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A estruturação de projetos e o processo de colação: Uma novidade promissora

Na estrutura organizacional da Administração Pública brasileira, não há ente dotado de maior capacidade institucional para implementar essa alvissareira novidade no universo das contratações públicas brasileiras.

2/8/2019

Está em curso no Brasil um novo ciclo de desestatizações. Saneamento, aeroportos, ferrovias, rodovias, portos, entre outros, deverão ter a sua execução transferida para operadores econômicos privados, por meio de contratos concessionais. As empresas estatais federais, na sua esmagadora maioria, deverão ser privatizadas, segundo anuncia a equipe econômica do governo. 

Entretanto, para que esse novo ciclo de concessões e privatizações seja exitoso é preciso enfrentar um desafio que, há tempos, se coloca no ordenamento jurídico brasileiro: como licitar a estruturação de projetos?

Não é nenhuma novidade que a estruturação de projetos constitui etapa determinante para se operar com eficiência a transferência de atividades e de empresas para o setor privado.  Estudos técnicos de demanda, de engenharia, ambientais, econômicos, financeiros, jurídicos e regulatórios, entre outros, compõem uma cesta de informações indispensáveis para que os agentes econômicos tenham condição, na licitação, em examinar a viabilidade do negócio e ofertar propostas aptas a atender aos seus interesses e também aos públicos.  

Tais estudos se caracterizam por serem multidisciplinares e singulares. Cada processo de concessão, de parceria público-privada ou mesmo de privatização poderá demandar a elaboração de estudos com as mais variadas dimensões, a justificar a contratação pelo setor público de consultores externos especializados.

O desafio é como fazê-lo a partir do anacrônico regime da lei 8.666/93. Pode-se dizer que, entre outros, as licitações públicas no Brasil padecem de dois graves defeitos: a rigidez procedimental e o apego ao preço como principal critério norteador do atendimento do interesse público. A lei 13.303/16 (lei das estatais) promoveu avanços procedimentais, mas não inaugurou nenhuma mudança conceitual contundente na condução das licitações.

Conferir flexibilidade no curso da própria licitação, permitindo que os licitantes possam auxiliar a modelagem dos objetos dotados de maior complexidade, já é uma realidade na União Europeia, que conta com as modalidades diálogo concorrencial e procedimento por negociação, atualmente disciplinadas na diretiva 2014/24/EU.

O PLS 1.292/95, que avança no Congresso Nacional para uniformizar a legislação de licitações e contratos, revogando a lei 8.666/93, a lei 10.520/02 (pregão) e a lei 12.462/11 (Regime Diferenciado de Contratação), consagra a modalidade diálogo competitivo, reconhecendo que a rigidez procedimental nas licitações pode não cair bem quando se está a tratar de objetos mais complexos. 

A depender do objeto, o critério da técnica deve prevalecer, ainda que implique no comprometimento de mais recursos, se assim, evidentemente, demandar o atendimento do interesse público. A maior prova do apego ao menor preço é o procedimento do tipo melhor técnica descrito no §1° do art. 46 da lei 8.666/93, que, ao fim e ao cabo, pode não selecionar efetivamente a melhor proposta técnica. 

A contratação de consultores externos se deparava, então, com um dilema. De um lado, não havia um procedimento específico na legislação brasileira pensado para lidar com objetos com essas características. De outro, a potencial contratação de consultores por inexigibilidade de licitação, nomeadamente nos casos de notória especialização, atraia um risco maior para os gestores, dada a elevada probabilidade de os órgãos de controle (em especial Tribunal de Contas e Ministério Público), interpretarem diversamente, compreendendo que se trata de um mercado que comporta competição e, via de consequência, licitação.  

O processo de colação, previsto na MP 882, de 3.5.19, veio preencher esse vácuo legislativo.  O art. 16 (§§ 1° ao 7°) e o art. 16-A disciplinam a novel modalidade1 . Buscou-se inspiração nos procedimentos competitivos regulados pelas Diretrizes da União Europeia aos Estados Membros e as guidelines do Banco Mundial. O § 1° do art. 16 da MP permite identificar que o processo de colação comporta uma limitação subjetiva (apenas o BNDES poderá dele fazer uso) e outra limitação objetiva (apenas para empreendimentos ou políticas qualificadas no Programa de Parceria de Investimentos - PPI). 

Essa condicionante de natureza subjetiva pode se mostrar importante para a introdução do instituto no ordenamento nacional, tanto pela maturidade do mercado a que se destina quanto pela experiência pregressa do BNDES no setor. 

Em relação à condicionante objetiva, pode-se intuir que essa limitação se justifica pela complexidade elevada dos projetos que estão na carteira do PPI. Essa, porém, é uma premissa relativa, pois há projetos que podem não ser qualificados no PPI (notadamente em âmbito estadual ou municipal) que também possuem alta complexidade e demandariam um processo de contratação diferenciado. Tal restrição, porém, pode também ser positiva para a consolidação do instituto, notadamente para permitir maior controle do seu uso. Propositadamente, pode-se estar cogitando de uma introdução gradual da colação no ordenamento jurídico brasileiro. 

A cautela está presente, também, na disciplina do § 6° do art. 16, que determina a obrigatoriedade de o BNDES comunicar o Tribunal de Contas da União o início do processo de colação em 5 dias, a partir do envio das consultas. 

Seguramente, o que o processo de colação traz de maior inovação é a introdução do diálogo com o mercado no curso da licitação. O diálogo não é antes e nem depois, mas durante. O § 4° do art. 16 estabelece que a fase externa da colação comporta fases sucessivas, em que é permitido aos concorrentes enviar sugestões que podem ser admitidas pela BNDES, sem que isso implique na necessidade de reiniciar o procedimento. 

A colação permitirá que o BNDES e os concorrentes construam, juntos, o desenho dos principais aspectos da futura estruturação do projeto. Diante da complexidade dos projetos a que se destina, essa sistemática pode se mostrar produtiva para a futura relação contratual, pois reduz assimetrias de informações, alinha expectativas e permite que o contratante absorva conhecimentos de todos os concorrentes durante o processo seletivo. Essa mudança de paradigma da lógica adesiva das licitações tradicionais é certamente a maior qualidade do processo de colação, tal qual, espera-se, ocorra em breve também com o diálogo competitivo.

Considerado definitivo o objeto - após eventuais contribuições assimiladas dos licitantes - o BNDES concederá um prazo mínimo de 20 dias para que os concorrentes que não tenham sido eliminados ao longo da fase externa enviem suas propostas finais (§ 3° do art. 16). Essa sistemática implica na coexistência de duas dinâmicas concomitantes na fase externa: a reformulação do objeto por sugestões dos concorrentes e a eliminação de concorrentes que não atendam a critérios técnicos, conforme a dinâmica prevista nos incisos I e II do §4º.

A MP deu bons passos a favor da qualidade ao estipular que os critérios técnicos devem prevalecer na avaliação dos concorrentes (§4º, IV) e podem ser estipulados em patamares similares ou superiores ao objeto licitado (§2º). A regra é valiosa por conferir mais segurança jurídica para seus operadores, haja vista que os projetos a que se destina a colação possuem alta complexidade e sensibilidade estratégica e, por isso, devem ser minimizados os riscos de má execução contratual. 

A introdução do diálogo no curso da licitação – essência do processo de colação - é, ao mesmo tempo, a maior qualidade e o maior desafio do instituto da colação.

O ganho de qualidade na relação contratual que essa sistemática pode propiciar vem acompanhado de mais complexidade, custos e riscos no procedimento de seleção. O diálogo concorrencial funciona muito bem no setor privado, porém, ao ser introduzido no setor público como uma licitação, e, com isso, receber a carga normativa e jurisprudencial do regime licitatório, suas qualidades precisam ser bem tuteladas para que o instituto não seja desnaturado.

