1 Introdução
A seleção de julgamentos que, configurados como repetitivos, foram realizados pelo Superior Tribunal de Justiça, leva em conta três eixos fundamentais que, no entendimento do autor, definem o direito humano à saúde.
É necessário entender que, como premissa do raciocínio, o tema e o problema da saúde só podem ser interpretados no contexto mais abrangente da seguridade social, tal como definida pelo constituinte, em 1988. De fato, assim como resulta proclamado pela Constituição que a saúde é configurada em sistema único, é fora de dúvida que a mesma nada mais é do que um subsistema no interior do sistema constitucional mais abrangente – o verdadeiro eixo constitutivo da proteção social que é a seguridade social.
Assim sendo, a exegese dos comandos constitucionais aplicáveis à seguridade social deve levar em conta, necessariamente, o conjunto de objetivos (princípios) norteadores do sistema, tal como catalogados no art. 194, parágrafo único, da Lei das Leis.
Desses objetivos, o que mais se ajusta ao amplo e complexo problema da saúde é o da seletividade e distributividade das prestações.
A seguridade social é um devir constitucional e histórico. A implantação desse amplo programa de proteção social não depende apenas da adequada estruturação do aparelho do Estado e de bem ajustada cooperação com as pessoas privadas. Depende, igualmente, da amplitude de recursos financeiros que forem carreados para o setor.
Quanto a esse último aspecto, aliás, e como que a confirmar a peculiar estrutura normativa da área da saúde, trata-se do único segmento das atividades da Administração Pública cuja cota orçamentária já se acha definida em sede constitucional, como se pode verificar do teor da emenda constitucional 29, de 2000, que explicitou os quantitativos a serem destinados pelas distintas pessoas políticas – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – para o setor de saúde.
O constituinte, portanto, predefine o tamanho do setor e a parcela de recursos públicos que serão destinados à atenção devida à comunidade protegida em matéria de saúde.
2 Atendimento integral
Capacitemo-nos, inicialmente, ao exame do conceito estabelecido pelo art. 198 da Constituição. Nele o atendimento integral se apresenta, sem dúvida, como verdadeira mola propulsora do conjunto da proteção social sanitária.
Como se sabe, a expressão e seu sentido hodierno decorrem dos debates promovidos pela Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde em Alma-Ata no ano de 1978.
Do documento final expedido por aquele Conclave1 resulta a seguinte importante conclusão:
“VI) Os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e automedicação”.
Penso que se torna necessário sublinhar a seguinte expressão: “mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter”.
O tratamento e a cura dos doentes se inserem no principal direito da pessoa humana.
Eis o dado essencial a qualquer programa social. Dado que chama a atenção para realidade elementar: os dispêndios públicos que serão utilizados no financiamento desse programa devem encontrar suporte nas respectivas fontes de custeio.
É o que, aliás, torna cogente a regra da contrapartida catalogada no art. 195, § 5º, da Constituição: “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.
É como se o constituinte, em advertência prévia, quase que óbvia, estivesse alertando para a elementar diretriz que o homem prudente e probo cuida na gestão dos próprios negócios: não é possível despender (vale dizer, custear prestações de saúde, no tema de que nos ocupamos aqui) sem que se saiba, antecipadamente, de onde virão os recursos necessários e suficientes para o financiamento daquela específica despesa.
O tratamento e a cura dos doentes se inserem no principal direito da pessoa humana. É mais propriamente o direito à vida, de que cuida o artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim grafado: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.
É igualmente taxativo o art. 6 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos devidamente ratificado pelo Brasil, ao afirmar: “1. O direito à vida é inerente à pessoa humana”.
No oportuno comentário que exaram a respeito desse comando, Ana Carolina Rossi Barreto e Keilla Ellen Borges postulam que o direito à vida:
“se coloca à frente dos outros e, a mens legislatoris, afigura-nos no sentido de que a vida humana seja considerada um ponto central e equidistante em relação aos demais direitos. Um eixo do qual emanam todos os outros” (BARRETO; BORGES, 2018, p. 69).
