O sentinela – nas palavras do professor Alfredo Buzaid –, que vela pela inteireza e unidade do Direito nacional (BUZAID, 1962). Assim foi defini- do o STJ, que agora completa 30 anos. Indisputáveis a necessidade e a oportunidade de instalação de uma instância normalizadora da interpretação das leis federais e capaz de homogeneizar as decisões exaradas no complexo cultural Brasil.
Dentre as atividades indisputáveis, surgiu como realidade objetiva para a função jurisdicional do STJ a questão econômica. E aqui surgem algumas questões a serem postas: (i) temas conceituais de economia podem ser modificados por alterações normativas, de forma a se colocar a norma como superior à essência econômica? E (ii) a evolução de métricas econômicas de negócios é suficiente para alterar premissas de direito disponíveis formadas ao longo de décadas de jurisprudência uniforme?
Confesso que os pensamentos expressos nestes escritos decorrem de uma tentativa de compreender incansavelmente a natureza das coisas e, no particular, a natureza econômica dos eventos que me rodeiam (COOTER; ULEN, 2013). Nesse desiderato, e quando me deparei com o entroncamento das normas positivadas pela legislação brasileira e dos fundamentos e eventos econômicos, tive a honra de ser provocado intensamente por algumas vivências que me ajudaram – e ainda ajudam – na busca por entender como interpretar os efeitos desse encontro.
Vejamo-las: (i) a primeira, do convívio que não fenece, com o professor Ovídio Baptista da Silva, que me dizia: “o ato de democracia ligado direta- mente à pessoa é a postulação em juízo, pois que é como um só consegue lutar por seu direito atingi- do, ainda que pelo Estado”; (ii) a segunda, que vem sendo difundida pelo maior pensador do direito como garantia de liberdade absolutamente responsável e como entrega do bem jurídico ao postulante, o doutor Eduardo José da Fonseca Costa, que, com sua obra recente – Levando a imparcialidade a sério –, aborda os modelos decisórios e como o direito processual, a economia e a psicologia podem entregar ao postulante a sua essência democrática (COSTA, 2018, passim); e (iii) por fim, a terceira, trazida pela brilhante advogada e arbitralista, doutora Eleonora Coelho, que, no VII encontro de arbitragem de Coimbra (2018) e no HardTalk de Prova (2018), trouxe pensamentos avançados sobre mecanismos que podem levar decisões e valorações de prova à precisão ou à distorção.
Sair do lugar-comum para avançar. A tanto não se furtou o STJ nestes 30 anos, pois seria impróprio lançar-se qualquer crítica sobre o direito analisado, respeitadas eventuais exceções que confirmam a tese de qualidade. Assim, o aperfeiçoamento deve vir para as questões de fundo econômico que estão na pauta do futuro para serem tratadas com a mesma acuracidade dos temas de direito processual e material.
Essencialmente, a inflação vigorosa tem como causa o desequilíbrio na gestão pública.
Dois temas candentes podem ser analisados: (i) a deturpação da correção monetária pelo homem público para manipular a obrigação estatal de pagar; e (ii) a apuração de haveres naquela que, segundo me parece, é a mais emocional das dissoluções de laços jurídicos: a dissolução de sociedade negocial.
2 A correção monetária: passado e presente
A inflação é fenômeno econômico que pode ter causas em desequilíbrio de mercado, mas, essencialmente, a inflação vigorosa – que é a que se trata no Brasil, quando se chega ao STJ – tem como causa o desequilíbrio na gestão pública.
A correção monetária foi um instituto positiva- do pela lei 4.357/64, para dar sustentação aos títulos da dívida pública1 que prometiam um retorno de 6% ao ano em moeda brasileira estável – moeda nacional em valor nominal da época do lançamento do título público, devidamente acrescida da quantidade de valor nominal para representar a mesma capacidade econômica na data do resgate. Esse acréscimo nominal é a correção monetária.
