Migalhas de Peso

Excesso de recursos compromete o Tribunal da Cidadania

Urge e é fundamental que o Tribunal Superior recupere seu prestígio, mas é inegável que não se conseguirá reduzir o expressivo número de recursos que a ele chega, a maior parte como agravo.

3/5/2019

1. Da origem do recurso extraordinário

Data de 1789 a criação pelos Estados Unidos de um recurso a ser decidido pela Suprema Corte contra as sentenças finais da justiça estadual que tenham enfrentado a validade de tratado, lei ou ato de autoridade questionado em face da Constituição; a validade de lei ou ato de autoridade do Estado em face da Constituição, lei ou tratado da União; e quando se questionou no processo sobre título, direito, privilégio ou isenção reclamada com apoio em interpretação da Constituição (BERMUDES, 1975, p. 234, n. 225).

Nesses casos, a decisão, dependendo do reconhecimento da validade ou invalidade do ato discutido, poderia, a pedido da parte, ser pela Corte Suprema, por meio de um procedimento, writ of error, com início no próprio Supremo Tribunal, que, provocado, requisitava os autos em que fora proferida a decisão para que houvesse um novo julgamento da causa.

Procedimento semelhante a esse, embora com temperos tirados das Ordenações, se instituiu no Brasil, prevendo-se o recurso extraordinário, com julgamento atribuído à Corte Superior, em conformidade com as elevadas funções que lhe foram entregues. Assim, conferiu-se ao Supremo Tribunal Federal a missão de vigiar e controlar a validade das leis em face da Constituição, defender a autoridade do Direito Federal em face do Direito Estadual e Municipal e, ainda, velar pela unidade da aplicação do Direito Federal em todo o país (SILVA, 1963, p. 17). Procuram retratar essas atribuições tanto o decreto 848, de 11 de outubro de 1890, como, em seguida, o art. 59, § 1º, da Constituição Republicana.

A redação da Constituição era bastante simples, cuidando da competência do Supremo, vindo, no § 1º do art. 59, a dispor especificamente sobre o extraordinário, fazendo-o nos seguintes termos:

“§ 1º - Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas”.

A disposição era mais direta que a do decreto que antes fora editado. Cogitava de “decisões definitivas” e admitia o recurso quando a decisão fosse contrária à validade de tratado ou convenção ou à aplicação de uma lei do Congresso Federal; quando a decisão houver reconhecido a validade de uma lei federal posta em confronto com a Constituição, um tratado ou a lei federal; e quando a interpretação de preceito da Constituição ou de lei ou de tratado seja posta em questão e a decisão final tenha sido no sentido de negar a validade de título, direito, privilégio ou isenção derivada do preceito.

2. Das disposições sobre o extraordinário até o advento do especial

Nas sucessivas Constituições e suas emendas, o texto que disciplinava o extraordinário foi sendo alterado em pormenores, de modo a autorizar o recurso para impugnar as decisões contrárias à Constituição ou a tratado ou lei federal; as que negam aplicação à lei questionada em face da Constituição; as que julgam válida lei ou ato do governo local contestado em face da Constituição; e as que deem à lei federal interpretação diversa daquela que lhe tenha sido dada por outro tribunal ou pelo próprio Supremo.

Nessa linha, era a regra do art. 119, inciso III, da Constituição de 1967, com a redação da emenda eonstitucional 1, de 1969:

“art. 119 - Compete ao Supremo Tribunal Federal: [...] III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato do governo local contestado em face da Constituição ou de lei federal; ou d) der à lei federal interpretação divergente da que lhe tenha dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal”.

Essa foi a última previsão sobre recurso extraordinário antes de ser criado o Superior Tribunal de Justiça, o que se deu com a Constituição Federal (CF) de 1988, na qual também foi instituído o recurso especial.