Por mais eminente e relevante que seja o direito, no entanto, o mesmo está sujeito às limitações contingenciais que são próprias do Estado de Direito.
Essa é a razão justificadora de três julgados do STJ que, em sede de recursos repetitivos, examinaram o tema do fornecimento de medicamentos.
Aliás, esse tema, se ainda não acendeu todas as luzes amarelas, muito em breve se transformará em alerta vermelho.
Mal começou, força reconhecer, a judicialização das questões de saúde. Comparando o número de demandas com o volume numérico da população protegida, o quantitativo de processos é bem modesto.
No repetitivo 106, relatado pelo ministro Benedito Gonçalves, foi ordenado que existe obrigatoriedade do Poder Público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do Sistema Único de Saúde (SUS).
Estão fixados os seguintes requisitos:
“i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e iii) existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”, observados os usos autorizados pela agência.
Aqui, porém, importa reconhecer que o limitador do registro do medicamento na Anvisa é elemento essencial para o correto enquadramento da questão.
No entanto, há ingerência do Poder Judiciário nas atribuições do Poder Executivo quando intenta conferir complemento a ato normativo de execução das leis e, com tal providência, encaixar nesses atos certos medicamentos que ainda não tenham sido submetidos ao crivo da agência especializada.
E não deixa de ser paradoxal essa diretiva da jurisprudência quando a mesma colenda corte, com inegável acerto, e também em sede de repetitivo, dispensa os planos de saúde de fornecerem fármacos não catalogados nos normativos do SUS.
Deveras, no repetitivo 990, da lavra do ministro Moura Ribeiro, resulta estabelecido que:
“É legítima a recusa da operadora de plano de saúde em custear medicamento importado, não nacionalizado, sem o devido registro pela ANVISA, em atenção ao disposto no art. 10, V, da Lei 9.656/98, sob pena de afronta aos arts. 66 da Lei 6.360/76 e 10, V, da Lei 6.437/76. Incidência da Recomendação 31/2010 do CNJ e dos Enunciados 6 e 26, ambos da I Jornada de Direito da Saúde, respectivamente, A determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei; e, É lícita a exclusão de cobertura de produto, tecnologia e medicamento importado não nacionalizado, bem como tratamento clínico ou cirúrgico experimental”.
Os teores das duas decisões que fundamentaram o repetitivo representam adequada interpretação do conteúdo do atendimento integral.
É inconcebível que os recursos públicos sejam utilizados para o teste de experimentos.
Ninguém pode pretender a obtenção de proteção constitucional fora dos limites do ordenamento estruturador da máquina do Estado e que confere competência a órgão específico para qualificar como próprios à utilização no território nacional de certos medicamentos. Portanto, se inscreve dentro das incumbências da Anvisa ponderar sobre aqueles fármacos a serem admitidos ao rol dos medicamentos autorizados e, só depois, ordenar a respectiva colocação à disposição da comunidade protegida.
Ademais, é inconcebível que os recursos públicos sejam utilizados para o teste de experimentos, como bem pondera o mesmo julgado.
Do mesmo modo, nenhuma justificativa se sustenta quanto a tentativas de obtenção de medicamentos, produtos e tecnologias importadas ou não nacionalizadas.
A regra de ouro da interpretação da seguridade social é a da seletividade e distributividade das prestações. Já se sabe que não será viável, por absoluta impossibilidade financeira material, que todas as pessoas tenham acesso a todas as medicações possíveis e imagináveis.
O repetitivo 98, igualmente relatado pelo ministro Benedito Gonçalves, chega ao extremo limite de prever:
“Possibilidade de ser imposta a multa a que alude o art. 461 do CPC, nos casos de descumprimento da obrigação de fornecer medicamentos, imposta ao ente estatal”.
Aqui caberia indagar: a que cofre se destina a multa? Ao cofre do SUS estadual? Ou ao de um fundo qualquer cuja missão não é coincidente com a da promoção, proteção e recuperação da saúde?
