Ao redor do mundo, a proteção do consumidor é considerada um grande desafio e, por isso, consiste em um dos temas mais estudados na área jurídica atualmente. A história nos mostra que, entre os séculos XX e XXI, alguns fenômenos marcaram o nascimento e desenvolvimento do direito do consumidor como disciplina jurídica autônoma (microssistema jurídico). Tais fenômenos são resultantes de um novo modelo de associativismo: a sociedade de consumo, caracterizada pela massificada produção e oferta crescente de produtos e serviços, pela concessão sem precedentes de crédito, pela utilização maciça da publicidade e pela dificuldade de acesso à justiça.1
Segundo Grinover2, a purificação do mercado pode ser feita por meio de dois modelos: o modelo privado e o modelo de intervencionista estatal. O Brasil adotou o modelo intervencionista, sendo que logo no art. 4º o CDC dispõe sobre a Política Nacional das Relações de Consumo, visando o atendimento estatal das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, devendo atender ao princípio da racionalização e melhoria dos serviços públicos.
Logo mais, o art. 6º do diploma consumerista faz novamente menção os serviços públicos, afirmando que são direitos básicos do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
Já o art. 22 consolida uma série de normas-princípios e normas-regras que deverão pautar a prestação dos serviços públicos, dizendo que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Ademais, há divergência doutrinária e jurisprudencial em torno da questão se todo serviço público é serviço de consumo.3 O entendimento prevalecente é que o CDC só se aplicará aos serviços públicos chamados “uti singuli”, desde que remunerados por tarifas. Como exemplo desses serviços, há o abastecimento de água (regra geral), a telefonia, a energia elétrica, o transporte coletivo, entre outros.4
Sabendo disso, mister se faz conceituar serviço público. As teorias do serviço público desenvolveram-se no primeiro terço do século passado, com a Escola Francesa do Serviço Público, chefiada por Léon Duguit. A definição clássica de serviço público reunia então três elementos: a) o subjetivo, que considera a pessoa jurídica prestadora da atividade – o serviço público seria aquele prestado pelo Estado; b) o material, que considera a atividade exercida – o serviço público seria a atividade que tem por objeto a satisfação de necessidades coletivas; e c) o formal, que considera o regime jurídico – o serviço público seria aquele exercido sob regime de Direito Público derrogatório e exorbitante do Direito Comum.5
Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, esse conceito foi fortemente abalado, já que se ampliou a noção de intervenção e rol de atividades próprias do Estado, passando este a exercer atividades que alhures cabiam exclusivamente aos particulares.6
De outro lado, o próprio ente estatal percebeu que não dispunha de organização adequada à realização desse tipo de atividade e, em consequência, começou a haver a gestão de serviços públicos por particulares através dos contratos de concessão de serviços públicos. Assim, admitiu-se que algumas atividades de empresas particulares tinham caráter de serviço público, quer pela própria natureza delas, quer pela repercussão social que atingiam.7
Houve, portando, um declínio da noção tradicional de serviço público, passando no Brasil a ser considerado como uma atividade pública administrativa destinada à satisfação de necessidades individuais ou transindividuais essenciais, vinculadas diretamente a um direito fundamental e exercida sob o regime de direito público.
Nessa linha, o conceito de serviço público de Juarez Freitas equivale a todo aquele essencial para a realização dos objetivos fundamentais do Estado Democrático, devendo, por isso mesmo, ser prestado sob regime peculiar juspublicista. Tal traço de essencialidade, mais do que de existencialidade, merece ser profundamente sublinhado. É prestado direta ou indiretamente pela Administração Pública ou, ainda, por pessoas alheias ao seu âmbito, cabendo destacar que o Estado não pode prescindir de sua adequada prestação, em um dado contexto histórico, como essencial à consecução de seus fins.8
Assim, segundo Georges Vedel9, se uma atividade foi elevada à categoria de serviço público apresenta uma característica particularmente imperiosa para a vida nacional ou para a vida local, de modo que se impõe que o serviço funcione a qualquer preço.
Dessa forma, o professor francês traz que: a) a continuidade do serviço público supõe, em primeiro lugar, o funcionamento pontual e regular do serviço; b) quando a Administração assegura ela própria a gestão do serviço como regra, é ilegal que interrompa o serviço, exceto por força maior e; c) Quando a gestão do serviço público é assegurada por um concessionário, este deve a qualquer preço assegurar a continuação do serviço mesmo que näo encontre sua remuneração e sofra um déficit.
Era com base nesse entendimento que o STJ considerava ilegal a interrupção no fornecimento de serviços essenciais (por ex.: energia elétrica e água e esgoto), mesmo que inadimplente o consumidor, por entender existir expressa vedação à luz do CDC, finalizando que deveria a concessionária de serviço público utilizar-se dos meios próprios para receber os pagamentos em atrasos.10
Podemos observar, apenas a título de ilustração, diversos acórdãos nesse mesmo sentido:
EMENTA: CORTE NO FORNECIMENTO DE ÁGUA. INADIMPLÊNCIA DO CONSUMIDORE. ILEGALIDADE.