Basicamente, o especial cindiu o extraordinário, de modo que a previsão do novo recurso apropriou-se da parte que tratava da lei federal no extraordinário que subsistiu, mas ficou, assim, reservado somente à matéria de natureza constitucional. A única inovação efetiva, em termos de cabimento do recurso, foi a previsão do especial também para os casos de contrariedade à lei federal ou a tratado, de vez que antes se previa o extraordinário para a negativa de vigência a tratado ou lei federal. Talvez do ponto de vista prático a ampliação não seja sequer notada, representando filigrana, mas ela afeta o cabimento do recurso, de modo a, por exemplo, dar foros de legalidade à súmula 400 do Supremo. Concedeu-se, portanto, mercê da criação do especial, proteção às leis federais menores semelhante àquela que se confere e se conferia, até então, à Constituição. Ficou, pois, ao encargo do STJ velar e propugnar pela autoridade, integridade, validade e uniformidade de interpretação das leis federais em nível infraconstitucional (ARRUDA, 2002, p. 233).

A inovação efetiva foi a previsão do especial para os casos de contrariedade à lei federal

A previsão do art. 105, inciso III, estabeleceu: “Compete ao Superior Tribunal de Justiça: [...] III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válida lei ou ato do governo local contestado em face de lei federal; c) der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”.

Na essência, o especial é um pedaço do antigo extraordinário, de forma que guarda em seus requisitos os pontos que outrora foram daquele recurso, sendo que, outrossim, a interposição do antigo extraordinário restringe-se a questões constitucionais, mas seus princípios e regras emprestam inegavelmente subsídios para o entendimento do especial.

3. Da verdadeira razão para a criação do recurso especial

Logicamente que se cunhou uma justificativa teórica para essa divisão de competências pela Constituição, a contar de se enaltecer a criação de um Tribunal Constitucional, que passou a ser o perfil do STF. No entanto, a questão que efetivamente justificou o especial é de ordem prática, ou seja, excesso de recursos,1 aproveitando-se então para adorná-la com a importância de se ter uma corte que cuidasse exclusivamente da Constituição. José Afonso da Silva (1963, 214 e ss., p. 458 e ss.) já propunha, há muito tempo, uma solução desta ordem para aliviar a carga do Supremo, dizendo que a criação de um novo tribunal era uma reforma simples, mas de grande repercussão na vida judiciária.

Tanto o problema era de excesso de recursos que já se fazia presente, de maneira expressiva, uma clara restrição à admissibilidade e ao conhecimento do extraordinário. Por meio de súmulas, disciplinava-se o cabimento do recurso, mas, indo além de sua razão de ser, também eram formulados simples óbices, tentando evitar a recorribilidade.

Muitas súmulas, na verdade, davam a dimensão exata do extraordinário, não se mostrando, por si sós, como entraves artificiais à subida ou ao julgamento do recurso. Assim, por exemplo, as súmulas 279, que não admitia o recurso para reexame de prova; a 280, que não o permitia para enfrentar a ofensa ao direito local; a 454, que excluía o recurso para a reinterpretação de cláusula contratual; a 281, que vedava o recurso quando contra a decisão cabia recurso ordinário; a 282, que exigia o prequestionamento, na instância de origem, da matéria enfrentada no extraordinário; a 283, que não admitia o recurso contra apenas um dos fundamentos da decisão; a 284, vedando o recurso com deficiente fundamentação. Essas súmulas, entre outras, bem definiam o regime jurídico do extraordinário, que era um recurso de direito estrito, então não só constitucional, mas federal, e que revia a decisão da instância inferior, daí terem apoio teórico, constitucional e legal as restrições que se ditavam.

Existiam, porém, já ao lado dessas súmulas, outras ou interpretações delas que primordialmente buscavam a restrição. A falta de prequestionamento (súmula 282), exemplificando, guardava sentido, porque, realizando o Supremo um juízo de revisão, só poderia reexaminar o que tivesse sido antes examinado no tribunal recorrido. Isso se retirava da própria previsão constitucional (ROSAS, 2012, p. 139 e ss.). Até aí tudo bem. Todavia, agravou-se a questão com a interpretação acerca do que seria o prequestionamento que, na realidade, era só o exame da questão. Passou a se exigir até mesmo a menção, no julgado recorrido, do artigo de lei, reputando devesse existir o prequestionamento expresso.

A súmula 356 veio nesse sentido, obstando o recurso se não houvessem sido opostos embargos de declaração com relação ao ponto omisso, de modo que se passou a usar os embargos sempre que o dispositivo legal não tivesse constando do acórdão recorrido, tornando-o quase obrigatório, como, aliás, até hoje persiste. Cogitava-se mesmo, diante do silêncio do tribunal no julgamento dos embargos, de opor novos embargos, o que o Supremo, porém, entendeu desnecessário (ROSAS, 2012, p. 176).