Como um pioneiro dos estudos da proteção social no Brasil, Armando de Oliveira Assis destacava, na interpretação dos direitos sociais cumpre considerar o caso concreto que está diante do julgador sob a perspectiva de que o mesmo direito possa vir a ser concedido a todo o conjunto protegido. Assim escrevia o saudoso estudioso:
“por muito que se comova o coração humano do interpretador ou do julgador ante um caso pessoal, terá que ser contido pela indelével lembrança de que o seguro social é uma instituição de direito público – onde o social é a palavra de ordem – e em consequência não pode e não deve, sob hipótese alguma, ser deformado por interesses privados, de pessoas ou de grupos” (ASSIS, 1963, p. 154).
Há, com todas as vênias, nos julgados até aqui apreciados, certa particularização do interesse tutelado pela seguridade social.
É como se àquele indivíduo – dentre as milhões de pessoas protegidas – devesse ser conferido um cuidado diferenciado, até mesmo experimental, ainda que às custas e em detrimento do conjunto (todos) protegido.
A característica essencial da seguridade como sistema foi destacada em meu estudo sobre o tema. Ali escrevi que
“A seguridade social – combinação da igualdade com a solidariedade – é o sistema jurídico apto a conferir equivalente quantidade de saúde, de previdência e de assistência a todos quantos necessitem de proteção” (BALERA, 2016, p. 23).
Ao defender que seja conferida equivalente quantidade de saúde a cada beneficiário, propugnamos pela observância do prudente arbítrio do juiz na apreciação das situações concretas.
Aos requisitos impostos pelo repetitivo 106 valeria a pena acrescentar que ao laudo médico a ser apreciado pelo magistrado fosse acoplado – tal como recomenda a Resolução SS-83, de 17 de agosto de 2015, da Secretaria de Saúde de São Paulo – o referendo da instância institucionalmente definida para o fornecimento.
Essa seara de controle permitiria que os termos da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) fossem o parâmetro para a política de atenção básica da saúde rumo ao objetivo programático do atendimento integral.
Dentre os consideranda da referida resolução SS-83 consta a seguinte nota:
“[...] a judicialização [...] tem ensejado aumento exponencial das ações e impossibilidade de previsão orçamentária dos gastos dela decorrentes, rompendo os princípios basilares do SUS, sobretudo os da equidade, universalidade e integralidade”.
É disso que se trata! A avalanche de ações judiciais acabará por permitir que o interesse individual sobrepuje o interesse do conjunto da população, marchando contra o próprio ideário da equidade e da integralidade.
Revela Clara Angélica Gonçalves Dias o exato teor do princípio constitucional que confere qualidade específica às prestações ao dizer:
“Podemos resumir dizendo que a seletividade e a distributividade trazem o ideal de igualdade social, já que protegem aqueles que necessitam, diferenciando-os dos demais por se apresentarem em situação de desigualdade. A eficácia da distributividade está ligada diretamente à eficácia da seletividade” (GONÇALVES DIAS, 2008, p. 25).
Dito por outras palavras: considerado o plano de ação em favor da integralidade, o cardápio de prestações a serem conferidas deve estar sujeito a um corte que deve ser estabelecido com base na prudência. Prudência que levará em conta, de um lado, a exigência cada vez mais crescente de exames, diagnósticos, experimentos – cuja resultante, longe de ser meramente operatória, pode estar a serviço de expansão insuportável das demandas – e a contenção a ser ditada pela finitude dos recursos.
O sistema de saúde deve ser considerado como operador estratégico em favor dos usuários e a ele deve ser permitido programar as demandas a partir de necessidades do coletivo. O indivíduo, nas suas naturais e respeitáveis aflições.
Neste sentido, é importante destacar que a integralidade deve andar sempre acompanhada da prudência, uma vez que deve se diferenciar a utilização indiscriminada de tecnologias de diagnóstico precoce, que apenas têm utilidade para expandir o consumo de bens e serviços, da utilização das mesmas tecnologias com a perspectiva de assegurar o direito do usuário do sistema público à saúde através de uma demanda programada para responder às necessidades coletivas. Não é possível abandonar o coletivo em favor do indivíduo ou de grupos.
