Os cegos do castelo e a violência das torcidas de futebol
Luiz Felipe Guimarães Santoro*
“Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
(...)
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal.
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir. (...)”
Carlos Drummond de Andrade, "Nosso Tempo"
No final de semana passado confrontos envolvendo a torcida do Palmeiras ocorreram <_st13a_personname productid="em São Paulo" w:st="on">em São Paulo, contra torcedores da Portuguesa, e <_st13a_personname productid="em Minas Gerais" w:st="on">em Minas Gerais, contra torcedores do Cruzeiro. Várias pessoas se feriram gravemente nas imediações do Mineirão. No final de semana anterior, mais um embate na capital paulistana, dessa vez entre torcedores do São Paulo e do Corinthians. Poucos dias antes havia morrido mais um. Dessa vez no Méier, em confronto entre as torcidas de Fluminense e Botafogo. No mesmo tumulto outras duas pessoas foram feridas com arma de fogo.
Nos últimos anos a violência entre torcidas causou milhares de vítimas, dezenas fatais e centenas com ferimentos graves, incluindo diversas mutilações de órgãos. São paus, pedras, barras de ferro, facas, bombas e armas de fogo que tiram a vida de pessoas que deveriam estar ali somente para se divertir.
Mas infelizmente não estão. A grande maioria dos envolvidos nos tumultos entre torcidas está ali porque quer brigar. Querem mostrar que sua facção é mais poderosa que a rival e chegam até mesmo a agendar brigas e revanches por internet. É a completa degradação do ser humano!
Usando o futebol como pano de fundo para seus interesses espúrios, esses marginais somente contribuem para afastar o cidadão de bem – e seus filhos- dos estádios brasileiros. Como se não bastassem as filas para comprar ingresso, a completa desorganização do “espetáculo”, a livre ação dos cambistas, a falta de estacionamento, a ação dos flanelinhas, a falta de comida de qualidade, a falta de banheiros decentes, o horário esdrúxulo (22h!) aqueles que querem acompanhar seus times ainda têm que se arriscar a encontrar pela frente esses criminosos travestidos de torcedores.
Sem se falar naqueles que estão passeando ou trabalhando, a quilômetros de distância dos estádios, e sofrem agressões ou prejuízos pela ação desses baderneiros, tendo em vista que o tumulto nem sempre ocorre nas imediações das praças esportivas. Os “torcedores” não têm hora nem local para atacar: estações de trem, de metrô, terminais de ônibus, nada escapa da fúria desses dementes.
Não é de se estranhar que em pesquisa realizada em 2004 (Lance!/IBOPE), a violência tenha sido apontada por 79% dos entrevistados como a principal causa de afastamento do torcedor do estádio.
Sempre que acontecem fatos como esses, levantam-se vozes de todos os lados, discute-se o fim das torcidas organizadas e muitos tentam capitalizar o combate à violência para seus projetos pessoais.
Em mais uma tentativa de lidar com o problema, o Ministério do Esporte criou, em março de <_st13a_metricconverter productid="2005, a" w:st="on">2005, a Comissão “Paz no Esporte”. Superada a fase de estudos, que incluiu análise minuciosa do Relatório Taylor que enfrentou tal questão na Inglaterra no início dos anos 90, acabam se ser anunciadas algumas medidas, como, por exemplo, o cadastramento dos membros das torcidas organizadas e local específico nos estádios para estes torcedores; categorização das partidas de acordo com o histórico de risco e implementação de medidas de segurança e planos de ação com base na categoria estabelecida (A++: extremamente perigoso, A+: muito perigoso, A: perigoso, B: pouco perigo, C: tranqüilo); sistema de monitoramento por câmeras de segurança; e fechamento das bilheterias quatro horas antes do início das partidas.