Trabalhos doutrinários contemporâneos à criação do recurso especial não negavam a necessidade do prequestionamento, mostrando que o mesmo tinha razão de ser dada a natureza do recurso, mas propugnavam por um arrefecimento do entendimento que sobre ele se tinha. Nesse sentido, Sálvio de Figueiredo Teixeira (1991, p. 72) via como suficiente o prequestionamento implícito e entendia desnecessária a oposição de embargos de declaração para este fim. Também o admitia Athos Gusmão Carneiro (1991, p. 118), mas sem formalidades maiores.

Carlos Mario da Silva Velloso2 tinha, por sua vez, uma posição totalmente diferente. Sustentava que o prequestionamento não poderia ter vez no recurso especial, dado que o legislador quis alargar o raio de ação do especial, o que o prequestionamento não permitia.

Da mesma forma era também malvista a súmula 400, que admitia que se desse interpretação à lei federal apenas razoável, vedando, portanto, o recurso extraordinário contra a “decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor”.

Nossa posição, quanto a essa súmula, não negava a sua sustentação, de vez que, com relação à lei federal, o extraordinário era admitido no caso de negativa de vigência, que era a desconsideração da lei, de modo que uma decisão ainda que somente razoável não estava negando vigência à lei. Entretanto, a mudança da redação entre o extraordinário e o especial, nesse ponto, eliminava sua sobrevivência, pois uma só decisão era possível, de vez que o recurso passou a ser admitido contra a contrariedade da lei, que, logicamente, existiria também nas decisões somente razoáveis (FORNACIARI JUNIOR, 1991, p. 174), pois deve existir somente uma decisão válida.

Essa súmula, mesmo se entendendo não estar fora da natureza e do regime jurídico do extraordinário, sem dúvida alguma, acabava prestando-se para cercear sua subida, uma vez que mesmo decisões sem qualquer fundamentação,3 longe de poderemser vistas como razoáveis, acabavam sendo aceitas, negando a subida do recurso ou seu conhecimento pelo Supremo, de modo a não sobrecarregar a corte. De um modo geral, quiçá por conta disso, criticava-se a admissibilidade da decisão somente razoável e, de modo fundamentado ou não, sua sobrevivência era negada (VELLOSO, 1991, p. 39-40).4

4. Das restrições regimentais ao extraordinário

Se as súmulas eram vistas como vilãs, mesmo sem o serem, papel abjeto era mesmo o do Regimento Interno do Tribunal, que, deixando de ser interno, cuidando, pois, do procedimento do recurso no Supremo, com a edição da emenda 7 à Constituição de 1967, recebeu a incumbência de depurar as causas suscetíveis de serem recorridas extraordinariamente com fundamento nas alíneas a e d do inciso III do art. 119 da CF.

Se as súmulas eram vistas como vilãs, papel abjeto era mesmo o do Regimento Interno do Tribunal.

A emenda atribuiu, então, ao Supremo, embora órgão do Poder Judiciário, competência legislativa, que não poderia, pois, ser contrariada ou invadida por nenhuma outra norma, nem mesmo pelo Código de Processo Civil (CPC).

Valendo-se dessa competência, o Supremo restringiu, em um crescendo constante, o cabimento do extraordinário, fazendo-o de forma cada vez maior, praticamente deixando a possibilidade do recurso com base nas alíneas a e d apenas para questões constitucionais e em que fosse reconhecida a relevância da questão federal.

As restrições do Regimento foram cada vez maiores. Dessa forma, em setembro de 1970, o art. 308 do Regimento Interno passou a vedar o extraordinário nos seguintes casos:

“I - nos processos por crime ou contravenção a que sejam cominadas penas de multa, prisão simples ou detenção, isoladas, alternadas ou acumuladas, bem como as medidas de segurança com eles relacionadas; II - nos litígios decorrentes: a) de acidente do trabalho; das relações de trabalho mencionadas no art. 110 da Constituição; III - nos mandados de segurança, quando não julgarem o mérito; IV - nas causas cujo benefício patrimonial, determinado segundo a lei, estimado pelo autor no pedido, ou fixado pelo juiz em caso de impugnação, não exceda, em valor, de sessenta vezes o maior salário mínimo vigente no País, na data de seu ajuizamento, quando uniformes os pronunciamentos da instâncias ordinárias; e de trinta, quando entre elas tenha havido divergência, ou se trate de ação sujeita à instancia única”.