1. É ilegal a interrupção no fornecimento de energia elétrica, mesmo que inadimplente o consumidor, à vista das disposições do Código de Defesa do Consumidor que impedem seja o usuário exposto ao ridículo.
2. Deve a concessionária de serviço público utilizar-se dos meios próprios para receber os pagamentos em atrasos.
3. Recurso não conhecido.
(REsp 122.812/ES, rel. ministro MILTON LUIZ PEREIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/12/2000, DJ 26/03/2001, p. 369)
EMENTA: FORNECIMENTO DE ÁGUA - SUSPENSÃO - INADIMPLÊNCIA DO USUÁRIO - ATO REPROVÁVEL, DESUMANO E ILEGAL - EXPOSIÇÃO AO RIDÍCULO E AO CONSTRANGIMENTO.
A Companhia Catarinense de Água e Saneamento negou-se a parcelar o débito do usuário e cortou-lhe o fornecimento de água, cometendo ato reprovável, desumano e ilegal. Ela é obrigada a fornecer água à população de maneira adequada, eficiente, segura e contínua, não expondo o consumidor ao rídiculo e ao constrangimento.
Recurso improvido.
(REsp 201.112/SC, rel. ministro GARCIA VIEIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/04/1999, DJ 10/05/1999, p. 124)
EMENTA: ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA. CORTE. IMPOSSIBILIDADE.
1. É condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica, sujeitando-se até a responder penalmente.
2. Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma.
3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.
4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público.
5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade.
6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa.
7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.
8. Recurso improvido”.
(RMS 8915/MA RECURSO ORDINARIO EM MANDADO DE SEGURANÇA Relator Ministro JOSÉ DELGADO Publicado no DJ 17.08,1998, p. 23)
EMENTA: FORNECIMENTO DE ÁGUA - SUSPENSÃO - INADIMPLÊNCIA DO USUÁRIO - ATO REPROVÁVEL, DESUMANO E ILEGAL - EXPOSIÇÃO AO RIDÍCULO E AO CONSTRANGIMENTO.
(REsp 201112 /SC RECURSO ESPECIAL Relator Ministro GARCIA VIEIRA PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 20.04.1999 Data da Publicação DJ 10.05.1999, p. 124).
Após diversas oscilações, em entendimento contrário ao adotado, a jurisprudência do Tribunal da Cidadania pacificou a questão pela admissibilidade de suspensão do fornecimento de serviços públicos essenciais por inadimplemento do consumidor. O acórdão abaixo assim sintetiza:
“RECURSO ESPECIAL. CORTE DO FORNECIMENTO DE LUZ. INADIMPLEMENTO DO CONSUMIDOR. LEGALIDADE. FATURA EMITIDA EM FACE DO CONSUMIDOR. SÚMULA 7/STJ.
1. É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (lei 8.987/95, art. 6.º, § 3.º, II). Precedente da 1.ª Seção: REsp 363.943/MG, DJ 01.03.2004
2. Ademais, a 2.ª Turma desta Corte, no julgamento do REsp 337.965/MG entendeu que o corte no fornecimento de água, em decorrência de mora, além de não malferir o Código do Consumidor, é permitido pela lei 8.987/95.
3. Ressalva do entendimento do relator, no sentido de que o corte do fornecimento de serviços essenciais - água e energia elétrica - como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de respeito à dignidade humana, porquanto o cidadão se utiliza dos serviços públicos, posto essenciais para a sua vida. Curvo-me, todavia, ao posicionamento majoritário da Seção.
4. A aplicação da legislação infraconstitucional deve subsumir-se aos princípios constitucionais, dentre os quais sobressai o da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República e um dos primeiros que vem prestigiado na Constituição Federal.
5. A Lei de Concessões estabelece que é possível o corte, considerado o interesse da coletividade, que significa não empreender o corte de utilidades básicas de um hospital ou de uma universidade, tampouco o de uma pessoa que não possui módica quantia para pagar sua conta, quando a empresa tem os meios jurídicos legais da ação de cobrança.
6. Ressalvadas, data maxima venia, opiniões cultíssimas em contrário e sensibilíssimas sob o ângulo humano, entendo que o 'interesse da coletividade', a que se refere a lei, pertine aos municípios, às universidades, aos hospitais, onde se atingem interesses plurissubjetivos.
7. Por outro lado, é mister considerar que essas empresas consagram um percentual de inadimplemento na sua avaliação de perdas, por isso que é notório que essas pessoas jurídicas recebem mais do que experimentam inadimplementos.
8. Destacada minha indignação contra o corte do fornecimento de serviços essenciais a municípios, universidades, hospitais, onde se atingem interesses plurissubjetivos, submeto-me à jurisprudência da Seção.