Porém, os administradores da economia brasileira não conseguiam controlar a dívida pública e tampouco organizar a economia interna de forma a torná-la competitiva e eficiente. O caos da pressão por emissão de moeda e a instabilidade de preços numa economia em formação era a realidade dos anos 1960 e 1970, sem perspectiva de modificação sequer a médio prazo.
Nesse contexto, com o mesmo propósito do financiamento da dívida pública, nova solução foi positivada no ordenamento jurídico para a relação entre Estado e pessoas que, ao final, afetam a administração fiscal: a receita de origem tributária (como, por exemplo, o decreto lei 1.736/79) e a contabilidade das empresas (como o decreto lei 1.302/73, que regulamentou a correção monetária do capital de giro próprio, e o decreto-lei 1.598/77, que regulou, entre outros temas, a correção monetária do balanço).
E o judiciário? bem, (i) deferiam-se o processamento de concordatas om pagamento em 24 meses mediante mera aplicação de juros de 12% ao ano e (ii) remuneravam-se créditos em execução com juros legais, às vezes, após uma década de disputa em embargos à execução. Assim, uma ação de cobrança era um desestímulo ao credor e a qual- quer política comercial de crédito. Juízes de visão econômica justa, e de coragem, contrapuseram-se a isso, o que levou à edição da lei 6.899/81, por meio da qual (i) instituiu-se a correção monetária nos processos judiciais e (ii) eliminou-se qual- quer revisão quanto aos efeitos pretéritos, criando- se uma espécie de anistia ampla, geral e irrestrita.2
Seguiu-se. Porém, inexoravelmente, o preceito econômico de que correção monetária não é acréscimo de renda ou valor, mas apenas manutenção da capacidade da moeda brasileira no tempo, estava estabilizado.
Esse quase paraíso foi abalado pelo pecado capital – os homens públicos originais fizeram seus sucessores outros homens públicos, que, contra a sociedade, se fizeram Cains. As contas públicas continuaram sem controle na década de 1980, as políticas públicas estavam longe de serem responsáveis e a inflação, fora do ambiente de manipulação e censura da década de 1970, passou a níveis incontroláveis tornando a aplicação do mecanismo da correção monetária imprescindível.
Juntas de agentes públicos debruçaram-se sobre a desordem econômica instalada e, juntamente com decisões tíbias de ataque às causas, deliberaram sobre como acabar com o efeito, escamoteando a inflação que pudesse atingir as contas públicas, independentemente do dano imposto às pessoas. Foi o que aconteceu em (i) março a novembro de 1986, (ii) julho a setembro de 1987, (iii) janeiro a maio de 1989, (iv) março a junho de 1990 e (v) fevereiro e março de 1991.3
Estava instalada uma regra tácita de gestão pública: o problema eram os efeitos das contas públicas, algo como enxugar gelo. Assim, quaisquer que fossem os meios aplicáveis, cortar os efeitos parecia um fim em si mesmo, até porque nesse período as causas jamais foram atacadas. As deliberações foram semelhantes àquelas da década de 1970: se a inflação está alta, corte-a; bastava editar leis (decretos-lei e medidas provisórias negociáveis no Congresso Nacional).
Três diferenças, porém, existiam em relação à década de 1970: (i) a inflação estava cada vez mais alta em razão de contas públicas cada vez mais descontroladas; (ii) não havia mais cobertura para manipulação de índices de inflação; e (iii) o surgimento do STJ para pacificar o tema. Ou seja, a inflação extravagante, medida por índices corretos e sem censura, posta em discussão num órgão judicante sentinela só poderia ter um resultado: o tratamento adequado quanto a não se afastarem os efeitos que interessam à sociedade.
Assim, o STJ fixou a premissa econômica de que a correção monetária não deve causar ganho para um contra a perda de outrem, uma vez que é mera recomposição de valor nominal,4 preceito já definido na legislação de 1964 a 1981 e até hoje. Esta parece ter sido a mais importante decisão tomada nesse contexto de disputas sobre índices de inflação, uma vez que é a premissa originária, que respeita o fundamento econômico do qual não devem e não podem se afastar as leis.5
A estabilidade obtida com as lutas do passado garante um futuro estável.
