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A primazia da efetiva colaboração (Colaboração premiada unilateral)

Em razão do aumento da utilização do instituto, a legislação brasileira vem sendo colocada em xeque, frente a necessidade de apresentação de soluções a questionamentos ainda pendentes. Uma destas dúvidas diz respeito à instrumentalidade e à aceitabilidade da colaboração premiada unilateral – sendo este o escopo da presente pesquisa.

30/5/2019

Introdução

No Brasil, o instituto da colaboração premiada está em evidência, em decorrência, principalmente, da Operação Lava Jato1 e dos acordos de colaboração nela celebrados e que, em grande parte, auxiliaram no descobrimento de inúmeros casos de corrupção sistêmica. 

Em razão do aumento da utilização do instituto, a legislação brasileira vem sendo colocada em xeque, frente a necessidade de apresentação de soluções a questionamentos ainda pendentes. Uma destas dúvidas diz respeito à instrumentalidade e à aceitabilidade da colaboração premiada unilateral – sendo este o escopo da presente pesquisa.

Inicialmente, se destaca que essa forma de cooperação deve ser analisada a luz dos demais dispositivos jurídicos que preveem, também, a possibilidade de colaborar com o judiciário, por exemplo, a lei 9.807/99 (Lei de Proteção às Testemunhas); lei 8.072/90 (Lei dos crimes hediondos); lei 7.492/86 (lei dos crimes contra o sistema financeiro); e lei 8.137/90 (lei dos crimes contra a ordem econômica); entre outros.

 

Tais dispositivos permitem uma complementação à lei 12.850/13 – por meio de analogia (art. 3º do CPP) – a fim de assegurar que o colaborador judicial tenhas seus direitos resguardados2 em razão da uma efetiva colaboração mesmo nos casos em que não houver acordo prévio com o Ministério Público.

Há que se analisar, portanto, os caminhos que viabilizariam o reconhecimento da colaboração unilateral como forma legítima de garantir os benefícios a quem efetivamente auxiliou no curso das investigações, respeitando os requisitos do art. 4º da lei 12.850/13, sem que a titularidade deste direito, seja exclusiva do Ministério Público.

Isso porque, a negociação do acordo ainda prescinde de maiores detalhamentos na sua forma e limites. As autoridades estatais acordam favores com amplo grau de subjetividade e sem controle, preocupando a sociedade brasileira3. 

1.            Modelo acusatório e titularidade da ação penal

Indubitavelmente, o Ministério Público é peça fundamental na composição dos acordos de colaboração premiada, todavia não pode ser encarado como seu único operador. 

O sistema acusatório tem como função a proteção do cidadão contra o arbítrio estatal4 visando garantir que as liberdades individuais sejam respeitadas pela lei e pelos órgãos que a aplicam. A função dada ao Ministério Público visa exatamente garantir que o mesmo seja custos legis e fiscalize, mesmo quando exerce a função de titular da ação penal pública – não sendo, portanto, um órgão de acusação puro, diferente do sistema americano, por exemplo.

Imperioso transcrever o entendimento de Eugenio Pacelli5, acerca do tema:

“No Brasil, a instituição de um modelo essencialmente acusatório somente veio a lume com a Constituição da República de 1988, com uma completa redefinição do papel do Ministério Público na ordem jurídica, contemplado, além da titularidade privativa da ação penal pública, com inúmeras e relevantes funções na defesa jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (arts. 127 e 129, CF).

(...)

O Ministério Público não é órgão de acusação, mas órgão legitimado para a acusação, nas ações penais públicas. A distinção é significativa: não é por ser o titular da ação penal pública, nem por estar a ela obrigado (em razão da regra da obrigatoriedade, já estudada), que o parquet deve necessariamente oferecer a denúncia, nem, estando esta já oferecida, pugnar pela condenação do réu, em quaisquer circunstâncias. Enquanto órgão do Estado e integrante do Poder Público, ele tem como relevante missão constitucional a defesa não dos interesses acusatórios, mas da ordem jurídica, o que o coloca em posição de absoluta imparcialidade diante da e na jurisdição penal.

Portanto, a imparcialidade deverá permear toda a atividade do Ministério Público, em todas as fases da persecução penal, incluindo a fase pré-processual, reservada às investigações. Evidentemente, não é por isso que estará o parquet obrigado a estabelecer o contraditório e a ampla defesa em procedimentos administrativos por ele instaurado, uma vez que a fase de investigação deve realizar-se com a maior brevidade possível e com o sigilo necessário à coleta do material probatório.

(...)

O atuar imparcial do Ministério Público está relacionado com a inteira liberdade que se lhe reconhece na apreciação dos fatos e do direito a eles aplicável. O Ministério Público é livre e deve ser livre na formação de seu convencimento, sem que esteja vinculado a qualquer valoração ou consideração prévia sobre as consequências que juridicamente possam ser atribuídas aos fatos tidos por delituosos. Nunca é demais repetir: ao Estado (e, aqui, ao Ministério Público) deve interessar, na mesma medida, tanto a condenação do culpado quanto a absolvição do inocente. Essa é a verdadeira leitura a ser feita da norma do art. 257 do CPP.”

Percebe-se, portanto, que a atuação do órgão ministerial não pode ser discricionariamente prejudicial ao acusado, devendo ser observada a necessidade de se ter reconhecidos os direitos subjetivos de garantias processuais daqueles que estão diante do poder punitivo estatal.

 De forma mais objetiva, ao tratarmos do instituto da colaboração premiada, é importante que haja uma delimitação da atuação do parquet, que é titular da ação penal e tem suas prerrogativas, o que de forma alguma significa que, em interpretação restritiva da lei 12.850/13, seja ele o detentor exclusivo de todas elas.6

O artigo 4º da respectiva lei é claro ao elencar em seu caput os benefícios aplicáveis a quem colaborar com as investigações, sendo eles: concessão de perdão judicial, redução da pena restritiva de liberdade ou a substituição desta por restritiva de direitos, e, como complemento, trata ainda em seu §4º sobre a possibilidade do não oferecimento da denúncia, por parte do Ministério Público.7

Não há qualquer discordância sobre o direito exclusivo do órgão ministerial em dispor da ação penal. O oferecimento ou não da denúncia, desde que respeitados os ditames legais, é ato exclusivo do parquet. Porém, os demais benefícios passiveis de concessão por efetiva colaboração, não são de titularidade exclusiva do Ministério Público.

Importa reescrever entendimento de Humberto Pinho e José Porto8, acerca do tema:

“A única hipótese genuína de negócio jurídico processual corresponde ao §4º do art. 4º, consistente no não oferecimento da denúncia como contrapartida a cooperação, hipótese na qual o deslinde e as consequências da avença decorrem, exclusivamente, da autonomia de vontade das partes.”

A própria legislação deixa clara a possibilidade de requerimento do prêmio por ambas as partes, ou seja: pelo réu, não havendo que se falar, portanto, em titularidade exclusiva. Há que se reconhecer que o mesmo, como parte da triangulação que forma a ação penal de cunho público, é detentor do direito, mas não pode privar o colaborador de pedir e o juízo de decretar a concessão de perdão judicial, redução ou substituição da pena, pela simples ausência de negócio jurídico formal.9

Esse entendimento possibilitaria arbítrios da investigação em casos que o colaborador não seja um dos alvos centrais da denúncia, evitando indevida seletividade na hora de aplicar o instituto.

O juízo não pode ficar vinculado, de forma negativa, à requisição do Ministério Público, já que tanto a pena, quanto o perdão judicial, são incontestavelmente submetidos a reserva de jurisdição.10

Nessa toada é imprescindível levar em consideração que a reserva de jurisdição, garante que o juízo, não só possa, como deva, exercer a titularidade sobre atos judiciais.

Em linhas gerais, a reserva de jurisdição, segundo o art. 5, inciso XXXV, da Constituição Federal11, é a necessária apreciação pelo Poder Judiciário de hipóteses de lesão ou ameaças ao direito, garantindo, assim, a intervenção deste quando necessário.

No caso concreto, é possível perceber que a reserva de jurisdição atua exatamente na existência de lesão do direito, já que, ficando somente a cargo do parquet a discricionariedade (opção) de promover/validar a delação premiada, poderia ocorrer verdadeiro prejuízo ao direito do colaborador de exercer ato, em caso de negativa do Ministério Público, que seria voluntário – requisito essencial -, porém unilateral.12 

2.            Possibilidade da colaboração unilateral

Nos últimos anos, temos utilizado com maior frequência o instituto da colaboração premiada, a fim de garantir que crimes complexos e de grande impacto em nossa sociedade sejam punidos.

O desenvolvimento do instituto, entretanto, enfrenta uma barreira, com o entendimento majoritário de que há necessidade de existência de acordo com o Ministério Publico para que a colaboração seja válida e produza efeitos benéficos ao colaborador.

Ora, uma vez demonstrada a inexistência de titularidade exclusiva do Ministério Público para julgar a pertinência deste benefício, há que se compreender que a condicionante de validade de eventual delação não pode passar por crivo de aceitação único do órgão ministerial, já que como titular da pretensão acusatória, estar-se-ia favorecendo a acusação, em detrimento do colaborador.13

Aquele que se apresenta, de forma voluntária e regular, e traz efetivo auxilio a investigação, fornecendo novos indícios a autoridade policial e/ou ministerial, não pode ver seu direito tolhido pela simples inexistência de formalização. O benefício concedido ao delator, deve respeitar critérios objetivos do art. 4º da lei 12850/13, de modo que, havendo colaboração, a contrapartida do beneficio é devida, independentemente da vontade do parquet.

Pelo entendimento de Marcos Paulo Santos, “condicionar eventual premiação ao aval do Ministério Público em verdade a cercearia, em descompasso com o artigo 5º, LV, da Constituição.”14

Ainda, discorre Pacelli15, acerca do tema:

Se algum investigado ou acusado atuou de modo eficiente e em prol da satisfação dos requisitos legais para a redução ou substituição da pena privativa da liberdade, ou, ainda, para a aplicação do perdão judicial (art. 4º, Lei no 12.850/13), deverá o juiz reconhecer tais circunstâncias por ocasião da sentença condenatória, ainda que não tenha havido o acordo de colaboração, por recusa injustificada (segundo o juiz, é claro!) do Ministério Público.

Portanto, a colaboração unilateral apresenta alternativa para o reconhecimento da delação que cumpriu seu papel social e somente não foi aceita pelo órgão acusador, podendo assim, através da sentença, ter o colaborador acesso ao prêmio pelo auxilio prestado a sociedade.16

Há nesse ponto que se garantir a paridade de armas as partes processuais. Inexistindo justificativa plausível para a não aceitação da delação é dever do parquet admiti-la, e não o fazendo, estaria manipulando de forma obscura e fora dos limites impostos pela boa-fé, seu dever processual como custos legis.17

Não existe no Brasil, como ocorre nos Estados Unidos, discricionariedade absoluta do órgão ministerial, para que fosse possível a negativa de colaboração com a simples ausência de justificativa, ou até mesmo o uso de ponderações genéricas.

Deve-se assim, considerar que o pacto de delação, na forma unilateral é meio válido, do qual pode dispor o colaborador e sua defesa – o que pode até mesmo figurar como uma táctica defensiva – , devendo ser reconhecido pelo juízo, em sede de sentença, nas proporções que forem justas.

Como ensina Tourinho Neto: “Na medida em que o juiz, ao homologar o pacto, restringe-se a “verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade” (art. 4º, §7º, da lei 12.850/13), deixando para a sentença, a apreciação dos seus termos e da eficácia (art. 4º, §11) mostra-se claro que, alcançando os resultados previstos em lei, o colaborador terá direito público subjetivo à premiação, mas a benesse é de escolha privativa do juiz, afinal, as partes não podem negociar o que não dispõem.”18

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1 Disponível em: clique aqui Acesso em: 26/03/2019.

