Um dos entes federativos que mais vem sofrendo com a atual crise financeira que assola o país é o Estado de Goiás, que recentemente teve aprovado pelo STF programa de recuperação fiscal, previsto na lei complementar federal 159/17, que o autorizou o parcelamento de estimadamente R$ 1,2 bilhão em dívidas com a União Federal. Essa medida possibilita que o estado não venha a descumprir outras obrigações, como por exemplo, o pagamento de salários dos funcionários públicos.
Segundo levantamento dos órgãos estaduais, o estado acumula mais de R$ 4 bi de dívida, conforme consta da prestação de contas do ano de 2018. O governador Ronaldo Caiado, em declarações públicas, atribuiu ao “vandalismo administrativo” praticado pelas gestões anteriores a penúria que vive o estado goiano. A situação é tão grave que afeta até mesmo o Poder Judiciário: em 7 de maio de 2019, em reunião com autoridades do poder executivo, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás assinou um documento denominado “Deliberação dos poderes e órgãos do Estado de Goiás”, no qual se comprometeu a não realizar “nomeações decorrentes de aprovação em concurso público até junho de 2020” para não agravar a crise financeira do estado.
Porém, como é comum no Brasil, quem deve pagar a conta pela má administração do estado goiano é o contribuinte. Nos últimos meses, a Secretaria de Estado da Economia do Estado (atual denominação da Secretara da Fazenda) está divulgando notícias de que vem promovendo diversas medidas extraprocessuais para a cobrança de contribuintes inadimplentes, como por exemplo, o protesto da dívida ativa. Ao que tudo indica, os órgãos estaduais não medirão esforços para realizar cobrança dos inadimplentes, fato que fomenta o abuso de poder e a realização de atos ilegais por parte de algumas autoridades.
O que pouca gente sabe é que o Estado de Goiás adota uma prática já declarada inconstitucional em outros estados no cálculo de seus débitos tributários, que é o cômputo de juros de mora e atualização monetária em patamar superior à SELIC, índice utilizado pela União Federal para o cômputo de atualização monetária e juros de seus débitos, que é atualmente o limite máximo permitido pela Constituição em território nacional.
Sobre esse tema já se manifestou o STF, em 28/5/10, no julgamento do ADIn 442, de relatoria do ministro Eros Grau, que ao interpretar os artigos 22, inciso VI, e 24, inciso I, da Constituição Federal, definiu que o estado-membro pode definir seu próprio índice fixador de juros e correção monetária, “desde que o fator de correção adotado pelo Estado-membro, seja igual ou inferior ao utilizado pela União” – que é o índice SELIC – regra que é considerada como absoluta no atual ordenamento jurídico.
No caso da legislação goiana, o índice fixador da atualização monetária definido por lei é o IGP-DI, conforme o artigo 168, parágrafo único, I, do Código Tributário do Estado de Goiás (lei estadual 11.651/91), que historicamente oscila (nos últimos dois anos, por exemplo, a variação chegou ao máximo de 1,48% ao mês e mínimo de -1,14% ao mês). Paralelamente, a legislação exige, à título de juros de mora, a alíquota fixa de 1% ao mês (artigo 167, do Código Tributário de Goiás). Conjugados, esses valores em alguns períodos ultrapassam a SELIC. À título de comparação, o índice SELIC não chega a 0,6% ao mês desde outubro de 2017.
Cumpre destacar também que é entendimento pacificado no STJ que a SELIC “é composta de taxa de juros e correção monetária, não podendo ser cumulada com qualquer outro índice de atualização” (AgRg no REsp 1118168/PR, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 9/8/11, DJe 30/8/11). Assim, não pode um estado-membro tentar “burlar” a sistemática imposta pela Constituição e da legislação através da cumulação de dois índices diversos, a pretexto de um índice ser destinado ao cômputo de juros, e outro índice destinado ao cômputo de correção monetária, como faz o estado de Goiás.
