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Comunicação: Direitos Humanos Fundamentais - Alicerces éticos para seu exercício, numa perspectiva cristã

Das Gerações de Direitos nos veio o reconhecimento da existência de direitos fundamentais. Tal qualificação deriva da essencialidade dos conteúdos contemplados, no perpassar de um itinerário de lutas e reivindicações. O fator religião tem exercido influência direta e mesmo condicionante a esse conjunto de valores humanos e sociais, especialmente como fonte principiológica e valorativa. Nesse olhar, o Cristianismo se revela fonte contínua de inspiração e orientação. Com efeito, desde o "direito dos direitos" - o direito à vida - passando pelos subjetivos, como o à liberdade de crença e culto, constata-se a presença cristã nesse campo. Por isso, este trabalho pretende apresentar as referências desse segmento religioso à conformação dos fundamentos de uma ética voltada a tais direitos. Para tanto, reconhece os referenciais teóricos dos estudos religiosos, filosóficos e jurídicos, para demarcar as bases que, aos Direitos Humanos Fundamentais, têm sido diretamente tributadas do Cristianismo.

26/9/2006


Comunicação:
Direitos Humanos Fundamentais - Alicerces éticos para seu exercício, numa perspectiva cristã

 

Robson do Boa Morte Garcez*

RESUMO

 

Das Gerações de Direitos nos veio o reconhecimento da existência de direitos fundamentais. Tal qualificação deriva da essencialidade dos conteúdos contemplados, no perpassar de um itinerário de lutas e reivindicações. O fator religião tem exercido influência direta e mesmo condicionante a esse conjunto de valores humanos e sociais, especialmente como fonte principiológica e valorativa. Nesse olhar, o Cristianismo se revela fonte contínua de inspiração e orientação. Com efeito, desde o "direito dos direitos" - o direito à vida - passando pelos subjetivos, como o à liberdade de crença e culto, constata-se a presença cristã nesse campo. Por isso, este trabalho pretende apresentar as referências desse segmento religioso à conformação dos fundamentos de uma ética voltada a tais direitos. Para tanto, reconhece os referenciais teóricos dos estudos religiosos, filosóficos e jurídicos, para demarcar as bases que, aos Direitos Humanos Fundamentais, têm sido diretamente tributadas do Cristianismo.

 

INTRODUÇÃO

 

A oportunidade do tema.  O mundo de nosso tempo - a despeito das conquistas científicas, do crescimento da riqueza produzida, dos avanços tecnológicos, e da suposta organização internacional que a formação dos blocos de países sugere e da própria globalização – o mundo de nosso tempo permanece sendo palco de agressões ao homem, à vida, ao Doador da Vida.

 

Com efeito, se vistos os contínuos problemas vividos pelas populações das grandes e das pequenas cidades (violência, desemprego e falta de amparo social); se vistos os abusos de poder praticados por quem deveria promover e prover as condições a que o bem público ou comum se concretizasse; se vistos os freqüentes escândalos decorrentes de violações da lei, quer por omissão, quer por corrupção, no âmbito dos agentes políticos; se vista, por fim, a bastante visível inércia que parece ferir de morte o cidadão comum, ante tantos problemas que inviabilizam a efetivação do exercício de seus direitos humanos fundamentais, então, dúvida não pode restar sobre a permanente importância de serem estudados os DHFs.

 

Tomando como referencial teórico a visão do homem, como ser criado por Deus, adotada por Francis A. Schaeffer, bem como a visão de direitos humanos fundamentais eleita por Norberto Bobbio, e principalmente apontado referências bíblicas, este trabalho propõe-se a apresentar à discussão alguns alicerces éticos aos DHFs obtidos da fé cristã.

 

Esta comunicação tem o objetivo de expor as referências éticas (principiológicas e valorativas) que a Fé Cristã apresenta para que essa categoria de direito possa ser realizada. Não se elege, aqui, um olhar exclusivista quanto à contribuição do Cristianismo à conformação dos DHFs, mas se procura reconhecer e assinalar tal ramo religioso como uma das matrizes mais relevantes desses direitos. Tal aspecto (a contribuição cristã) com alguma freqüência é esquecido, notadamente no que diz respeito à materialização pelo exercício dos DHFs em nosso tempo.   

 

I. Direitos Humanos Fundamentais

 

Para início de conversa, faz-se necessário apontar o porquê da existência desses direitos. A organização do Estado – esse ente supra-individual que se personifica e é dotado de poder e força para realizar os seus fins – impõe a contrapartida de direitos e salvaguardas aos cidadãos (o povo: elemento vivo do Estado), sob pena de serem solapados por aquele. Ao falar desses direitos e sua relação com o constitucionalismo1, Alexandre de Moraes (2003: 19) afirma que os DHFs, como atualmente concebidos, seriam produto da fusão de diversas fontes, desde as tradições arraigadas nas diversas civilizações, chegando à conjugação dos pensamentos jus-filosóficos, das idéias advindas com o Cristianismo e com o direito natural. (destaque meu). E afirma o dinâmico estudioso do Direito Público que:

“Essas idéias encontravam um ponto fundamental em comum: a necessidade de limitação e controle dos abusos de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado moderno e contemporâneo”.                 

Cabem aqui as palavras de Lord Acton: “O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”2.

 

Tais DHFs  (com seus instrumentos legais de garantia) cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos, e têm – como ensina Canotilho -  uma dupla perspectiva, na defesa dos cidadãos: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente suas ingerências na esfera jurídica individual e (2) implicam, em um plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)3.      

 

Num olhar cronológico, os doutrinadores das Ciências Jurídicas identificam o surgimento dos DHFs como decorrência de um processo lento e gradativo a que se atribuiu o nome de Gerações de Direitos.  Nesta perspectiva, é sempre oportuna a lição de Norberto Bobbio, ao afirmar “os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem  nascer” (1992: 6). E o jurista italiano classificava essas gerações de direitos fundamentais como sendo, a primeira delas, a do surgimento dos direitos de liberdade (ou um não-agir do Estado); a segunda, a do aparecimento dos direitos sociais (ou uma ação positiva do Estado); a terceira, a do reconhecimento de direitos trans-individuais ou  difusos,  como  o  de  viver  num  ambiente  não  poluído; a quarta, por seu turno, abarcaria os direitos relacionados à pesquisa biológica, com, por exemplo, os limites da manipulação do patrimônio genético de cada indivíduo. Cabe bem citar aqui a seguinte reflexão:

“Os Direitos Humanos são fundamentais ao Homem pelo fato de ele ser homem. Não resultam de uma concessão da sociedade política, mas constituem prerrogativas inerentes à condição humana. Os Direitos Humanos não são estáticos, mas, acompanham o processo histórico; processo não linear, pois também conhece retrocessos. Foi apenas no século XX, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, que eles se definiram explicitamente e adquiriram o reconhecimento mundial”.4

II.  Alicerces éticos para exercício dos DHFs, numa perspectiva cristã:

 

<_st13a_metricconverter productid="2.1 A" w:st="on">2.1 A visão bíblica de Deus e do homem.

 

Para a Fé Cristã, o homem transcende o mero ser vivente, mas é contemplado como “imagem e semelhança” de Deus. Portanto, o corolário dessa concepção inicial é a aceitação prévia da existência de um ser superior, perfeito e eterno, que é o referencial do homem.  Este foi criado para glorificar a esse Deus e a gozá-lo para sempre. Todos os seus atos devem ser destinados à glória do seu Criador. O primeiro dos Dez Mandamentos do chamado Decálogo afirma: “Não terás outros deuses diante de mim” (Bíblia Sagrada, Êxodo 20.3 e Deuteronômio 5.7).  Como afirma Hans Ulrich Reifler (1992: 59), em seu pertinente livro acerca da ética existente no Decálogo:

 “O primeiro mandamento é o testemunho da singularidade e exclusividade de Deus, ou seja, revela o Senhor em Seu caráter, Seu ser e Sua ação. A questão da existência de e revelação de Deus é o ponto fundamental da ética cristã. É impossível fazer uma ética cristã autêntica sem conhecê-lO. Portanto, o início da ética cristã consiste em conhecer a Deus e Sua vontade como revelados nas Sagradas Escrituras, procurando entender aquilo que Ele é. Quem é Deus e o que Ele exige do homem em termos morais: essas são as questões fundamentais de qualquer ética verdadeiramente cristã”. (destaques meus)

Esta é – a nosso ver - a referência primeira para que se reconheçam os DHFs, com perfeita legitimação a que sua busca e concretização sejam objeto de ingentes e contínuos esforços: o homem é criatura de Deus, que tem os seus propósitos para aquele que criou. O homem tem dignidade porque criatura de Deus é. Por isso, os DHFs seriam, na perspectiva que aqui adotamos, um meio para que os propósitos divinais se cumpram, em última análise.  

 

Não se trata aqui de embarcar no Humanismo puro e simples, com seus valores e pressupostos. Este movimento filosófico (que descambou na teologia liberal, que descarta a existência de Deus como Deus, na prática) toma o homem como padrão de tudo, eliminando quaisquer referências que lhe sejam externas. Para a compreensão dos DHFs numa perspectiva da ética cristã, por isso, faz-se necessário pôr em perspectiva o Humanitarismo, isto sim. Este, por sua configuração, alinha-se aos direitos fundamentais do ser humano e tem plena harmonia com as concepções cristãs.

Frans A. Schaeffer (1885:26ss), comentando a abolição da verdade e da moralidade, com foco nos EUA de meados do século passado, ao referir-se ao artigo de Martin E. Marty, “Prezados Republicanos: Uma Carta sobre Humanismo”, expõe com propriedade a necessária distinção entre uma coisa e outra:

“Neste artigo, ele confunde, de modo brilhante, os termos ‘ser humano’, ‘humanismo’ e ‘estar apaixonado pela humanidade’. Por que faz isso? Como historiador, ele sabe a distinção entre os termos, mas quando termina de ler estas páginas, o pobre leitor, que não sabe, fica com a erradicação das distinções entre a posição cristã e humanista.

 

Admiro a sagacidade do artigo, mas, lamento que nele o Dr. Marty tenha passado para o lado humanista não religioso, confundindo-se totalmente.

 

Seria bom enfatizar aqui que não devemos confundir as coisas que o Dr. Marty confundiu. Humanitarismo é ser humanitário, bondoso, ajudar as pessoas e tratar as pessoas como seres humanos. As humanidades são os estudos das artes, literatura, música etc. Humanismo é a colocação do homem como centro de todas as coisas, fazendo-o a medida de todas as coisas.

 

Em contraste ao conceito materialista, o Homem na realidade é feito à imagem de Deus e tem verdadeira qualidade humana, humanidade”.                              

Não há dúvidas de que, passadas três décadas, as palavras acima têm visível contemporaneidade, pois muitos defensores dos direitos humanos se esforçam para embasar suas pretensões em postulados humanistas (independentes de Deus) e não de cunhos humanitários (isto é, não focados em suposta auto-suficiência do homem, mas tomando-o como sujeito de complexas limitações).

 

Nessa linha de raciocínio ainda, entendemos caberem as palavras do mesmo filósofo-teólogo, ao salientar que o cristão não pode abandonar, com base no que crê acerca do Humanismo, os valores das Humanidades e, tampouco, dos valores Humanitários:

“Os cristãos deveriam ser os mais humanitários de todos os povos. Certamente também os cristãos deveriam se interessar pelas humanidades como produto da criatividade humana, possível porque as pessoas são feitas de forma especial à imagem do grande Criador. Neste senso de interesse nas humanidades seria correto falar de um humanista cristão. (...) Significaria então que o cristão está interessado (como todos devemos estar) no produto da criatividade das pessoas. Neste sentido, por exemplo, podia-se dizer que Calvino era humanista cristão por conhecer tão bem as obras do escritor romano Sêneca. John Milton e muitos outros poetas cristãos também poderiam ser chamados de humanistas. Não só pelo conhecimento de sua própria época, como também da Antigüidade”. (Idem, p.27).    

Portanto, pensar nos DHFs é levar em conta, antes de tudo, o homem, e este como um ser criado por Deus, cuja existência individual e coletiva deve se balizar por esse pressuposto, que é sua referência ética central. 

 

<_st13a_metricconverter productid="2.2 A" w:st="on">2.2 A visão cristã da autoridade

 

O Prof. Dr. Osvaldo Hack, no excelente artigo Convivência Humana: Ética Cristã e o Exercício da Cidadania, publicado na revista Um Olhar sobre Ética e Cidadania, nº 2, no ano de 2002, relacionou - entre os princípios cristãos ou mandamentos relacionados com o exercício da cidadania, exatamente a autoridade e as decorrências práticas de sua concepção.  Com efeito, o princípio ético da autoridade, na perspectiva cristã, encontra sua referência textual primeira no 5º mandamento o Decálogo:

“Honra a teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor, teu Deus, te dá” (Êxodo 20.12).5

A proposta do Cristianismo para a educação cristã, a organização familiar e, principalmente, a estruturação da sociedade encontra no quesito autoridade um valoroso ponto de referência.

 

Para melhor visualizarmos esse alicerce, faz-se indispensável reconhecer uma noção básica da hierarquia no núcleo básico da sociedade, que é a família. É neste círculo inicial que o indivíduo recebe (ou não) os rudimentos de sua compreensão acerca do sentido da vida, vindo a tornar-se capaz de dimensionar os valores e até paradigmas que nortearão seu comportamento.

 

Na perspectiva cristã, a obediência às autoridades constituídas (expressão que empregamos aqui latu sensu, tendo em vista a larga amplitude em que pode tal pode ser empregada), tem seu fundamento de validade nesse 5º mandamento.

Adotamos aqui tal compreensão – a de que a noção bíblica de autoridade é um alicerce ético para o exercício dos DHFs – principalmente levando em conta a mentalidade reinante em nosso tempo, de perene busca de independência e auto-afirmação pelos indivíduos. Tal objetivo, por importante, precisa – sob pena de se contínuos desajustes pessoais, estar ancorado nesse princípio (da autoridade).

 

Citando Hack, ainda, encontramos uma descrição clara do que propomos:

“O princípio da autoridade deve ser analisado como um dos grandes desafios da sociedade atual, devido aos movimentos contestatórios, aos questionamentos pelo exercício ilegítimo da autoridade e à ausência de autoridade familiar e social, provocando o caos ameaçador em todos os segmentos do relacionamento humano. Onde não há autoridade, imperam a desordem, o desrespeito e a violência. Deus criou o mundo em ordem; o próprio universo  obedece a leis estabelecidas. Cabe ao ser humano aprender a conviver com seus iguais e com todo o cosmos”.6          

Portanto, compreendemos que o pensar em DHFs implica envolver tal reflexão e, principalmente, sua realização, na visão estruturante do princípio da autoridade.   

 

2.3 Reconhecimento da influência e contribuição objetiva do Cristianismo à formulação, desenvolvimento e consolidação dos Direitos Humanos Fundamentais.

 

2.3.1 Os caminhos da convivência.

 

Muitos dos temas que ao longo do tempo foram conformando os DHFs, até mesmo sob a legenda de “conquistas”, esses tais já estão previstos nas páginas das Escrituras Sagradas dos cristãos, especificamente a Bíblia Sagrada, composta pelos 69 livros do Antigo e do Novo Testamentos. Isto pode ser comprovado, por exemplo, com o direito à proteção dos idosos. Em nosso país, somente há pouco tempo foi promulgado o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003).  Entretanto, desde os dias dos patriarcas hebreus, é imutável a ordem de Deus é “Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá” (êxodo 20.12 e Deuteronômio 5.16). Este mandamento, citado, há pouco, como base do princípio ético da autoridade, sabemos que foi recepcionado em sua íntegra pelos discípulos e seguidores de Jesus Cristo, agora com seu teor aprofundado pelo mandamento maior: “Amarás a teu Deus de todo teu coração, (...) de toda a tua alma e de todo o teu entendimento, e amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22.35-39). O que vemos são os ditames da convivência harmoniosa do indivíduo em suas três esferas (interna, externa e transcendental) estando presentes e até subjacentes ao longo dos textos do Cristianismo. O próprio Cristo, em afirmação basilar às regras de convivência dos seus seguidores, proclama de modo claro: “Nisto todos vos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Evangelho de João 13.35).

 

Também a prática religiosa cristã vai além do mero discurso, como vemos o apóstolo Tiago cotejando fé e obras, dizendo-as indissociáveis: “Se o irmão ou irmã estiverem nus, e tiverem falta de mantimento cotidiano, e se alguém lhe disser: Ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos; e lhe não derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí?” (Epístola, 2.15-16)

 

Todos esses comandos bíblicos foram adotados pela Igreja Cristã dos primeiros séculos, como é o registro do Livro dos Atos dos Apóstolos e de alguns escritos históricos dos dois primeiros séculos da Era Cristã. Bem mais tarde, no fim da Idade Média, com o movimento denominado Reforma Religiosa, houve a retomada desses valores. Desse importante momento, destacamos a contribuição oriunda de João Calvino (1509-1554). Tomamos aqui apenas uns registros reflexos e não o estudo objetivo da obra social do Reformador de Genebra, tema que exige trabalho específico.

 

A Reforma, ao lado da renascença das artes e da cultura, foi o campo da transição entre o modo de pensar caracteristicamente medieval e o surgimento do pensamento moderno. Com isso, diz Ricardo Gouvêa, retomou-se o estudo das fontes helenistas e judaico-cristãs, berço da cultura ocidental. Por conseqüência, tornou-se a descobrir “a verdadeira natureza da fé cristã expressa no texto bíblico, finalmente disponível para estudo nas línguas originais, e também uma redescoberta da filosofia clássica, incluindo a reflexão ética e sóciopolítica dos sábios da Antigüidade”.7   

 

Este autor, ao comentar a cosmovisão calvinista, ante as conquistas éticas e sóciopolíticas da Reforma, registra que a ética social proposta nessa concepção se fundamenta em três pilares: vocação, economia ou poupança e honestidade. Assim, Vocação implica a universalidade do chamado divino para uma tarefa social, sendo o homem um partícipe na construção da cultura e da própria sociedade. Na ética calvinista do trabalho, paralelamente, o fruto do labor deve ser empregado com parcimônia: gastar não mais do que se tem, assim como nunca com o desnecessário.

 

Biéler, demonstrando a compreensão weberiana desse fenômeno, oferece-nos uma exposição deste fato:

“(...) um espírito novo, prossegue, provocou a transposição de uma situação pré-capitalista – em que o povo, em geral, trabalha exatamente o bastante para satisfazer as suas necessidades vitais, como em todas as sociedades primitivas – para a situação característica do desenvolvimento econômico moderno. Tal espírito incita cada indivíduo a trabalhar além do mínimo necessário e, além disso, é comum a toda uma população”. (1999: 140)

E, continua o notável acadêmico da Universidade de Genebra, agora relacionando tal comportamento à sua causa motriz, que muito nos interessa aqui, a saber, o alicerce ético extraído da fé cristã:

“Ora, observa Weber, para que tal ímpeto empolgue o conjunto de um povo, de forma constante, é preciso que seja produzido por religião comum a todo o povo. É precisamente isso que caracterizou o protestantismo. Ensinou a primeira moral cristã, que conferiu caráter religioso ao trabalho”. (idem, ibidem – destaque meu).

Essa conduta frugal viria a ser um dos fundamentos históricos dos povos capitalistas, ao lado da adoção do empréstimo remunerado (com juros), viabilizando o surgimento de bancos e de um sistema financeiro, abrindo caminho ao enriquecimento pessoal. Por fim, a honestidade nos negócios, como um elemento muito importante da ética do trabalho na concepção calvinista; este importante princípio seria o filtro a que cada um buscasse não enganar os outros para seu próprio benefício.

 

Mas, como decorrência do afastamento verificado desse importante referencial ético, como vemos em nosso tempo, afirma o mesmo autor:

“O capitalismo laissez-faire e o capitalismo selvagem são, na verdade, distorções da idéia original calvinista de uma sociedade capitalista em prol de uma sociedade egoísta em que cada um pensa em si e usa ou engana o semelhante na medida em que sua astúcia permite. Trata-se de uma mistura de capitalismo calvinista com machiavelismo. A Bíblia diz que ninguém já que possa discernir as próprias faltas. Por isso, a cosmovisão calvinista implica um sofisticado sistema de checagens e balanceamentos que visam promover justiça e evitar que todos sofram pela fraqueza de alguns. A prática de auditoria, que está se tornando cada vez mais comum hoje em dia é o resultado dessa mentalidade em que a transparência é valorizada como bem supremo da sociedade e indispensável para o sucesso econômico”. (Idem).           