9. In casu, a conclusão do Tribunal de origem acerca da liquidez e certeza da fatura emitida pela concessionária em face do consumidor, resultou do exame de todo o conjunto probatório carreado nos presentes autos. Consectariamente, infirmar referida conclusão implicaria sindicar matéria fática, interditada ao E. STJ em face do enunciado sumular n.º 07 desta Corte
10. É inviável a apreciação, em sede de Recurso Especial, de matéria sobre a qual não se pronunciou o tribunal de origem, porquanto indispensável o requisito do prequestionamento. Ademais, como de sabença, "é inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada na decisão recorrida, a questão federal suscitada" (súmula 282/STF), e "o ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento" (Súmula 56/STJ).
11. Revelam-se deficientes as razões do recurso especial quando a recorrente não aponta, de forma inequívoca, os motivos pelos quais considera violados os dispositivos de lei federal, bem como, quando limita-se a impugnar a sentença de primeiro grau, fazendo incidir a Súmula 284 do STF: "É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia." 12. Agravo regimental desprovido”.
(AgRg no REsp 963990 / SC AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2007/0146420-7 Relator Ministro LUIZ FUX PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento: 08.04.2008. Data da Publicação e Fonte: DJe 12.05.2008).
Ocorre que, o próprio STJ vem estabelecendo diversas restrições para que se efetive seu entendimento em favor da interrupção dos serviços públicos essenciais. São elas:
a) o corte do serviço deverá respeitar o princípio da não surpresa, devendo existir prévia comunicação, por escrito, visando dar a oportunidade de o consumidor pagar seu débito e purgar a mora (Resp. AgRg no AREsp 412822 / RJ; REsp 1270339 / SC);
b) não é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica por dívida pretérita, a título de recuperação de consumo, em face da existência de outros meios legítimos de cobrança de débitos antigos não pagos (REsp 1298735/RS). Deve, assim, o débito ser atual para que haja a interrupção do serviço;
c) quando configurado o abuso de direito pela concessionária, cujo reconhecimento implica a responsabilidade civil de indenizar os transtornos sofridos pelo consumidor. Incidem, portanto, os princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade (por ex.: suspender o fornecimento de energia elétrica em razão de um débito de R$ 0,85, não age no exercício regular de direito, e sim com flagrante abuso de direito). Nesse sentido o REsp 811690/RR;
d) quando o débito decorrer de suposta fraude no medidor de consumo de energia apurada unilateralmente pela concessionária (REsp 1298735/RS; AgRg no AREsp 346561/PE; AgRg no AREsp 370812/PE);
e) desde que a interrupção não atinja serviços públicos essenciais para a coletividade, tais como escolas, creches, delegacias e hospitais. Coloca-se em evidencia o princípio da supremacia do interesse público (EDcl no REsp 1244385 / BA; AgRg no REsp 1523996/RR; AgRg no AREsp 301907/MG; AgRg no AREsp 543404/RJ; AgRg nos EREsp 1003667/RS);
f) quando a interrupção da prestação de serviços públicos por inadimplência do usuário for violar o direito à vida, à saúde e a dignidade humana. O STJ faz verdadeira ponderação principiológica, onde o sistema constitucional brasileiro (art. 170, caput, da CF), determina que a ordem econômica tenha por fim assegurar a todos uma existência digna. A propriedade privada e a livre iniciativa, postulados mestres no sistema capitalista,11 são apenas meios cuja finalidade é prover a dignidade da pessoa humana (REsp 1101937 / RS; AgRg no REsp 1201283 / RJ; AgRg no REsp 1162946 / MG; REsp 853392/RS).
Dessa forma, verificamos que a continuidade e a universalização do serviço público essencial, trazidos pelo CDC, sofreram ao longo dos anos mitigação pelo STJ, que, valorando o princípio da supremacia do interesse público em face do individualismo consumerista, passou a considerar legítima a interrupção dos serviços públicos essenciais, desde que observadas certas especialidades, conformadoras dos diversos diplomas legislativos aplicáveis e asseguradoras do direito a um serviço mínimo vital, da boa-fé do consumidor e da dignidade da pessoa humana.
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1 Lucas Gandolfe. Disponível aqui.
2 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2007.
3 BENJAMIN, Antônio Herman V.. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
5 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Teoria dos Serviços Públicos e sua Transformação. In: NUSDEO, Ana Maria de Oliveira; SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 42.
6 BLANCHET, Luiz Alberto. Concessão e Permissão de Serviços Públicos. Curitiba: Juruá, 1995. ——–. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. Curitiba: Juruá, 2006. p. 51-68.
7 Id. Ibid., p. 42.
8 FREITAS, Juarez. O novo regime de concessões e permissões de serviços públicos. Revista Jurídica, Porto Alegre, Não determinada, v. 210, abr. 1995, p. 33.
9 VEDEL, Georges. Droit administratif, pp. 814-815.
10 TÁCITO, Caio. “CONSUMIDOR – FALTA DE PAGAMENTO – CORTE DE ENERGIA”. Revista de direito administrativo, nº 219, ja./mar. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000.
11 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
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*Lucas Gandolfe é advogado e membro da Comissão de Proteção e Defesa do Consumidor, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI), especialista em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica – MG e Extensão em Aspectos Legais nas Relações de Consumo pela Fundação Getulio Vargas.