Como se observa, algumas dessas medidas, como planos de ação e câmeras de segurança, embora já existam no Estatuto do Torcedor não foram colocadas em prática e nada aconteceu. Outras medidas, por sua vez, são interessantes, mas temos que acompanhar a forma como implementadas, além da fiscalização e punição em caso de descumprimento. Se não houver punição, inclusive - e principalmente - para os torcedores baderneiros, o problema da violência se arrastará indefinidamente.
Infelizmente não temos tempo para resolver a questão por intermédio da educação, que seria a via mais adequada. A situação chegou num patamar insustentável. Se não houver punição efetiva será muito difícil erradicar esse mal que empesteia o futebol brasileiro.
Na Inglaterra, por exemplo, os torcedores que promovem baderna são impedidos de freqüentar estádios e aqueles que invadem o campo são (e ficam!) presos. Nenhum estádio inglês tem alambrado, mas todos eles têm uma singela comunicação: “Pitch invasion is a criminal offence” (Invasão de campo é crime). Com os inúmeros problemas que temos na questão da segurança pública e no sistema prisional será que dá para prender – e manter preso - quem invade um campo de futebol? Seria ótimo, mas tememos ser inexeqüível.
Embora o exemplo inglês deva realmente ser analisado e devidamente adequado à nossa realidade, temos que ter em mente um aspecto que ninguém enfrenta quando traça um paralelo entre a batalha contra os hooligans ingleses e a situação brasileira: o conjunto de medidas que resolveu a questão na Inglaterra trouxe inúmeras melhorias para os estádios em termos de segurança, conforto, etc., mas também causou um aumento significativo no preço do ingresso das partidas, sendo que o local mais barato, em poucos anos, passou de <_st13a_metricconverter productid="5 libras" w:st="on">5 libras (cerca de R$ 20,00) para <_st13a_metricconverter productid="30 libras" w:st="on">30 libras (cerca de R$ 120,00). Deixando a conversão monetária e a diferença econômica de lado, seria como se a arquibancada passasse dos R$ 15,00 atuais para R$ 90,00!
Sem comungar da generalização absurda, preconceituosa e estúpida de que “pobre é baderneiro e rico é comportado”, é inegável que tal aumento no preço dos ingressos alterou sobremaneira o perfil do torcedor que freqüenta os estádios ingleses. Até hoje é discutida por lá a questão dos torcedores que por décadas seguiram seus clubes e agora foram “priced out of the game” (ou seja, foram excluídos dos estádios por não poderem mais pagar pelos ingressos).
Outro fator que contribuiu – e muito – para a erradicação da violência nos estádios ingleses foi a obrigatoriedade de se ocupar o local determinado no ingresso. Em todos os setores do estádio os lugares são numerados e a numeração é respeitada, o que acaba auxiliando na separação dos eventuais baderneiros. Sim, eu freqüento estádios e mesmo quando vou nas numeradas sequer dou atenção para o número correspondente ao meu ingresso e não gosto muito quando alguém sentencia: “O senhor está no meu lugar”. Mas da mesma forma que os demais freqüentadores de estádios de futebol, também terei que me acostumar a uma norma dessa natureza se quiser contribuir para um melhor ambiente nos espetáculos esportivos. Assim como no teatro, em alguns cinemas e nas apresentações do Cirque du Soleil. Afinal, o futebol, enquanto negócio, faz ou não faz parte da indústria do entretenimento?
Somente com palavras e belos projetos não conseguiremos conter a violência entre torcidas. Precisamos de medidas factíveis, acompanhadas de fiscalização e punição. Será que os cegos do castelo só abrirão os olhos para esse problema quando 96 pessoas morrerem num mesmo jogo, a exemplo do que ocorreu no estádio de Hillsborough, Inglaterra, no fatídico 15/4/89? A partir daquela tragédia toda a estrutura do futebol inglês foi modificada. Tomara que no Brasil não seja necessário tamanho sofrimento.
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*Vice-presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP - Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo, diretor do IBDD - Instituto Brasileiro de Direito Desportivo e sócio do escritório Santoro, Almeida e Andries - Advogados