O STJ foi inclemente contra as normas editadas, a partir do Poder Executivo, coadjuvado pelo Poder Legislativo, decotando índices de inflação, e hoje determina a reposição de todos os expurgos praticados, o que está assimilado no âmbito da Justiça Federal e das Justiças Estaduais. Foram repostos como se nunca tivessem sido expurgados: planos Cruzados I e II, Bresser, Verão, Collor I e II.6
A estabilidade obtida com as lutas do passado garante um futuro estável, em especial levando em conta que o princípio econômico da correção monetária foi a base para as decisões contra leis imprecisas ou oportunistas. Foi suficiente para que os agentes públicos melhorassem o seu procedimento? A resposta é: nem para todos os homens e nem para todos os temas.
Isso porque nova junta de agentes públicos debruçou-se sobre mais um entrave às contas públicas: as dívidas judiciais do Estado. A solução encontrada não foi como pagar, mas como reduzir o montante devido de algum modo para pagar menos. Isso, se der para pagar.
O princípio foi o mesmo, cortar correção monetária. O engenho foi mais sofisticado, tendo em vista os precedentes firmes do STJ: ao invés de expurgar o índice de inflação, extirpando valor da dívida judicial do Estado, altera-se legislação para modificar o índice de remuneração para uma taxa de juros sem conteúdo de inflação. Mas, isso não é o mesmo que extirpar a correção monetária?
Pois bem. O tema está grandemente solucionado em favor da ordem econômica real pelo STF.7 Contudo, mesmo após reconhecer uma “restrição desproporcional ao direito de propriedade”, o ministro relator do caso, Luiz Fux, suspendeu os efeitos do referido RE, após a postulação de vários Estados, para fins de estabelecer a modulação dos efeitos do caso. Ora, uma vez admitidos efeitos ex nunc ao caso, estar-se-á deliberadamente admitindo a referida restrição, o que, roga-se a Deus, não ocorra. Os efeitos vindos do sentinela não desampararão o nobre julgador.
Dito com outras palavras: está-se tratando dos mesmos estratagemas expurgatórios de 1986 a 1991. A diferença é que o índice eleito é uma taxa de juros que não embute, em si mesma, a correção monetária. Nem se diga que é de moratória que se está a tratar, pois moratória tem definição expressa de tempo e não de corte de valor real. Além disso, ao se ter a perspectiva de dar qualquer tratamento diferente ao caso que não seja de supressão de valor real da dívida judicial do Estado, estar-se-ia modificando com perdas em desfavor do mundo real toda a construção econômica de que a correção monetária meramente elimina, no valor nominal da moeda, os efeitos deletérios da inflação.
O STJ, como demonstrou em seu passado glorioso, não tem como objetivo definir qual a forma de planejamento que o agente público deve usar para honrar as contas públicas – no todo ou ape nas em relação às dívidas judiciais – ao contrário, deve, quando for o caso, indicar o que não é lícito ao agente público fazer no planejamento.
O desiderato do agente público tem que ser obtido com esforço de respeito às normas básicas de preservação da verdade e da ética econômica. Como se constata, a sucessão de agentes públicos somente deixará de utilizar caminhos impróprios se contida, à exaustão, por uma ordem jurídica in- violável como a construída pelo STJ. Espera-se, dessa forma, que o STF seja para a sociedade tão firme quanto foi o sentinela que vela pela inteireza do direito brasileiro. A ver.
3 Apuração de haveres: método e conteúdo
Outro tema interessante com cariz econômico abordado pelo STJ é a questão da apuração de haveres.
Disputou-se e ficou definido que uma sociedade pode ser parcialmente dissolvida, permitindo que permaneça em sua atividade econômica e social com a retirada de sócio ou sócios mediante o pagamento de seus haveres na data da dissolução parcial.
