A proteção florestal, no Brasil, é objeto de preocupação desde o descobrimento. As ordenações, no que se refere às punições a quem atentasse contra espécie florestal protegida, eram extremamente severas. Evidente que essa codificação portuguesa não apresentava um caráter conservacionista, pois a sua preocupação era de ordem econômica. No início da República (fins do século XIX), e a par de uma série de instruções visando à proteção das florestas da antiga Colônia, surgem os primeiros diplomas que denotam uma preocupação conservacionista, muito embora não com a profundidade sob a qual hoje é discutida a questão ambiental. Seguindo nessa trilha, aparecem o primeiro Código Florestal, aprovado pelo decreto 23.793, de 23/1/34, e a Constituição de 1934, a primeira a dispor sobre a competência privativa da União para legislar sobre florestas.
Avançando na proteção de nossas reservas florestais, foi editado o Código Florestal de 1965, na redação original determinada pela lei 4.771, de 15/9/65, que assim foi justificado na Exposição de Motivos 29/65: “O anteprojeto de lei... constitui mais uma tentativa visando a encontrar-se uma solução adequada para o problema florestal brasileiro, cujo progressivo agravamento está a exigir a adoção de medidas capazes de evitar a devastação das nossas reservas florestais, que ameaçam transformar vastas áreas do território em verdadeiros desertos”.
Assim, instituindo limitações ou restrições ao exercício do direito de propriedade, o Código de 1965 estabeleceu, pelo só efeito da lei, as áreas de preservação permanente e determinou a instituição de uma reserva em parte do solo de imóvel rural para fins de conservação de cobertura florestal. Na época, fixou-se a reserva em 20% das propriedades localizadas na parte sul da região Centro-Oeste e demais Regiões do país, com exceção da Região Norte e da parte norte da região Centro-Oeste, onde foi fixado percentual de reserva em 50% (art. 44), proibindo a exploração de florestas em área superior a 50% na parte norte da Região Centro-Oeste (bacia amazônica) até que fosse publicado decreto regulamentar (art. 15).
Desde aquela época, em razão do crescente debate sobre a função ecológica dessa reserva de cobertura florestal, a lei federal 4.771/65 sofreu alterações. Merece registro a lei federal 7.803/89, a qual, alterando a redação original do Código Florestal, estabeleceu regramento próprio para a Reserva Florestal Legal (arts. 16 e 44). A última redação foi dada pela MP 2.166-67, veiculada e “congelada” em 24/8/01, que teve origem na MP 1.511/96, incorporando conceitos de gestão ambiental, ainda que sejam, em alguns pontos, passíveis de críticas quanto à sua real eficácia para a proteção da biodiversidade florestal brasileira. Para melhor entender o contexto dessas alterações legislativas cumpre lembrar que a medida provisória 1.511/96 foi editada no momento em que eram divulgados preocupantes dados sobre o desmatamento na Amazônia.
Naquele contexto, com esta nova conformação dada pela medida provisória 2.166-67/01, a Reserva Florestal Legal encontrava-se definida pelo artigo 1º, § 2º, III, do Código Florestal, denotando uma forte preocupação ambiental, verbis: “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas”.
Em que pese o novo enfoque dado à Reserva Florestal Legal, verifica-se que a regra expressada na atual redação do artigo 16 do Código Florestal, em sua essência, é a mesma contida em sua antiga redação. Ou seja, mesmo com as inovações introduzidas pela MP 2.166-67/01, o artigo 16, caput, do Código Florestal mantém disciplinada a supressão das (i) florestas e demais formas de vegetação nativa – ressalvadas, é claro, as situadas em área de preservação permanente – e das (ii) florestas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica.
E, ao permitir a supressão, determinou que se mantivesse obrigatoriamente uma parte da propriedade rural com cobertura florestal ou com outra forma de vegetação nativa. Para tanto, delimita a porção a ser constituída como Reserva Florestal Legal no percentual fixado para cada situação descrita nos incisos e parágrafos do art. 16 da lei federal 4.771/65, com alterações posteriormente promovidas.
Não obstante, fato é que a lei federal 4.771/65, o antigo Código Florestal, tornou-se aquilo que se convencionou chamar de “lei que não pega”. À mingua de efetividade da norma e dos questionamentos e dúvidas que circundavam o tema, o governo federal encabeçou iniciativa voltada ao assentamento das discussões, não só para tornar efetiva a tutela do meio ambiente, mas também para conferir segurança jurídica ao produtor rural, permitindo a adequação de sua atividade às exigências da lei.