2.4 Um olhar mais amplo a alguns alicerces éticos de origem cristã ligados ao Direito

 

Imenso é o rol de registros em que é possível reconhecer como direta a contribuição do Cristianismo para o reconhecimento e consolidação dos DHFs que, neste ponto do trabalho, são citados aqui apenas embrionariamente:

 

a) O direito à vida - Direito dos Direitos, como tem sido considerado, tem na Bíblia e no ensino cristão uma referência ímpar: Deus é o Autor da vida, razão porque só a ele é reconhecida a prerrogativa de tirá-la ou de autorizar alguém a que faça isso em seu nome, como há inúmeras passagens nas páginas escriturísticas. A ordem consagrada é “Não matarás” (6º mandamento do Decálogo). Portanto, a vida - não só humana, mas, para efeito deste estudo, notadamente a do homem - é contemplada como além do mero viver/sobreviver, mas o bem viver ou a atribuição de qualidade à vida. É a vida considerada em direta conexão com a sua dignidade.

      

b) O princípio da dignidade da pessoa humana - A doutrina cristã reconhece a dignidade da pessoa humana, no prisma já anotado de ser o homem uma criatura de Deus, feita à sua imagem e semelhança. Podemos afirmar que o conceito de pessoa como categoria espiritual, como sujeito, dotado de valor inerente a si mesmo – enfim, com dignidade – surge com o Cristianismo (a filosofia grega precedente, na visão aristotélica, o via como “animal político”, pertencente ao Estado, em conexão com o Cosmos). É o que a doutrina patrística desenvolveria, com amplificação desse conceito em alguns pensadores posteriores e, como marco histórico, disso cuidou o pensamento da Reforma o dele subseqüente. 

 

Embora não tendo fundo diretamente religioso, cabe bem aqui o magistério do constitucionalista alemão Podlech, que condensou uma “integração pragmática” na sua teoria dos cinco componentes da dignidade da pessoa humana:

(1) Afirmação da integridade física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável.

 

(2) Garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da personalidade.

 

(3) Libertação da “angústia da existência” da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre os quais se inclui em a possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas.

 

(4) Garantia de defesa da autonomia individual através da vinculação dos poderes públicos a conteúdos, formas e procedimentos do Estado de Direito.

 

(5) Igualdade dos cidadãos - expressa na mesma dignidade social e na igualdade de tratamento normativo - isto é, igualdade perante a lei.8 

Estes princípios são de todo reconhecíveis nas páginas das Escrituras Sagradas dos cristãos, como tem tentado mostrar esta breve comunicação.

 

c) A valorização da mulher, pelo reconhecimento histórico dos seus direitos e da sua inerente dignidade, que começa pelo tratamento que o próprio Jesus Cristo dispensa a tais pessoas.  Esta é uma das conquistas (cristãs) de nosso tempo. No programa de Mestrado em Ciências da Religião desta Universidade há um número considerável de trabalhos em torno deste oportuno tema, com visões não somente religiosas, mas, com centro nestas, de enfoques interdisciplinares.   

 

d) A liberdade religiosa e suas facetas, principalmente nas distintas noções de crença, de culto, de organização, estas como suas formas de expressão. As decorrências desse direito fundamental são – em essência – fundadas em valores prezados pela fé cristã: o direito à assistência religiosa aos internados e reclusos (a visitação aos necessitados é uma ordem de Cristo); o direito à objeção ou escusa de consciência (o Cristianismo Reformado reconhece e respeita o foro íntimo individual); o ensino religioso facultativo (o Cristianismo bíblico e puro não me parece amparar ‘religião oficial’, sendo a educação um dos deveres do Estado) e o reconhecimento da validade do casamento religioso para efeitos civis (a Igreja não é Estado, mas seus atos têm validade jurídica, como ente social).  

 

CONCLUSÃO

 

Ante a sensível importância dos Direitos Humanos Fundamentais para a história da humanidade, para a preservação da sociedade organizada e para a viabilização destas nos tempos vindouros, não há como negar que tais direitos ocupam um espaço estratégico entre os temas em permanente discussão e elaboração.