Como as limitações postas não se mostraram eficazes, em 1980, houve nova reforma do Regimento, aumentando ainda mais as hipóteses de inadmissibilidade, constando de nove incisos as restrições, sendo que algumas delas contemplavam dezenas de casos, como aquela que vedava o extraordinário nos procedimentos especiais e outra que o proibia nos procedimentos especiais do Código de 1939, que haviam sido mantidos em vigor pelo de 1973 (art. 325).

Não surtiu maior efeito a revisão anterior, advindo outra, em 1985, na qual se inverteu a ordem das coisas e passou a se elencar não as hipóteses vedadas, mas os poucos casos em que o recurso extraordinário poderia ser admitido. Assim, ficou o recurso permitido apenas nos casos de ofensa à Constituição, divergência com súmulas, crimes punidos com reclusão, revisões criminais de delitos punidos com reclusão, ações relativas à nacionalidade e direitos políticos, mandados de segurança julgados pelo mérito, ações populares, ações relativas a mandato eletivo e referentes a direitos da magistratura, ações relativas ao estado das pessoas julgadas pelo mérito, ações rescisórias julgadas procedentes em questão de direito material e casos em que fosse reconhecida a relevância da questão federal.

Os casos não previstos, portanto, no elenco do Regimento Interno poderiam chegar a ter seu recurso extraordinário admitido, desde que fosse reconhecida a existência de relevância da questão federal, que estava posta como regra de encerramento do rol regimental.

Esse instituto passou a ter enorme uso pelos advogados, mas êxito dos mais restritos. Para se arriscar na possibilidade de o recurso ser admitido por esta via era necessário que, na interposição do extraordinário, se demonstrasse, a par da ofensa à legislação federal, ter a questão debatida nos autos uma relevância maior do que aquela decorrente do processo em si, vendo-se, então, sua repercussão social, econômica, política ou de qualquer outra ordem. A arguição era feita num capítulo do recurso, enfatizando o alcance maior do caso, transpondo o simples interesse das partes.

Não cabia ao tribunal local enfrentar a questão, de modo que, chegando o recurso no Supremo, cópia dele era distribuída aos 11 ministros que votavam em reunião do conselho, em julgamento sigiloso, em que o resultado era simplesmente proclamado e se resumia a uma de três expressões: “não conhecida”, se não estivesse formalmente em ordem a alegação; “acolhida”, quando havia sido reconhecida a existência da relevância; ou “rejeitada”, quando não se entendia ter o assunto relevância além do caso em si. O resultado era mera proclamação, sem qualquer fundamentação.5

Quiçá se repetiam muito os casos, pois não se criava uma jurisprudência a propósito do que era ou não relevante, pois nada se dizia além de uma daquelas três expressões. Posteriormente, porém, na emenda regimental 2/85, passou a se divulgar o tema das arguições acolhidas, somente das acolhidas.

5. Do bom começo do Superior Tribunal de Justiça

Nesse quadro de autêntica falência do STF, que, apesar de todas as restrições que imaginou ao cabimento e conhecimento do recurso, não conseguiu conter essa verdadeira avalanche, nem mesmo com a questão da relevância, criaram-se o STJ e o recurso especial, que representavam um esvaziamento do Supremo, de vez que dele se retirava o que lhe dava mais trabalho, pois eram mais comuns os extraordinários, alegando-se ofensa à legislação infraconstitucional do que à Constituição.

O novo tribunal foi saudado com todas as honras. Via-se nele a possibilidade, finalmente, de um órgão nacional atinar para as deficiências e os pecados dos tribunais de segundo grau, corrigindo-os. Ele começou estimulado por essa receptividade e confiança, a que efetivamente fazia jus, tanto que, em curto espaço de tempo e em função de decisões de importância sobre o direito federal infraconstitucional, veio a ser reconhecido como o Tribunal da Cidadania.