Essa foi uma construção jurisprudencial que acabou por acrescentar suas premissas no ordenamento jurídico de Direito Material (art. 1.029 e seguintes do CC), e de Direito Processual Civil com efeito de Direito Material (art. 599 e seguintes do CPC). Nesta última, foi positivada a forma, quando não contratada pelos sócios: balanço de determinação (art. 606).
Recentemente, o STJ decidiu que a apuração de haveres pode, também, ser mensurada por um método econômico de avaliação de negócios chamado de fluxo de caixa descontado. Essa decisão trouxe uma ordem econômica que pode ajudar na pacificação do tema relativo à apuração de haveres? Creio que não, porque depende de estudos das áreas acadêmicas da economia e da contabilidade, para que se faça uma harmonização entre a lógica jurídica da dissolução parcial da sociedade e a sua qualidade de entregar o bem econômico real às partes do litígio.8
Porém, como pode ter sido formada essa jurisprudência relativa à dissolução de sociedades comerciais e industriais, no que diz respeito ao critério de apuração de haveres, uma vez que o tema é longevo e as disputas remontam à década de 1940?
Há uma regra jurisprudencial amadurecida ao longo de décadas de que o sócio dissidente não tem direito ao futuro da sociedade em dissolução parcial, mas apenas ao valor da sociedade na data da dissolução.
Contudo de que futuro trata a jurisprudência? Essa pergunta se impõe porque a mesma jurisprudência madura define que os intangíveis devem ser valorados na data da dissolução parcial, ou seja, bens que por sua característica só têm valor em uma sociedade em movimento e que, por sua natureza, deverão gerar riqueza futura.
Parece que a melhor premissa econômica deve ser eleita considerando-se dois tipos de futuro:9 (i) o futuro natural da atividade conhecida na data da dissolução; e (ii) o futuro incerto decorrente de conjunturas econômicas e/ou de gestão da sociedade imprevisíveis na data da dissolução. Se o futuro não for cindível, não há como adequar as premissas da jurisprudência estável com o método de apuração de haveres pelo balanço de determinação.
Nesse contexto, uma segunda pergunta se impõe: por que o balanço de determinação foi uma construção racional da jurisprudência? Necessário ultrapassar esse evento para se introduzir o conceito de uso do fluxo de caixa descontado recentemente acolhido em uma decisão no STJ.
A regra do levantamento do balanço especial – posteriormente denominado de balanço de determinação dos haveres – se impôs desde os tempos em que não se pensava sequer em avaliar sociedades por fluxo de caixa; vigorava nas economias, desenvolvidas ou não, o critério patrimonialista em que máquinas e bens tangíveis eram medidas de valor. O desenvolvimento das novas economias– pós-recessão eclodida em 1929 e sua guerra mundial consequente – trouxe novos valores econômicos às sociedades, decorrentes de marcas, tecnologia industrial e aviamento.10
Assim, parecia certo à época – e me parece certo, hoje – que a fonte segura para a apuração de haveres era a escrituração contábil da sociedade para que fosse possível assegurar-se do que é certo – registros econômicos da atividade da sociedade enquanto era sócio o dissidente – com a realização de ajustes de caráter econômico isolados, como o valor real dos ativos de produção física e os intangíveis conhecidos e apuráveis.
O desenvolvimento das novas economias trouxe novos valores econômicos às sociedades.
Esse entendimento, não se pode deixar de lembrar, decorre do fato de que a apuração de haveres sociais em litígio não obedece à regra econômica de preço, que tem como pressuposto a capacidade autônoma das partes de, mediante critérios eleitos por cada qual, chegarem a uma conclusão eficaz para o direito de quem recebe e o direito de quem paga.