2 A pesquisa será direcionada ao fato que este é um Direito Subjetivo do acusado.

3 Cordeiro, Nefi. Colaboração Premiada e Combate à Corrupção – Princípios Constitucionais da Administração Pública Regulando o Negócio Judicial.

4 RANGEL, PauloInvestigação Criminal Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009. p. 184.

5 PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal, 2016.

6 JARDIM, Afranio Silva. Nova Interpretação Sistemática do Acordo de Cooperação Premiada. Disponível em: clique aqui. Acessado em: 26/03/2019.

7 BRASIL, Lei nº 12.850 de 2 de agosto de 2013. Disponível em: clique aqui. Acessado em: 26/03/2019.

8 PINHO, Humberto; PORTO, José. Colaboração Premiada: Um negócio Jurídico Processual? In: ESPINEIRA, Bruno, CALDEIRA, Felipe (orgs) Delação Premiada, ob.cit., 127-138.

9JARDIM, Afrânio Silva. Nova Interpretação Sistemática do Acordo de Cooperação Premiada. In: ESPINEIRA, Bruno, CALDEIRA, Felipe (orgs). Delação Premiada, ob. cit. p. 37-39.

10 SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração Unilateral premiada como consectário lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol 3, n 1. p, 131-166, jan-abr., 2017.

11 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 27/03/2019

12 SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração Unilateral premiada como consectário lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol 3, n 1. p, 131-166, jan-abr., 2017.

13 SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Transação Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. P.113

14 SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração unilateral premiada como consectário logico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol 3, n. 1. 2017,2525-510x.

15 Pacelli, Eugênio. Curso de Processo Penal, 2016. Fl. 1000.

16 CRUZ, Flavio Antônio da. Plea Bargaining e Delação Premiada: Algumas Perplexidades. In: SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração unilateral premiada como consectário logico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol 3, n. 1. 2017,2525-510x.

17 ROSA, Alexandre de Morais da. Você sabe o que significa delação premiada unilateral? 

18 TOURINHO NETO, Fernando da Costa, Delação Premiada, Colaboração Premiada, Traição Premiada, Endurecimento das Decisões Judiciais. Afronta à Constituição Federal. Juiz Justiceiro. In: SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração unilateral premiada como consectário logico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol 3, n. 1. 2017,2525-510x.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 27/03/2019.

BRASIL, Lei nº 12.850 de 2 de agosto de 2013. Disponível em: clique aquiAcessado em: 26/03/2019.

CRUZ, Flavio Antônio da. Plea Bargaining e Delação Premiada: Algumas Perplexidades. In: SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração unilateral premiada como consectário logico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol 3, n. 1. 2017,2525-510x. 

JARDIM, Afrânio Silva. Nova Interpretação Sistemática do Acordo de Cooperação Premiada. Disponível em: clique aqui.Acessado em: 26/03/2019. 

PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal, 2016.

PINHO, Humberto; PORTO, José. Colaboração Premiada: Um negócio Jurídico Processual? In: ESPINEIRA, Bruno, CALDEIRA, Felipe (orgs) Delação Premiada. 

RANGEL, PauloInvestigação Criminal Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009. p. 184.

ROSA, Alexandre de Morais da. Você sabe o que significa delação premiada unilateral? 

SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração unilateral premiada como consectário logico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol 3, n. 1. 2017,2525-510x.

SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Transação Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. P.113

TOURINHO NETO, Fernando da Costa, Delação Premiada, Colaboração Premiada, Traição Premiada, Endurecimento das Decisões Judiciais. Afronta à Constituição Federal. Juiz Justiceiro.

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*Bernardo Lobo Muniz Fenelon é advogado criminalista, mestrando em Direito Penal Econômico - IDP/DF, especialista em Processo Penal - IDP/DF, especialista em Direito Penal com ênfase nos Delitos de Corrupção e Crime Organizado - Universidad de Salamanca/ES.

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