Movimentou, recentemente, o mundo jurídico, sobretudo os atuantes no Direito de Família, a notícia do juiz do Rio de Janeiro que teria, em sentença, “tirado” a guarda de um filho de 8 anos de idade da mãe, com quem sempre morou, para conferi-la ao pai, sob os argumentos de que a genitora mora em área de risco, o município do Rio de Janeiro é muito perigoso e a criança, que é um menino, precisa de uma figura masculina em sua vida.
Esse processo, assim como todos os outros de natureza familiar, tramita em segredo de justiça, pelo que as digressões jurídicas que farei nos parágrafos seguintes serão integralmente baseadas nas cruas informações que foram divulgadas na mídia.
Pois bem. A primeira coisa que me veio à cabeça quando tomei conhecimento desse caso foi o artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90), que prevê que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”.
Sim, colegas familistas. Eu sei que o caso, aqui, não trata da suspensão ou perda do poder familiar, que são muito mais gravosas do que a inversão da guarda determinada pela Justiça do Rio de Janeiro, mas o raciocínio desse dispositivo, interpretado à luz dos artigos 15, 16 e 17 do ECA, segundo os quais devem ser preservados os direitos das crianças e dos adolescentes à liberdade, à dignidade e ao respeito – este consistindo na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral dos menores, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias, crenças e, inclusive, dos espaços e objetos pessoais –, torna-se, a meu ver, plenamente extensível à situação da família carioca.
Aliás, a sua extensão às demandas em que se litigam a guarda é ainda mais plausível se considerarmos que o próprio exercício da guarda é um dos atributos do poder familiar (art. 1.634, II, do Código Civil).
Isso significa que é totalmente inaceitável que qualquer filho(a) seja afastado da mãe ou do pai por motivos puramente socioeconômicos, se esse pai ou essa mãe possuam todos as condições que lhes permitam proporcionar o cuidado e a proteção necessários aos cuidados da criança/adolescente.
Pensar de modo diferente, como, aparentemente, fê-lo o magistrado carioca, é violar frontalmente os direitos fundamentais menoristas constantes dos artigos mencionados anteriormente, máxime a dignidade e o respeito à criança que, além de ter vivido os seus 8 anos de vida junto à mãe e ao meio irmão de 15 anos de idade, não tem qualquer contato com a figura paterna há 4 anos (metade de sua vida), em razão, ao que indicam as notícias, da própria desídia do pai.
Será que a brusca retirada dessa criança do ambiente onde nasceu e cresceu para ir morar em uma cidade distante e com uma pessoa que – considerado o lapso temporal passado desde que conviveu com o pai a última vez – deve ser praticamente estranha, vai preservar a integridade psíquica desse infante? Aos papais e às mamães que estejam lendo este artigo, pensem em seus filhos.
E nem me falem do fundamento de que o lugar onde a genitora mora é uma “área criminógena”. Tiremos todas as crianças do Rio de Janeiro, quiçá do Brasil, então.
Por último. A indicação de que o menino precisa de uma “figura paterna” em sua vida por ser do sexo masculino foi, com todas as vênias possíveis, ainda mais infeliz e, além de tudo, inconstitucional.
Primeiro, por ser evidente a igualdade entre os sexos prevista no art. 5º, I, da Constituição Federal. Apenas para encurtar o caminho de vocês: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Segundo, pelo fato da previsão do art. 226, §4º, da CF/88, que determina o reconhecimento como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, o que as doutrinas familistas denominaram “família monoparental”.
Viu aí alguma observação de que os descendentes do sexo feminino devam ficar com a mãe ou de que os do sexo masculino devam ficar com o pai? Talvez seja porque o gênero do genitor pouco importa para determinar quem é melhor ou pior para criar ou educar os filhos.
Ok. Não há informações na notícia de que o pai ou a mãe tenham contraído novas núpcias com terceiros, todavia, também acho interessante, para arrematar os noticiados erros que se apresentaram nesse caso, o art. 1.588 do Código Civil: “o pai ou a mãe que contrair novas núpcias não perde o direito de ter consigo os filhos, que só lhe poderão ser retirados por mandado judicial, provado que não são tratados convenientemente”.
Perdoem-me se eu estiver equivocada, mas os seguintes trechos não me convencem de que a mãe tratava o filho caçula inconvenientemente:
“Segundo informações do G1, a mãe trabalha há quatro anos como agente comunitária de saúde, com carteira assinada, e tem casa própria. O filho, que estuda em um colégio particular, mora com ela e um irmão mais velho, de 15 anos, de uma relação anterior. Os parentes dela também moram na comunidade”.
“A advogada Aline Caldeira Lopes, especialista em Direito da Família e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, opina que houve preconceito na sentença. Rodrigo Mondego, que também integra a CDHAJ, ressaltou que o juiz ignora pontos importantes em sua sentença. "Ele não leva em conta que o laudo psicossocial, feito por uma assistente social e um psicólogo, diz que ela tem condição plena de tomar conta da criança. Também ignora o fato de ela ter sofrido violência doméstica. O ex-marido, inclusive, respondeu por isso e também por tentativa de homicídio qualificado", relatou”.
De qualquer forma, eu espero muito que o MM. Juiz que prolatou essa sentença estarrecedora tenha se valido de argumentos outros que realmente indicassem que a mudança da criança para Joinville-SC, para conviver com o pai, seria a melhor medida para garantir os interesses do menor. Ou, que o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro faça justiça ao julgar o recurso cuja interposição já fora adiantada nos meios de comunicação.
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*Rafaela R. Brands é advogada. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.