Assim é que, hodiernamente, vigem as regras estatuídas na lei federal 12.651/12, segundo as quais a Reserva Florestal Legal é “a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural (...) com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção da fauna silvestre e da flora nativa”. No teor do art. 12, é estabelecido que todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, com os seguintes percentuais: (i) quando localizado na Amazônia Legal: a) 80% (oitenta por cento), no imóvel situado em área de florestas; b) 35% (trinta e cinco por cento), no imóvel situado em área de cerrado; c) 20% (vinte por cento), no imóvel situado em área de campos gerais; (ii) quando localizado nas demais regiões do País: 20% (vinte por cento).
Não obstante o empenho conciliatório levado a efeito na época, fato é que a nova norma foi objeto de questionamento, tendo o STF, quando do julgamento das ADIns 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937 e ADC 42, pelo que se retira dos votos lidos ainda pendentes de publicação, no que é de interesse, declarando constitucionais os dispositivos que autorizavam a redução do percentual da reserva legal na Amazônia Legal em até 50%, nos casos em que especifica a lei (art. 12, §§ 4° e 5°) e os dispositivos que desconstituem a obrigação de alguns tipos de empreendimentos em constituir a Reserva Legal (art. 12, §§ 6°, 7° e 8°). Também foi mantido o art. 13, § 1°, que trata da possibilidade do empreendedor que mantiver a Reserva Legal de instituir a servidão ambiental sobre as áreas excedentes e a previsão que admite o cômputo das APP’s no cálculo do percentual da Reserva Legal (art. 15). Do mesmo modo, foi confirmado o dispositivo que prevê que a vegetação nativa da reserva legal deve ser conservada e a suspensão de qualquer atividade nessa área incompatível com os deveres de conservação (art. 17, caput e §3°), assim como os demais artigos que cuidam da compensação das áreas de Reserva Legal também foram declarados constitucionais (art.66) e aquele que dispensa o dever de recomposição, compensação ou regeneração dos percentuais exigidos na lei os imóveis em que foi realizada supressão de vegetação nativa respeitando os percentuais de Reserva Legal previstos pela legislação em vigor à época em que ocorreu a supressão (art. 68).
De fato, a Reserva Florestal Legal é uma restrição administrativa que incide sobre o exercício do direito de propriedade rural, independentemente da vegetação ali existente (natural, primitiva, regenerada ou plantada) ou do fato de esta vegetação ter sido substituída por outro uso do solo, merecendo lembrar que o fato de inexistir cobertura arbórea na propriedade não elimina o dever do proprietário de instaurar a Reserva Florestal Legal. Essa a intenção do Código Florestal de 1965, que ainda persiste no Código Florestal de 2012, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.
Contudo, ao que consta, a controvérsia não será, enfim, debelada com o resultado do julgamento das ações referidas pelo STF. No último mês de abril, os senadores Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e Marcio Bittar (MDB-AC), em iniciativa que reacende o debate que se acreditava estar em vias de extinção, apresentaram o PL 2.362/19, que pretende revogar todo o capítulo que trata da Reserva Florestal Legal contido na lei federal 12.651/12.
Em vista do que constou do julgamento do STF e do que se tem colhido da discussão havida na jurisprudência e na doutrina acerca do princípio da proibição do retrocesso em matéria de salvaguarda de direitos ambientais, tem-se que as chances de êxito desse projeto de lei são reduzidíssimas, não havendo sombra de dúvidas que, na aprovação da alteração legislativa pretendida pelo Congresso Nacional, novamente a eficácia do Código Florestal será colocada em xeque, mediante a propositura de novas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ou até mesmo a instauração de Reclamação, com vistas ao restabelecimento da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas nas ADIns suprarreferidas.
Diante desse cenário, na contramão da finalidade declarada – “remover entraves para a expansão da agropecuária, gerar empregos e contribuir para o crescimento do país” –, ao invés de permitir que se alcance um desfecho para este assunto, face ao possível desgaste que o debate acarreta para as engrenagens do poder legislativo e ao risco concreto de nova judicialização do Código Florestal, é provável que essa iniciativa recente retarde a solução para a situação de incerteza e indefinições experimentada pelos proprietários rurais. É necessário resguardar, em alguma medida, os interesses daqueles proprietários rurais que – por vontade própria ou por determinação judicial – já buscaram a regularização de seus imóveis nos termos da nova lei e dependem, para o reconhecimento da regularidade, do fim dessa discussão para prosseguir com sua atividade sem a sombra da incerteza e da insegurança jurídica.
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*Édis Milaré é procurador de Justiça aposentado, foi o primeiro coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo; sócio do escritório Milaré Advogados.
*Rita Maria Borges Franco é doutora e mestre em Direitos Difusos e Coletivos, concentração em Direito Ambiental, pela PUC-SP, advogada do escritório Milaré Advogados.