É a isonomia entre os integrantes do SUS – vale dizer, toda a comunidade protegida – que será afetada se e quando a prudência não presidir os julgados que concedem prestações singulares sem se deterem na perspectiva do todo.
De todo modo, a obrigatoriedade de fornecimento pelo Poder Público de medicamentos de alto custo será em breve apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Recurso Extraordinário, 566.471, já reconhecido como tendo repercussão geral.
3 O caráter sistemático do SUS
Já advertira o Conselho Nacional de Justiça, cuja atenção a respeito do tema é demostrada por publicação específica que lançou a respeito, o seguinte:
“De modo algum se pretende negar a existência de municípios ou estados com sérios problemas de recursos financeiros, principalmente quando se trata de direitos sociais, mas isso deve ser visto e apreciado com bastante seriedade e cautela pelas instituições jurídicas” (ASENSI; PINHEIRO, 2015).
Trata-se de constatação que ressalta à evidência. Os municípios e os Estados têm sérios problemas financeiros quanto ao particular.
Não entendi bem por que a União foi excluída.
O repetitivo 299, que fora apreciado pelo então ministro Ari Pargendler, e que resultou cancelado, estabelecia a solidariedade entre as pessoas políticas ao assentar a: solidariedade passiva de União, Estados e Municípios, para figurar no polo passivo de demanda concernente ao fornecimento de medicamentos.
Desse modo, o julgado exarado no repetitivo 686, relatado pelo ministro Hermann Benjamin, com todas as vênias, não se conforma com a modelagem constitucional da seguridade social.
Lá se acha estabelecido que:
“O chamamento ao processo da União com base no art. 77, III, do CPC, nas demandas propostas contra os demais entes federativos responsáveis para o fornecimento de medicamentos ou prestação de serviços de saúde, não é impositivo, mostrando-se inadequado opor obstáculo inútil à garantia fundamental do cidadão à saúde”.
Trata-se de manifesto equívoco.
A seguridade social é a ordem constitucional de proteção social que, na área da saúde, é concretizado por intermédio do SUS, integrado pelo rol completo das pessoas políticas. Todas elas irão responder, de modo solidário, pelo fornecimento de medicamentos aos beneficiários da assistência à saúde. Desta sorte, não faz qualquer sentido que se exclua a União do polo passivo de processo que, ao fim e ao cabo, afetará a política de saúde no seu todo considerada.
4 Relevância pública das ações e serviços de saúde
É extremamente significativo o teor do art. 197 da Constituição de outubro de 1988, que assim se acha grafado:
“São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.
A nenhum outro dos programas sociais que concretiza o constituinte atribuiu esse qualificativo tão expressivo: relevância pública.
Sobre ser, pois, o mais abrangente dos programas da Ordem Social Constitucional – direito de todos, na dicção do art. 196 – é aquele ao qual a Lei Magna qualificou com o mais elevado grau de distinção.
Somente os serviços de saúde mereceram o qualificativo de relevância pública.
É bem por essa razão que, para a atentar para essa que é, convém insistir, a mais extensiva atuação dos Poderes Públicos e da sociedade, o constituinte definiu um ente tutelar da mais alta dignidade: o Ministério Público.
E, explicitando essas tarefas, enuncia, de modo categórico:
“Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público: [...] II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.
Como já acentuado aqui, somente os serviços de saúde – conquanto decerto possam existir outros de suma qualidade – mereceram o qualificativo da relevância pública.
Donde que se pode considerar uma das mais destacadas atuações do Ministério Público o zelo pelas ações e serviços de saúde.
Destaca-se, assim, pela pertinência, o repetitivo 766, do STJ, relatado pelo ministro Og Fernandes, que assim explicita a questão:
“Legitimidade ad causam do Ministério Público para pleitear, em demandas contendo beneficiários individualizados, tratamento ou medicamento necessário ao tratamento de saúde desses pacientes”.