 

Muitos são os referenciais que podem ser adotados na apreciação e definição de seus parâmetros, tais como o sociológico, o econômico, filosófico. No campo religioso (este histórica e visceralmente ligado às origens dos direitos em geral) os DHFs encontram importantes referências principiológicas e também valorativas. Cremos não se fazer necessário discorrer, neste curto trabalho, acerca destas duas noções. Cabe, outrossim, o simples registro de que tanto princípios quanto valores são, via de regra, trilhos para a busca do sentido dos fatos, objetos e até pessoas, como chaves à sua interpretação e compreensão. Lembro-me bem do que Rizzatto Nunes leciona quanto aos princípios: “Nenhuma interpretação será bem feita se for desprezado um princípio. É que ele, como estrela máxima do universo ético-jurídico, vai sempre influir no conteúdo e alcance das normas”.9    

 

Por meio desta breve exposição e análise, pretendeu-se ressaltar algumas indicações que a Fé Cristã oferece ou pontua como necessárias ao efetivo reconhecimento dos DHfs e sua concretização com um lastro de valores éticos. Nossa falta de lastro neste campo, por certo, é um dos óbices a serem superados.          

“Precisamente um dos mais graves problemas culturais do Ocidente, hoje, é a ausência de um referencial comum, duradouro e universal. Já não há, para nós, clássicos: nem Homero, nem a Bíblia, nem provérbios... (...). Já o oriental acha-se respaldado, em segurança, sob a proteção da verdade de um passado milenar que ele aceita, que lhe é próprio, que o norteia, que o ampara e não o deixa entregue à perplexidade de quem está num mundo, onde tudo é vivido por primeira vez, sem raízes; que lhe é impertinente”.10 

A nosso ver, o referencial que não pode ser desprezado e, pelo contrário, deve ser reconhecido como basilar a que os DHFs sejam materializados, é o conjunto de valores éticos existentes na Fé Cristã, conforme as Sagradas Escrituras.  

___________ 

 

BIBLIOGRAFIA

 

A BÍBLIA SAGRADA.  Trad. de João Ferreira de Almeida. Ed. corrigida e revisada, fiel ao texto original. São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, 2005. 

 

BIÉLER, André. A força oculta dos protestantes. São Paulo: Cultura Cristã, 1999.

 

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 19ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). São Paulo: Atlas, 2006.

 

DE LIBERAL, Márcia Mello Costa (org). Ética e cidadania: um olhar sobre ética & Cidadania. São Paulo: Editora Mackenzie (Coleção Reflexão Acadêmica, vol. 1), 2002.

 

___________.  Ética e cidadania: um olhar sobre ética & cidadania. São Paulo: Editora Mackenzie (Coleção Reflexão Acadêmica - 2), 2002.

 

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais – teoria geral – comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5ª ed. – São Paulo: Atlas (Coleção Temas Jurídicos), 2003.

 

NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana – doutrina e jurisprudência.  São Paulo: Saraiva, 2002.

 

POUND, Roscoe. Desenvolvimento das garantias constitucionais da liberdade. Trad. de E. Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA (Biblioteca Clássicos da Democracia), 1965.

 

REIFLER, Hans Ulrich.  A ética dos Dez Mandamentos. São Paulo: Vida Nova, 1992.

 

SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana – uma análise do inciso III, do art. 1º da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Celso Bastos Editor – IBDC, 1999.

 

SCHAEFFER, Francis A. Manifesto cristão. Tradução de Elizabeth S. C. Gomes. Brasília: Refúgio Editora, 1985. 

_____________


1Constitucionalismo é o movimento em prol da elaboração de Constituição, esta tomada como o instrumento legal básico de um Estado, em que a organização política deste, seu funcionamento, forma de aquisição e exercício do poder e os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos são registrados. É um instrumento preventivo ao arbítrio.    

 

2Citado por Roscoe Pound, Desenvolvimento das garantias constitucionais da liberdade, p.7.

 

3Apud Alexandre de Moraes.  Direitos humanos fundamentais – teoria geral – comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5ª ed., p. 20.

 

4Disponível em https://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/margarid.htm - Acesso em 16 de junho de 2006.

 

5Cf. Ética e cidadania: a busca humana por valores solidários. In Ética e Cidadania, nº 2, p. 18 ss.

 

6Idem, ibidem

 

7Cf. Ética e cidadania: a busca humana por valores solidários. In Ética e Cidadania, nº 1, p. 15 ss.

 

8Apud Fernando Ferreira dos Santos, Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, p.67. 

 

9Obra citada, p. 19.

 

10Disponível em https://www.hottopos.com/vdletras4/jeans2.htm.  Acesso em 16 de junho de 2006.

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*Mestre em Comunicação e Letras pela U. P. Mackenzie e professor do Curso de Direito da FACCAMP



 

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