Inviável a autonomia das partes, por culpa delas próprias, o que se apurará nunca será preço; será sempre valor. Valor este que guarda em si próprio uma subjetividade econômica. Essa subjetividade econômica será sempre menor quanto melhor e mais profunda for a análise das premissas da formação do valor. Essa análise, por sua vez, entrega maior certeza técnica quanto menores forem as premissas arbitráveis, ou seja, numa escrituração contábil são em maior quantidade os itens apuráveis com alto grau de liquidez calcada em documentos e/ou controles internos das sociedades, e em menor quantidade os itens de valor estimado e/ou arbitrado.
Momento de se fazer uma terceira pergunta: por que, então, o STJ teria admitido a utilização de fluxo de caixa descontado na apuração de haveres? De início, me parece que não foi exatamente essa a hipótese admitida pelo STJ, mas aquela em que o fluxo de caixa descontado pode ser utilizado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres.
Antes de seguir em análise, é importante registrar que fluxo de caixa descontado é um cálculo financeiro trazendo a valor presente uma série de valores tratados como caixa em datas futuras. A essência econômica – sempre ela a conduzir o homem a um porto seguro – está na geração de caixa futuro. O mesmo modelo de fluxo de caixa descontado serve para dar valor presente a um fluxo de valor de marca, a um fluxo de valor de patente, a um fluxo de valor de aluguéis e a um fluxo de geração de renda de uma atividade econômica empresarial. Aplicada a taxa de desconto em cada fluxo ter-se-á o valor presente da marca, da patente, dos aluguéis e da sociedade.
Por óbvio, a valoração de itens intangíveis próprios pode conduzir à inexistência de valor isolado de fundo de comércio. Isso porque, se o lucro gerado pela sociedade não for superior a um rendimento sem risco empresarial, medido sobre o valor do patrimônio líquido ajustado no balanço de determinação, já estaria representado o valor da sociedade avalianda no próprio valor do patrimônio líquido ajustado, sem necessidade de acréscimo de intangível (ORNELAS, 2001, capítulo 7).
Assim, parece certo que a decisão do STJ não é incompatível com toda a jurisprudência firmada ao longo de décadas de que os haveres, quando não definido o método pelos sócios, serão apurados por balanço de determinação, pois, como se constata, o fluxo de caixa descontado é método utilizável para valoração de itens isolados do ativo da sociedade.
Está bem assim, mas não se pode deixar de formular uma quarta pergunta nesse contexto: o fluxo de caixa descontado de uma geração de renda de atividade econômica empresarial pode substituir em todo o balanço de determinação? A resposta é simples: não, sem afrontar a jurisprudência, ou sem afrontar o método do fluxo de caixa descontado. Quando muito, ambos podem ser utilizados para fixar compatibilidade de valor de apuração entre os métodos.
O fluxo de caixa projetado veio a lume a partir de conceitos econômicos em substituição às regras de projeção de tendências calcadas em conceitos matemáticos. Os primeiros são valorados; os segundos, inflexíveis. A real atividade econômica não reproduz, no futuro, os mesmos eventos do passado, em especial com o advento dos novos modelos de gestão, de tecnologia ou de alterações de mercado. Assim, a capacidade de gerar lucro no futuro – aqui, para simplificar, caixa será lucro – não é a sequência de uma matriz matemática.
Nesse contexto, um fluxo de caixa descontado dessa matriz de geração de resultados futuros é estimado segundo o que se conhece da sociedade avalianda, dos gestores do futuro e do mercado futuro na data da avaliação. Isso significa que uma apuração de haveres lastreada em fluxo de caixa descontado, em detrimento do balanço de determinação, terá que derrubar a premissa ainda intocável da jurisprudência de que o futuro não afeta o sócio dissidente. Além disso, esse fluxo projetado somente poderia ser estimado se realizado na exata data da dissolução e não cinco ou dez anos depois, quando o futuro já terá se materializado, de tal forma que os resultados futuros conhecidos não seriam com- partilháveis com o sócio dissidente.
Numa estrutura social de leões e hienas, encontrar-se-á, sempre, quem se preste a fazer cálculos, pois a formulação do fluxo de caixa descontado é bem conhecida, mas o resultado entregue, sem que se respeite a sua exata essência economica (DAMODARAN, 2014, passim), nunca será capaz de apurar valor econômico de sociedade.