Não pode haver dúvida sobre a legitimidade ativa do Ministério Público para propor demandas relativas aos serviços de relevância pública de saúde.
Tampouco se poderia entender como descabido o pleito concernente aos medicamentos.
Mas já não seria menos nítida a sustentação do dever do Ministério Público quanto a pleitos relativos a beneficiários individualizados.
Aqui se coloca, de novo, a dicotomia já antes apresentada entre o interesse do indivíduo e o da comunidade protegida.
De fato, a qualidade de ente tutelar do serviço de relevância pública se ajusta melhor à função de custos legis.
Destarte, o Ministério Público recebe – diretamente da Constituição de 1988 – o dever de velamento do sistema no seu todo considerado, e não o de representação de uma parcela restrita da comunidade protegida.
Como esclarece Marçal Justen Filho:
“a proteção atribuída ao direito subjetivo privado prevalece ainda quando estiver em jogo um interesse oposto que se configure como ‘interesse público’. Apenas haverá limites aos direitos subjetivos privados em face do interesse público na medida em que assim estiver previsto e determinado na ordem jurídica” (JUSTEN FILHO, 2013, p. 135).
Donde ser manifesto que o parquet deverá representar o interesse da sociedade e não de grupos, por mais relevantes que sejam as demandas propostas por pessoas ou grupos.
Com efeito, o que move a intervenção do parquet é o interesse público primário (da sociedade), que não se confunde com o interesse meramente estatal, nem tampouco com o de determinada pessoa ou grupos de pessoas.
Aliás, o Código de Processo Civil em vigor acentua – na cabeça dos arts. 178 e 179 – que, ao agir, o Ministério Público é convocado em sua qualidade processual específica de fiscal da ordem jurídica.
Essa atuação é demarcada pela presença simultânea, força reconhecer, do interesse público ou social.
Ora, particularmente na questão da saúde, a obrigatoriedade de agir como custodiador do direito de todos (consoante os rígidos termos em que se coloca a relação jurídica constitucionalmente institucionalizada pelo art. 196 da Lei Suprema) a seu modo retiraria do Ministério Público a prerrogativa de representar somente parcela da comunidade protegida.
É que, de fato, a obtenção de certa cota de medicamentos em favor de determinado grupo de indivíduos pode, manifestamente, significar subtrair do coletivo outras tantas prestações de saúde. Estaria caracterizada, a seu modo, situação de não juridicidade, como explica Cláudio Souto:
“Essa não juridicidade alcança quaisquer indivíduos ou grupos sociais ou estatais que atentem contra a subsistência e o desenvolvimento de todos os homens. Esses grupos desviantes do jurídico podem apresentar considerável coesão interna, mas são descoesivos quanto ao todo humano e assim não são jurídico, embora possam ser extremamente legalizados (e até ‘divinizados’” (SOUTO, 1997, p. 48).
Incumbiria ao Ministério Público desempenhar a função de custos societatis, no tema dos serviços de relevância pública da saúde, porque a essa instituição está reservada a tarefa de custódio dos direitos sociais, do homem todo e de todos os homens, em linha com aquele regramento maior da Constituição: promover o bem de todos.
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ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseni (Coord.). Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiência. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015.
ASSIS, Armando de Oliveira. Compêndio de Seguro Social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1963.
BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social. 8. ed. São Paulo: LTr, 2016.
BARRETO, Ana Carolina R.; BORGES, Keilla Ellen. Artigo III. In: BALERA, Wagner. Comentários à Declaração Universal dos Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: KDPAmazon, 2018.
GONÇALVES DIAS, Clara Angélica. Princípio da Seletividade e Distributividade dos Benefícios e Serviços na Constituição Federal de 1988. Revista Eletrônica do Instituto Sergipano de Direito do Estado, p. 25, 2008.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
SOUTO, Cláudio. Tempo do Direito Alternativo: uma fundamentação substantiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, n° 141, de abril de 2019.
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*Wagner Balera é professor titular na Faculdade de Direito da PUC-SP e conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo.