Migalhas de Peso

O sistema bancário e a operação Lava Jato

É imprescindível a imposição de sigilo aos profissionais desta área, não só pela confiabilidade que este setor da economia prescinde para operar, mas principalmente porque estas informações confidenciais são prestadas de forma cogente por aqueles que desses serviços necessitam.

11/6/2019

O sucesso da atividade bancária está intimamente ligado à discrição com que estas casas tratam os negócios de seus clientes, quer pela garantia do direito à intimidade, quer pelo dever de segredo profissional.1

A Constituição brasileira de 1988, em seu art. 5º, X, garante expressamente a inviolabilidade da intimidade e da vida privada do cidadão, direito este complementado pelo inciso XII, do mesmo artigo, no que tange ao sigilo de dados. Dessa forma, o sigilo bancário é um direito fundamental do indivíduo.

Como o sigilo financeiro está protegido por cláusula pétrea – conforme determinação do art. 60, §4º da Carta Maior – será inconstitucional qualquer emenda que vise abolilo.

E não há qualquer exagero no status desse direito; para tanto, basta lembrarmos de todas as espécies de informações que as instituições bancárias guardam sobre seus clientes tanto nos cadastros, como nos registros de movimentações financeiras, e que pertencem à esfera privada do cidadão.2

Assim, além de garantir a inviolabilidade da intimidade individual, é imprescindível a imposição de sigilo aos profissionais desta área, não só pela confiabilidade que este setor da economia prescinde para operar3, mas principalmente porque estas informações confidenciais são prestadas de forma cogente por aqueles que desses serviços necessitam.4

Contudo, basta um olhar um pouco mais atento direcionado às instituições bancárias para percebermos que, além do papel de principal fomentador do sistema financeiro nacional, para não dizer da atividade econômica do país, elas poderiam atuar também como fonte de dados ao Estado, tanto para questões fiscais como de controle das atividades do cidadão.5

Olhar, também, que não faltou aos criminosos, os quais passaram a se beneficiar das instituições bancárias na busca de seus interesses ilícitos. Em razão do uso maciço dos serviços bancários para a prática da lavagem de dinheiro6, em dezembro de 1988 o Comitê da Basileia, formado por representantes dos 10 países mais industrializados do mundo (G10), promulgou uma declaração sobre regras e práticas de controle da atividade bancária, direcionada às instituições financeiras, para que adotassem medidas visando evitar sua utilização ilícita na transferência e no depósito de recursos7.

Dentre as medidas propostas pela Declaração da Basileia estavam a necessidade de obter informações precisas sobre a identidade dos clientes, criar procedimentos para auferir a verdadeira titularidade das contas e dos bens e de negar a criação de vínculos com pessoas que se recusem a fornecer esses dados ou colaborar com as autoridades, não realizar operações suspeitas, além de instruir e treinar seus funcionários sobre os temas da declaração.8

Não obstante a importância dos preceitos trazidos pela Declaração da Basileia, essa não tinha caráter vinculante, tratando-se de um código deontológico, baseado na ideia de que a integridade das instituições bancárias e sua forte determinação em não compactuar com ilicitudes são as formas mais eficazes de combater a lavagem. Sua eficácia, porém, foi bastante limitada, chegando a ser ignorada pela maior parte das instituições financeiras com sede em paraísos fiscais.9

O Banco Central brasileiro, através da resolução 2.554, de 24/9/98, estabeleceu critérios para criar sistemas de controles internos nas instituições financeiras conforme as recomendações do Comitê de Supervisão Bancária da Basileia.10

Seguindo a tendência internacional de impor limites ao sigilo das operações bancárias em prol do combate à lavagem de capitais11, a lei 9.616/98, em seus arts. 10 e 11, determina diversas obrigações administrativas aos profissionais e às entidades elencadas em seu art. 9, dentre eles os profissionais do setor bancário.

Questiona-se, a partir disso, se o não cumprimento das regras administrativas previstas na Lei de Lavagem criariam o dever de garante, justificando, assim, o enquadramento da conduta como omissiva imprópria.

As condutas previstas na lei 9.613/98 são todas comissivas, entretanto, o non facere, dos crimes omissivos impróprios poderiam, em tese ocorrer12 bastando para isso a caracterização de um dever de garante e um resultado previsível e evitável.13

O dever de garante está previsto no art. 13, §2º, do Código Penal, imputando-lhe a quem “a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.”

Dessa forma, percebe-se que a Lei de Lavagem de Dinheiro não cria, através das obrigações administrativas nela previstas, um dever de garante, haja vista não estabelecer que o agente bancário impeça a prática de lavagem, mas apenas que elabore mecanismos visando colaborar com eventuais investigações, rotinas e procedimentos para sistematizar informações e comunicar operações suspeitas. Mesmo se consideradas as regras administrativas impostas na lei como fonte do dever de garante, ainda assim faltariam a capacidade de evitar o resultado e o dolo direto para configurar um crime por omissão.14

Contudo, o uso crescente da omissão imprópria, através de um suposto dever de garantidor, aproxima-se da responsabilidade objetiva, principalmente se se admitir o dolo eventual e a cegueira deliberada na tipicidade. Desta feita, importante haver cautela no reconhecimento da omissão imprópria no crime de lavagem de dinheiro.15

Recentemente, instituições bancárias de grande e pequeno porte foram citadas por delatores da operação Lava Jato, narrando como funcionários de tais instituições participaram e auxiliaram em esquemas de lavagem de dinheiro. O que torna claro que todo o investimento gasto por estas instituições financeiras com compliance, bem como todo o aparato legislativo estatal ainda não estão suficientemente aparelhados para identificar e coibir esta forma de criminalidade organizada.

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1 “Hablar del secreto en el ámbito de las transacciones mercantiles supone casi tanto como referirse a la inquebrantable discreción que las instituciones financieras suizas han mantenido a lo largo de toda su historia respecto de los negocios que les han sido confiados. En una Confederación cuyo vigente texto constitucional comienza con la más solemne invocación  a la Divinidad “en Nombre de Dios Omnipotente […] !” no debería de extrañar que la primera regla de conducta a seguir por la banca helvética pueda resumirse en la conocida cita bíblica según la cual la mano derecha no debe saber qué es aquello que hace la izquierda.” (FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A. El delito de blanqueo de capitales.  Madrid: Colex, 1998, p.93).

2 “De otra parte, los sujetos y las corporaciones que actúan en el marco de la intermediación financiera, así como en el campo más amplio de la intervención de operaciones económicas – notarios, registradores, agentes de cambio y bolsa, sociedades inmobiliarias, etc. –, no sólo administran dinero o valores ajenos, sino que además gestionan un auténtico torrente de información procedente de quienes contactan con ellos en el tráfico ordinario. Tales datos pertenecen en infinidad de ocasiones al ámbito de la vida privada de los clientes, con todo lo que ello comporta en orden a la garantía efectiva del derecho a la intimidad personal que todo ciudadano tiene; pero en otras – y con ello nos aproximamos al campo de la denominada “información privilegiada” – se hallan vinculados a la ejecución de operaciones económicas cuya reserva frente a terceros puede ser determinante respecto del buen fin de las mismas, cuando no es para el propio interés general.” (FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A. El delito de blanqueo de capitales.  Madrid: Colex, 1998, p.215).

3 “En efecto, a juicio de los expertos en análisis económico, la fiabilidad y el prestigio por el trabajo bien hecho de quienes intermedian en las operaciones de crédito –lo que en la doctrina anglosajona, y con caráter general, viene denominándose goodwill – constituyen elementos esenciales para el correcto desarrollo del mercado de capitales. Conocida la posición fundamental que ocupan estos sujetos en el  marco de la vida económica del país – no olvidemos que canalizan los recursos financieros de las economías domésticas hacia el ámbito empresarial, a la vez que intervienen en la mayoría de la ejecución de los pagos–, a nadie cabe ocultar la absoluta necesidad de que la comunidad social pueda confiar en la solvencia y la integridad de los mismos.” (FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A. El delito de blanqueo de capitales.  Madrid: Colex, 1998, p.214).

4 “En todo el mundo democrático, la confidencialidad de las operaciones comerciales constituye una manifestación más de derecho fundamental que tiene toda persona al respecto de su intimidad y de su vida privada, también en el ámbito de sus relaciones económicas. Por consiguiente, el mantenimiento del secreto bancario y comercial, en tanto que manifestación de genérico deber de secreto al que también se encuentran sujetos otros profesionales –médicos, abogados, sacerdotes, etc. –, no sólo debería de estar permitido, sino que su violación debería de estar sancionada adecuadamente por ley. De hecho, en el momento presente, hay muchos países en los que el quebrantamiento del deber de sigilo al que está vinculado el empleado de banca constituye un ilícito criminal castigado con penas de privación de libertad y multas de cuantía nada despreciable.” (FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A. El delito de blanqueo de capitales.  Madrid: Colex, 1998, p.93-94).

5 “A facilidade de atendimento ao grande público levou os órgãos da administração pública a utilizar intensamente a rede bancária nacional na arrecadação de sua receita. Junto com esses recebimentos surgiram outras atribuições, tais como o pagamento a funcionários públicos e beneficiários da Previdência, assim como prestação de serviços burocráticos-administrativos, que obrigaram os estabelecimentos bancários a criar controles para posterior informação ao Governo e aos clientes.” (FORTUNA, Eduardo. Mercado financiero: productos e serviços. 15.ed. Rio de Janeiro: Qualimark, 2002, p.7).

6 “Los bancos y el resto de instituciones financieras son los principales transmisores de dinero. Así las cosas, no debe extrañar que una de las operaciones que se efectúan con más frecuencia en el marco de los procesos de blanqueo consista en promover la circulación de esos capitales sucios a través del número que sea preciso de cuentas corrientes, entidades o jurisdicciones. Según datos de Naciones Unidas, los bancos ayudan de forma voluntaria o involuntaria a blanquear unos 100.000 millones de dólares anuales.” (FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A. El delito de blanqueo de capitales.  Madrid: Colex, 1998, p. 133-134).