Essa a razão pela qual, parece-me, o STJ não abriu uma possibilidade sem limite para especulações econômicas de valor, não sendo demasiado lembrar que o REsp 1.335.619-SP, conhecido pela admissão do fluxo de caixa, admitiu-o para ser aplicado em conjunto com o balanço de determinação, e não o substituindo. Caso essa sinalização se dê em sentido contrário para o futuro, então todas as premissas de apuração de haveres deverão ser revisadas para equilibrar os anseios das partes em disputa e, mais ainda, as partes deverão tentar resolver suas pendências fora do ambiente de incerteza que advirá.
4 Conclusão
Os conceitos econômicos estabilizados na sociedade mercê de estudo acurado e exauriente do STJ devem ser pedra de toque, não porque o mundo não evolua, mas porque o mundo evolui a partir do respeito a esses conceitos imutáveis. Esse é o caso da correção monetária, que deve se manter imune a atos atentatórios.
Além disso, os conceitos econômicos que evoluem no mundo real das relações entre partes precisam ser levados de forma clara e mediante exposição completa de seus efeitos perante as partes em cada tema, como é o caso da apuração de haveres com seus balanços de determinação e fluxos de caixa descontados. Nenhuma decisão do STJ se sobrepõe à verdade econômica, sem causar dano, razão pela qual o conteúdo econômico de cada método de valoração de sociedade precisa ser levado a lume com o fim de proporcionar um julgamento criterioso.
Teremos, seguramente, muitos 30 anos do bom trabalho e do bom combate.
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1 Obrigações reajustáveis do Tesouro Nacional.
2 Que sensação... déjà-vu.
3 As crises de inflação em janeiro de 1999 e de 2014 a 2016 ocorreram sem supressão da contagem da inflação.
4 Cf. 4ª T., EDcl no Ag nº 715.991-ES, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, DJe de 23/8/2011; Corte Especial, REsp nº 1.112.524-DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 30/9/2010; 4ª T., REsp nº 2.430-SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 6/8/1990.
5 Como se percebe, a estória do legislador que queria revogar a lei da oferta e da procura pode ser mais que uma estória.
6 Cf. Manual Prático da Justiça Federal e Tabela de Correção Mo- netária do TJSP.
7 “O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança, revela-se inconstitucional ao im- por restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promo- ver os fins a que se destina” (RE, Rel. Min. Luiz Fux).
8 Estou tratando, neste artigo, de sociedades tradicionais comer- ciais e industriais, uma vez que, para as novas sociedades de tecnolo- gia, instituições financeiras, holdings e novos modelos de negócios, a avaliação econômica por fluxos de caixa e/ou renda se sobrepõe.
9 Não se tratará, neste pensar, da afetação do futuro da sociedade decorrente da saída do sócio, uma vez que esse evento pode interferir no valor dos haveres, mas não no método.
10 Esses intangíveis, quando adquiridos ou formados com custo interno segregável, são admitidos por registros contábeis na forma definida pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis.
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BUZAID, Alfredo. A crise do Supremo Tribunal Federal. Re- vista de Direito Processual Civil. São Paulo, Saraiva, v. 6, jul./dez. 1962.
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law&Economics. New York: Pearson Addison Wesley, 2013.
COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito pro- cessual, economia e psicologia. Salvador: Juspodivm, 2018.
DAMODARAN, Aswath. Avaliação de Investimentos: Fer- ramentas e Técnicas para a Determinação do Valor de Qualquer Ativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2014.
ORNELAS, Martinho Maurício Gomes de. Avaliação de So- ciedades: Apuração de Haveres em Processos Judiciais. São Paulo: Atlas, 2001.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de maio de 2019.
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*Silvio Simonaggio é advogado, economista e contador. Membro do instituto dos Advogados de São Paulo.