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A inconstitucionalidade da condução coercitiva do réu para participação em audiências e reconhecimentos pessoais

Se o réu não deseja comparecer à audiência, o juiz deverá advertir-lhe das consequências daquela decisão e peticionar ao juiz informando a opção do réu, antes do início da audiência.

11/6/2019

Olá, amigos! Espero que estejam bem.

Esta semana iremos falar sobre a ausência do réu devidamente intimado e a (im)possibilidade de ser conduzido coercitivamente à presença do juiz para participação em audiência ou reconhecimento pessoal.

Primeiramente, devemos consignar que o mandado de condução coercitiva diz respeito a uma ordem emanada de autoridade com atribuição legal para tanto, determinando a presença do suspeito, indiciado ou mesmo réu para prestar esclarecimentos ou realizar acareações e reconhecimentos.

É o que se extrai da leitura do artigo 260 do CPP:

Art. 260.  Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.

A vítima também poderá ser conduzida coercitivamente por força do artigo 201, § 1º, que informa que "Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade".

Entretanto, o legislador não informa qual seria essa autoridade, se policial ou apenas a judicial. Desse modo, entendemos que deverá ser aplicado por analogia o disposto no artigo 218, quando trata da condução da testemunha. Vejamos:

Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de Justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

Feito essas considerações preliminares acerca do instituto, devemos nos atentar agora para a inconstitucionalidade da condução coercitiva do réu. Para tanto, devemos esclarecer alguns pontos.

Em homenagem ao princípio da não autoincriminação (nemotenetur se detegere), previsto tanto na Constituição da República quanto no pacto de São José da Costa Rica, entendemos pela impossibilidade de o acusado vir a ser conduzido coercitivamente à presença da autoridade. Isso porque tal ato deverá sempre coincidir com a manifestação espontânea do acusado, em harmonia com sua defesa técnica, que é quem tem as condições necessárias de avaliar a necessidade de participação daquele nos atos a que for intimado.

Em relação à condução para seu interrogatório, não há dúvidas quanto à ilegalidade. Isso porque a questão foi recentemente discutida pelo STF.

Por maioria de votos, o plenário do STF declarou que a condução coercitiva de réu ou investigado para interrogatório, constante do artigo 260 do CPP, não foi recepcionada pela Constituição de 1988. A decisão foi tomada no julgamento das arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) 395 e 444. O emprego da medida, segundo o entendimento majoritário, representa restrição à liberdade de locomoção e viola a presunção de não culpabilidade, sendo, portanto, incompatível com a Constituição Federal.

Pela decisão do plenário, a autoridade que desobedecer a decisão poderá ser responsabilizado nos âmbitos disciplinar, civil e penal. As provas obtidas por meio do interrogatório ilegal também podem ser consideradas ilícitas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. Vejamos o acordão que só recentemente foi publicado.

A C Ó R D Ã O.

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do STF, em sessão plenária, sob a presidência da Senhora Ministra Cármen Lúcia, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria e nos termos do voto do relator, julgar procedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental, para pronunciar a não recepção da expressão "para o interrogatório", constante do art. 260 do CPP, e declarar a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. Destacam, ainda, que esta decisão não desconstitui interrogatórios realizados até a data do presente julgamento, mesmo que os interrogados tenham sido coercitivamente conduzidos para tal ato. (ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 395 DISTRITO FEDERAL. Relator: ministro Gilmar Mendes. Publicado em 22.05.19)

Como se vê, o STF reconheceu a inconstitucionalidade parcial do texto original do artigo 260 do CPP, ou seja, no que tange somente a impossibilidade de condução coercitiva do réu "para o interrogatório", permanecendo válido o ato para reconhecimentos, acareações, entre outros.

Entretanto, com a devida vênia, ousamos discordar da decisão, vez que a proibição deveria se estender a qualquer ato em que o réu não deseje participar, por estratégia de defesa.

A condução coercitiva representa uma clara violação à presunção de inocência e à dignidade da pessoa humana. Consiste em capturar o investigado ou acusado e levá-lo sob custódia policial à presença da autoridade, para ser submetido a interrogatório. A restrição da liberdade mediante condução por forças policiais em vias públicas não é tratamento que possa ser aplicado a pessoas ditas inocentes. A bem da verdade, com a espetacularização do processo penal, onde promotores e delegados concedem entrevistas relevando fatos e exibindo o suspeito, a condenação é quase medida impositiva.

Assim, a nós parece inconstitucional a condução coercitiva do acusado em qualquer hipótese, seja para participar de audiências, reconhecimentos ou qualquer outro ato. Sua presença deverá ser sempre facultativa.

O Mestre Aury Lopes Jr, a respeito do tema, sentencia com precisão:

"Quanto ao reconhecimento pessoal, nenhuma dúvida temos de que o imputado pode — voluntariamente — a ele se submeter, bem como pode se recusar a participar, na perspectiva do direito que tem de não produzir prova contra o seu interesse. Mas esse tema nunca foi pacífico e a prática policial (e também judiciária) brasileira infelizmente não respeita o nemo tenetur se deterege em relação ao reconhecimento, determinando sua realização ainda que o imputado não queira".

Não resta dúvidas de que a condução do réu para o reconhecimento viola o princípio do nemo tenetur se deterege e os tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil. Há ainda clara violação a dignidade da pessoa humana, vez que representa, sem dúvidas, restrição a liberdade do réu, sem justificativa plausível. Alia-se a isso o fato de que o instituto da condução coercitiva tem sido alvo de duras críticas de todos os setores, mormente porque provoca depoimentos falaciosos, prisões ilegais e violações a direitos fundamentais. Sem falar que a condução para reconhecimento tem gerado inúmeras condenações criminais injustas, conforme tem sido noticiado pela própria imprensa.

Tal reconhecimento, que tem sido alvos de duras críticas de nossa parte, até mesmo pelo flagrante desrespeito ao artigo 226, II do CPP. Diga-se de passagem, o reconhecimento tem sido feito, em algumas delegacias e fóruns, como muita frequência, em atropelo às normas processuais. A instrumentalidade não pode dispensar a formalidade. Jamais.

Por todos os motivos expostos, acreditamos que todo o texto do artigo 260 do CPP é inconstitucional. O réu só deverá comparecer a atos processuais quando assim restar determinado por ocasião da concessão de sua liberdade provisória com ou sem fiança. Ai sim, não haverá violação em sua condução, pela própria natureza da medida.

Outro questionamento importante: E se o réu não pretende comparecer à audiência, o que o advogado deve fazer?

O comparecimento à audiência é ato discricionário do réu, cabendo a ele, preso ou solto, decidir sobre a conveniência de sua presença em juízo. Esse foi o entendimento da 16ª câmara de Direito Criminal do TJ/SP ao reformar sentença que obrigava acusado a participar de todas as oitivas de testemunhas em seu caso.

Com efeito, entendo que o comparecimento a audiência é ato discricionário do réu, cabendo a ele, preso ou solto, decidir sobre a conveniência de sua presença em juízo. Ele não pode ser forçado a comparecer em audiência, a toda evidência, sob pena de restar caracterizado indevido constrangimento ilegal. Neste sentido, o doutrinador Aury Lopes Jr., ao comentar do assunto, nos ensina que "está o réu obrigado a comparecer a todos os atos do processo? Como regra, não. Apenas quando o dever de comparecimento for determinado na concessão da liberdade provisória, após a prisão em flagrante, nos termos do artigo 310, parágrafo único do CPP. Outra hipótese de obrigação de comparecimento pode decorrer da incidência das medidas cautelares diversas, do artigo 319, I ou VIII ou da fiança do artigo 350 do CPP. Enfim, são todas situações em que o acusado foi preso em flagrante ou preventivamente e a liberdade é concedida mediante o dever de comparecer aos atos do processo. Fora desses casos, comparecer em juízo é uma faculdade, que atende aos interesses da defesa (pessoal e técnica), jamais um ‘dever’ processual cujo descumprimento acarrete uma sanção." (Processo 2166176-08.2018.8.26.0000).

Se o réu não deseja comparecer à audiência, o juiz deverá advertir-lhe das consequências daquela decisão e peticionar ao juiz informando a opção do réu, antes do início da audiência.

É extremamente arriscado pensar que um indivíduo possa ser forçado a participar de um ato constrangedor (e midiático) de produção de provas em seu prejuízo, violando princípios constitucionais e infraconstitucionais de toda monta, em especial o da não autoincriminação e o da presunção de inocência. A necessidade de salvaguardar a vítima e apresentar solução à sociedade, quando da violação do contrato social por determinado agente, não pode se sobrepor ao direito do art. 5º, LXIII da Constituição, sob pena de se tratar a Carta Magna como letra morta.

Fiquemos atento aos avanços de interpretação deste tema tão delicado.

__________

NETO, Francisco Sannini. Mandado de Condução Coercitiva e a Constituição da República.

JUNIOR, Aury Lopes e Pedro Zucchetti Filho. O direito do acusado de não comparecer ao reconhecimento pessoal.

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*Jairo Lima é sócio fundador do escritório Jairo Lima Advogados Associados. 

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