7 PALMA HERRERA, José Manuel. Los delitos de blanqueo de capitales.  Madrid: Edersa, 2000, p.32.

8 BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. 2.ed. Navarra: Aranzadi, 2002, p.166.

9 “Se trata de un código deontológico, una declaración de principios “Statement of Principles” , de carácter no vinculante en consecuencia, basada en la idea que “[…] la primera y más importante protección contra el blanqueo de dinero es la integridad de los responsables de los bancos, así como su firme determinación de evitar que su institución se asocie a delincuentes o sea utilizada como vehículo para el blanqueo de dinero».” […] “La eficacia de las recomendaciones que se hicieron desde el Comité han sido muy limitadas. Por supuesto que se han desatendido por la mayor parte de las entidades de los países y territorios considerados paraísos fiscales, que siguen recurriendo al anonimato y al secreto como medio de atraer capitales de cualquier color, pero también han sido desatendidas en otros muchos que no tenían tal consideración y que sólo por la fuerza impositiva de las normas han acabado acogiendo tales principios.” (PALMA HERRERA, José Manuel. Los delitos de blanqueo de capitales.  Madrid: Edersa, 2000, p.34-35).

10 “A preocupação da resolução do BC é que os elementos dos conjuntos de controles internos estejam “em conformidade” com os riscos inerentes ao negócio. A essência dos artigos da Resolução n. 2.554 são as que seguem: Art. 1 – Implantação e implementação do sistema; adoção do sistema normativo; verificação sistemática de adoção e de seu cumprimento. Art. 2 – Divulgação do sistema normativo, incluindo a estrutura organizacional, a todos os níveis; avaliação sistemática de riscos; sistemática formal para avaliação, documentação e correção de desvios; testes de segurança para os sistemas de informação, principalmente os informatizados; adoção de auditoria interna. Art. 3 – emissão sistemática, no mínimo semestral, de relatórios de auditoria interna (com conclusões, recomendações e manifestação dos gestores das áreas) para: Conselho de Administração ou Diretoria; auditoria externa; ficar à disposição do Bacen por cinco anos. Art. 4 – Adoção de programas de treinamento e sensibilização dos funcionários para os controles internos e o papel de cada um no processo, incluindo padrões éticos, integridade e cultura organizacional. Art. 5 – Prazos para implantação e implementação do sistema de controles internos definidos: 31/01/99, definição das estruturas internas; 30/06/99, definição e disponibilidade dos procedimentos; 31/12/99, sistema de controles internos implementado. Art. 6 – Autorização ao Banco Central para: a) adoção de controles adicionais, se constatada inadequação dos controles internos implementados; b) inclusão de limites operacionais mais restritivos, se não atendido o prazo de 30/01/99.” (FORTUNA, Eduardo. Mercado financiero: productos e serviços. 15.ed. Rio de Janeiro: Qualimark, 2002, p.552).

1 “Concurriendo las circunstancias necesarias para el funcionamiento de tales límites, el deber de secreto cede ante un interés superior como es la lucha contra el blanqueo de capitales. El deber de secreto deja así paso de colaborar con las autoridades, por lo que si empleado bancario decide guardar silencio sobre los extremos requeridos por la normativa mencionada, ya no podrá alegar que actúa en el cumplimiento de un deber.” (PALMA HERRERA, José Manuel. Los delitos de blanqueo de capitales.  Madrid: Edersa, 2000, p.506-507).

12 “Em crimes onde o núcleo do tipo reside em verbos que possibilitam diversas condutas para a produção do resultado delituoso, o “non facere” pode enquadrar-se, perfeitamente, na descrição legal, como “prius” e antecedente ao evento”. (MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. v.II. Campinas: Bookseller, 1997, p.80).

13 “Nesses crimes, o agente não tem simplesmente a obrigação de agir, mas a obrigação de agir para evitar um resultado, isto é, deve agir com a finalidade de impedir a ocorrência de determinado evento.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – parte geral. v.1. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p.171).

14 BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos processuais e penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012.  São Paulo: RT, 2012, p.145-146.

15 “Nos crimes de lavagem de dinheiro, nota-se uma progressiva utilização da omissão imprópria como forma de atribuir aos dirigentes de instituições financeiras e empresas a responsabilidade penal pela prática do delito. A presunção de um dever de garantia é usada muitas vezes como instrumento de superação das dificuldades probatórias da participação efetiva e ativa dos dirigentes em atos de lavagem. E tal uso, em alguns casos – em especial se considerado suficiente o dolo eventual ou a cegueira deliberada para a tipicidade – aproxima-se da responsabilidade objetiva, uma vez que permite punir por lavagem de dinheiro o diretor de uma entidade apenas pelo fato de não impedir que funcionários pratiquem atos, dos quais, muitas vezes, sequer tinha conhecimento direto e efetivo. Por isso, necessária cautela no reconhecimento da omissão imprópria, cuja aplicação se dá apenas dentro das hipóteses legais, a ser elencadas.” (BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos processuais e penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012.  São Paulo: RT, 2012, p.143).

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*Ricardo Ribeiro Velloso é advogado criminalista do escritório D’Urso e Borges Advogados Associados.

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