No último dia do mês de abril deste ano de 2019, foi editada pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, a medida provisória 881/19, que teve por objetivo instituir a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecer garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, além de dar outras providências. A MP visa precipuamente trazer dinamismo no mundo das relações econômicas, sendo apresentada como “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”.
Vários pontos merecem aplausos, pois têm como objetivo desburocratizar a livreiniciativa. Dentre os quais se destaca o estampado no artigo 3º, IX, que dispõe que será considerada aprovado requerimento do cidadão quando o ente público não responde a determinado pleito em tempo determinado – é a chamada “aprovação tácita”.
Embora a MP seja merecedora de alguns elogios, como o acima, há pontos que merecem ressalvas. Este artigo abordará um deles: a alteração feita pelo artigo 7º, que alterou importante dispositivo do Código Civil Brasileiro: o que trata da desconsideração da personalidade jurídica, disciplinada no artigo 50.
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica permite que o patrimônio de sócios seja eventual e excepcionalmente alcançado para responder por dívidas contraídas pela sociedade que integram. No caminho inverso, bens da sociedade podem responder por dívidas contraídas por seus sócios. Para que a medida da desconsideração seja implementada, existem pressupostos que devem ser preenchidos e comprovados.
Em resumo, os pressupostos para o deferimento da medida eram a caracterização do desvio de finalidade da pessoa jurídica ou a confusão patrimonial entre os bens da pessoa jurídica e os da pessoa física. Na ocorrência de um desses dois fatos, restava configurado o abuso de personalidade, o que justificava ao magistrado deferir o pedido para desconsideração da personalidade jurídica através de um incidente processual, em via direta ou inversa.
A MP 881/19 atuou exatamente nesses pontos, alterando-os significativamente. Vejamos as alterações (em destaque) implementadas no Artigo 50 do Código Civil Brasileiro:
Antes:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Depois:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
§ 3º O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
Dentre as alterações, destaca-se:
- O credor passa a ter que comprovar que o devedor se beneficiou do abuso na utilização da personalidade jurídica a que integra;
- Passa a ser necessária a comprovação do dolo do devedor, ou seja, a sua intenção de lesar o credor mediante a utilização de sua pessoa jurídica;
- A confusão patrimonial passa a ser caracterizada pela análise de critérios objetivos;
- A existência de Grupo Econômico, por si só, não mais caracteriza a confusão patrimonial, cabendo ao credor preencher os requisitos acima.
Verifica-se que a MP alterou profundamente os requisitos autorizadores da medida, tornando-os de difícil alcance e,
Assim, se, por um lado, há quem defenda que foi privilegiado o princípio da separação das pessoas jurídicas/físicas, fato é que as alterações, a bem dizer, tornaram quase mais distante algo que já não era tão simples e automático (exceto para a Fazenda Pública e para os processos em trâmite na Justiça do Trabalho), pois a desconsideração da personalidade jurídica somente era decretada pelos Juízes após terem sido esgotados os meios convencionais de recebimento das dívidas e, quando comprovados os requisitos.
É importante reconhecer, contudo, que as alterações trazidas pela MP, de certa forma, apresentam-se consonância com a jurisprudência que vinha se formando acerca do instituto, principalmente no âmbito dos Tribunais Superiores.
Em vista disso, há uma maior preocupação com a solidez dos negócios jurídicos, que passarão a demandar maior número de garantias a serem acionadas para a hipótese de descumprimento de obrigações, pois os mecanismos processuais da desconsideração da personalidade jurídica perderão força, com a confirmação dos ditames da MP 881/19.
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*Bernardo José Drumond Gonçalves é advogado sócio de Homero Costa Advogados.
*Pedro Augusto Soares Vilas Boas é advogado sócio de Homero Costa Advogados.