lei?

O risco em que incorre a nova lei é não ser suficiente para aplacar tantos desmandos que cotidianamente vilipendiam o direito das pessoas pelo abuso de agentes públicos displicentes ou imbuídos do exercício desmedido dos poderes de que são investidos em nome do Estado para agir em prol da sociedade, e nunca contra os cidadãos.

28/8/2019

Recentemente, pessoas saíram às ruas para manifestar contrariedade à nova redação da lei de abuso de autoridade, impondo refletir se alguém pode ser a favor do abuso, como quem, por exemplo, fosse contra o combate à corrupção.

O Direito Penal, visto como ultima ratio, reserva-se a criminalizar aquelas condutas que realmente são consideradas inadmissíveis numa determinada sociedade e momento histórico, como é o caso do abuso de autoridade. Uma vez que o conceito penal de funcionário público engloba as autoridades em geral, razoável admitir-se que, se o agente público somente pode conduzir-se dentro dos parâmetros permitidos em lei, aquele que extrapole os ditames legais, abusando da sua condição de representante do Estado, merece ver sua conduta criminalizada.

A lei recentemente aprovada pelo Congresso Nacional – se o seu processo legislativo não estiver viciado – expressa, numa democracia representativa como a nossa, nada menos que a “vontade popular”, não devendo, por isso mesmo, ser objetada por veto presidencial embasado no mérito.

Além dessas circunstâncias, que por si deveriam afugentar os detratores da nova lei, há outras. Exige-se que as condutas criminalizadas sejam praticadas “com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” (art. 1º, § 1º). E para afastar o risco de afetar a necessária independência de algumas funções públicas, notadamente magistrados, membros do Ministério Público e das polícias, o § 2º, do artigo 1º da lei ainda adverte: “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade”, assim excetuando os indesejáveis crimes de hermenêutica.

Outro ponto constantemente lembrado é o de que os crimes de abuso de autoridade continuam sendo manejados pelo Ministério Público, que exerce a titularidade da ação penal pública, ao passo que o julgamento sempre estará a cargo de um juiz de direito, o que torna incompreensível a reação dessas autoridades contra a nova lei. Se não há confiança entre os próprios aplicadores da lei sobre a interpretação da legislação por seus pares, como a sociedade haverá de se proteger contra os abusos?

De resto, os crimes tipificados na lei estão repletos de obviedades, que a rigor nem precisariam ser criminalizadas não fosse a reiteração dessas práticas pelo país afora, quase sempre sem vir à luz do escrutínio social, pela imprensa livre ou no espaço infinito das redes sociais.

Decretar prisão ilegal ou manter o preso incomunicável; algemar o preso que não ofereça risco; manter presos de ambos os sexos na mesma cela; invadir imóvel sem autorização de juiz e fora das hipóteses legais; produzir prova ilícita; alterar cena de crime pela remoção do cadáver; iniciar procedimento sem justa causa; impedir o direito de reunião; decretar a indisponibilidade de ativos financeiros que extrapolem exacerbadamente o valor da dívida, entre outras tantas situações abusivas que a lei visa a coibir. Em todas essas hipóteses, como vimos, haverá o ônus de provar que as condutas terão sido intencionais.

Novidade encartada na lei refere-se à proteção penal das prerrogativas profissionais dos advogados, cuja defesa importa diretamente na preservação dos direitos fundamentais do cidadão. O artigo 32 protege o acesso do advogado aos autos dos procedimentos em que deva atuar, o que na prática representa empecilho gravíssimo que é imposto ao regular exercício do direito de defesa diuturnamente. Pelo artigo 20, quem impedir a entrevista pessoal e reservada do advogado com o preso praticará abuso tipificado como crime. A lei ainda garante a inviolabilidade do escritório, instrumentos de trabalho e de correspondência em suas variadas formas. Não é tudo que seria necessário para assegurar o pleno exercício da advocacia, mas esse amparo legal pela criminalização representa avanço imensurável.

A perda ou a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública exigirá reincidência específica, reservada, portanto, aos que teimosamente insistirem na prática de abusos.

As eventuais dificuldades práticas para a aplicação de uma nova lei resolvem-se ao longo do tempo, pelo exercício do bom senso ou pela jurisprudência emanada dos tribunais. 

O risco em que incorre a nova lei é não ser suficiente para aplacar tantos desmandos que cotidianamente vilipendiam o direito das pessoas pelo abuso de agentes públicos displicentes ou imbuídos do exercício desmedido dos poderes de que são investidos em nome do Estado para agir em prol da sociedade, e nunca contra os cidadãos.

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*Antonio Ruiz Filho é advogado criminalista sócio de Ruiz Filho Advogados. Foi diretor secretário-geral adjunto da OAB/SP (2013/2015), onde também presidiu a Comissão de Direitos e Prerrogativas (2010/2012). Foi, ainda, presidente da AASP e diretor adjunto do IASP por duas gestões.

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