Esse é o maior desafio do processo de colação: ser introduzido no setor público sem que sejam perdidas as qualidades bem construídas pelo setor privado. Seria um desperdício repetir as práticas consolidadas da “técnica e preço” ou “melhor técnica”, edificadas sob a égide da lei 8.666/93, para a contratação de estruturação de projetos dessa natureza.  Como o processo de colação comporta várias fases e alterações de escopo no curso da fase externa, essa repetição de padrão o tornaria ineficiente e, provavelmente, inviável aos fins a que se destina. Vale relembrar que a colação destina-se a viabilizar investimentos e gerar desenvolvimento nacional, foco mais abrangente e complexo do que o das licitações em sentido estrito.

Podemos construir um exemplo para ilustrar essa necessidade de adaptação paradigmática: 15 concorrentes se apresentam num processo de colação. Todos deverão ter suas contribuições e capacidade técnica avaliadas na primeira fase. A administração absorve algumas contribuições e elimina alguns concorrentes. Na fase seguinte, os concorrentes restantes (10, por exemplo), passarão pelo mesmo processo avaliativo. Considerando maduro o projeto básico, o BNDES solicita proposta final para os concorrentes restantes (5, por exemplo). Nesse cenário, terão ocorrido 30 avaliações técnicas, tanto da capacidade técnica dos concorrentes quanto das suas contribuições ao projeto básico. Adiciona-se a essa sistemática o desafio de oportunizar recurso contra todas essas decisões, o que demanda um exercício complicado de balancear contraditório e eficiência operacional.

Naturalmente, todos os julgamentos do processo de colação devem ser justificados, mas sobre eles não podem recair o mesmo rigor jurisprudencial que tradicionalmente incidem sobre a “técnica e preço” e “melhor técnica”. Esse rigor, erguido sob a égide da lei 8.666/93, pode fazer com que o processo de colação se descole do seu contexto e não atinja os seus fins, prejudicando, sobretudo, a realização de investimentos no país.

Concluindo: para que o processo de colação seja exitoso e aumente a eficiência dos projetos a serem estruturados (lembrando que beneficiário final dessa eficiência é a sociedade), é preciso construir um novo paradigma jurídico, no qual a flexibilidade e negociação não sejam consideradas inimigas do interesse público. 

É tempo de compreender que a rigidez nas regras dos procedimentos licitatórios pode não ser a melhor solução para a contratação de determinados objetos, como é o caso da estruturação de projetos no campo das desestatizações. 

E, sobretudo, é preciso ser deferente ao espaço técnico-discricionário reservado ao BNDES na condução do processo de colação.  Na estrutura organizacional da Administração Pública brasileira, não há ente dotado de maior capacidade institucional para implementar essa alvissareira novidade no universo das contratações públicas brasileiras. 

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1 Importante referir que o embrião do processo de colação surgiu a partir do anteprojeto do PPP Mais elaborado pelo Professor Carlos Ari Sundfeld e submetido ao grupo de trabalho que havia sido criado em agosto de 2015 pelo então Ministro da Fazenda Joaquim Levy para formular propostas de melhoria do ambiente de negócios. O grupo era integrado pelos Professores Egon Bockmann Moreira, Flavio Amaral Garcia, Floriano Azevedo Marques Neto, Valter Shuenquener de Araújo, Fabrício do Rosário Dantas Leite e Paulo Guilherme Farah Correa. Para aprofundamento do tema ver SUNDFELD, Carlos Ari e Moreira. Egon Bockmann Moreira. PPP MAIS: um caminho para prátias avançadas nas parcerias estatais com a iniciativa privada. Fórum: Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, ano 14, n° 53, p. 9-40, jan/mar. 2016.

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*Flavio Amaral Garcia é professor de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas. Sócio do escritório Juruena e Associados. Procurador do Estado do Rio de Janeiro.

*Pedro Ivo Peixoto é mestre em Administração Pública. Especialista em Direito Administrativo Empresarial. Advogado do BNDES.

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