O levantamento abaixo demonstra que nos últimos dois anos, em 14 meses houve o cômputo ilegal de juros e correção monetária no Estado de Goiás:
Exercício |
IGP-ID1 |
Juros cobrados pela legislação goiana |
Total do índice da legislação goiana |
SELIC acumulada2 |
Conclusão |
jun/17 |
-0,96 |
1 |
12,85 |
14,83 |
legal |
jul/17 |
-0,3 |
1 |
13,81 |
14,03 |
legal |
ago/17 |
0,24 |
1 |
14,11 |
13,23 |
ilegal |
set/17 |
0,62 |
1 |
13,87 |
12,59 |
ilegal |
out/17 |
0,1 |
1 |
13,25 |
11,95 |
ilegal |
nov/17 |
0,8 |
1 |
13,15 |
11,38 |
ilegal |
dez/17 |
0,74 |
1 |
12,35 |
10,84 |
ilegal |
jan/18 |
0,58 |
1 |
11,61 |
10,26 |
ilegal |
fev/18 |
0,15 |
1 |
11,03 |
9,79 |
ilegal |
mar/18 |
0,56 |
1 |
10,88 |
9,26 |
ilegal |
abr/18 |
0,93 |
1 |
10,32 |
8,74 |
ilegal |
mai/18 |
1,64 |
1 |
9,39 |
8,22 |
ilegal |
jun/18 |
1,48 |
1 |
7,75 |
7,7 |
ilegal |
jul/18 |
0,44 |
1 |
5,27 |
7,16 |
legal |
ago/18 |
0,68 |
1 |
5,83 |
6,59 |
legal |
set/18 |
1,79 |
1 |
5,15 |
6,12 |
legal |
out/18 |
0,26 |
1 |
3,36 |
5,58 |
legal |
nov/18 |
-1,14 |
1 |
2,1 |
5,09 |
legal |
dez/18 |
-0,45 |
1 |
4,24 |
4,6 |
legal |
jan/19 |
0,07 |
1 |
4,69 |
4,06 |
ilegal |
fev/19 |
1,25 |
1 |
4,62 |
3,57 |
ilegal |
mar/19 |
1,07 |
1 |
3,37 |
3,1 |
ilegal |
abr/19 |
0,9 |
1 |
2,3 |
2,58 |
legal |
mai/19 |
0,4 |
1 |
1,4 |
2,04 |
legal |
Meses em que a contagem de juros e correção monetária ultrapassa a SELIC |
14 |
Meses em que a contagem de juros e correção monetária não ultrapassa a SELIC |
10 |
Para se ter uma ideia do impacto prático que a legislação goiana impõe ao contribuinte, há casos em que o cômputo de juros de forma inconstitucional impõe um acréscimo ilegal de mais de 20% sobre o valor da dívida originária. Ou seja, o contribuinte goiano que por algum infortúnio tenha se tornado inadimplente, está sujeito a sofrer todas as drásticas consequências de um protesto, inscrição dos débitos em órgãos de proteção ao crédito (como o CADIN, SPC, ou SERASA), e o que é pior: constará a informação de que o débito é muito maior do que ele realmente deveria ser.
Não é a primeira vez que esse tipo de situação ocorre nos estados-membro da federação. Caso semelhante, com grande repercussão, ocorreu no estado de São Paulo, que em 2009 editou legislação instituindo um índice de juros de mora de 0,13% ao dia, que no final do mês superava (e muito!) a SELIC, aumentando exponencialmente o valor do débito tributário. Esse índice foi declarado inconstitucional pelo próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelos tribunais superiores. Após uma série de derrotas na esfera judicial, em 2017 o estado de São Paulo revogou a mencionada legislação, adotando definitivamente o índice SELIC.
No caso do estado de São Paulo, como vimos, o próprio Tribunal de Justiça do estado-membro declarou inconstitucional a fórmula do cômputo de juros do débito tributário; porém, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, como já dito no início do presente artigo, está diretamente envolvido com a recuperação de créditos tributários, tanto é que se comprometeu com o poder executivo a não nomear concursados até meados de 2020, o que faz com que dúvidas recaiam sobre o entendimento a que chegará o tribunal quando se manifestar sobre tal tema. É bem provável, para infortúnio dos contribuintes lesados, que tal questão só seja solucionada, mais uma vez, pelos tribunais superiores.