Composto de 33 ministros, três vezes o aparato do Supremo, escolhidos 1/3 entre juízes dos tribunais regionais federais, 1/3 entre desembargadores dos Tribunais de Justiça e 1/3 entre advogados e membros do Ministério Público, o tribunal logo sentiu o peso do que se lhe exigia, que ficou maior, sem dúvida, do que a carga que recaía sobre o Supremo, em que pese, naquele tempo, ele julgasse questões constitucionais e infraconstitucionais. Passou ele a fazer o papel de terceira instância à qual eram levados praticamente todos os casos, embora muitos deles efetivamente sem condições de serem reexaminados em razão das limitações inerentes ao recurso especial.

6. Do crescimento do trabalho

O STJ começou usando as súmulas editadas pelo Supremo, dado ter a mesma estrutura daquele e haver inegável semelhança entre os recursos, de vez que ele passava a fazer aquilo que antes era o Supremo que fazia. Tratou o Superior, porém, logo de criar as suas súmulas, marcando-as, mesmo nos temas de definição do perfil de seu principal recurso, com caráter restritivo. Atualmente, a interpretação das súmulas tem sido feita no rigor máximo do formalismo, ainda mesmo aquele estéril que a nada conduz.

Não tinha e não se lhe deu (ao menos ainda) possibilidade de restringir recursos em função da natureza, valor e importância das causas, com o Regimento Interno do Supremo fora autorizado a fazê-lo e o fez durante muito tempo. Não se lhe deu (também ainda) um mecanismo de restrição como existia com a relevância da questão federal, mas o tribunal acabou, diante do enorme acervo que se acumulava para julgamento, criando aquilo que veio a denominar-se como “jurisprudência defensiva”:6 uma salvaguarda do tribunal contra o cidadão, que vem a importuná-lo com tantos recursos, de modo a melhor caracterizar-se como jurisprudência perversa, como também se denomina-a.

O tribunal cria pretextos, à margem da lei, para evitar a admissibilidade do recurso

Valendo-se de verdadeiros expedientes, o tribunal cria armadilhas, pretextos, à margem da lei, para evitar o conhecimento ou a admissibilidade do recurso, furtando-se de julgar o seu mérito. Força-se a busca de uma formalidade, sem aferir sobre a utilidade da mesma. São entendimentos sem base legal e até constitucional, mas que se mostram enraizados e são verdadeiramente invencíveis,7 pois é difícil se acreditar que isso possa ser exigido; ou, então, são exigências que não dependem da atuação do advogado, por mais diligente que ele pudesse ser.8

Na vigência do CPC anterior, não se conhecia, por exemplo, de recursos quando o carimbo do protocolo não estivesse legível, embora ninguém, nem a parte contrária, levantara questão sobre a tempestividade do recurso, para se ter que examinar os dados do protocolo. Uma cópia xerox ilegível ou simplesmente mal colocada nos autos também conduzia ao não conhecimento do recurso, como ainda a falta de alguns tostões no pagamento de uma guia de custas. Sobre aspectos como esses não se admitia houvesse conserto e, assim, a decisão era, na prática, irreversível.

O CPC atualmente em vigor foi mais tolerante em termos de permitir fossem supridos vícios, contando, porém, mesmo assim, com a resistência do Superior Tribunal. Dessa forma, a criatividade não se arrefeceu, de modo que são constantes os casos em que não se conhece de recursos, pois não foi provado que a interposição se deu no dia seguinte do vencimento do prazo, pois havia um feriado local,9 mesmo se fosse daqueles tradicionais e comemorados em todo o Brasil, como carnaval, Corpus Christi, finados.10 A ressalva coloca-se apenas com relação aos feriados nacionais. Até mesmo a prova do feriado se impõe pela apresentação da lei que o criou, já não tendo sido julgado suficiente o provimento do tribunal, reconhecendo a existência do feriado.11

A própria lei processual que procurou eliminar entraves, de modo a garantir o efetivo julgamento de mérito dos processos, ou seja, superando-se as formalidades desde que não prejudique a parte contrária, tem sido interpretada restritivamente e sem maior preocupação científica, negando-se, por exemplo, a figura do prequestionamento ficto,12 criado a partir do art. 1.025 do CPC, ao determinar que se considere prequestionado o dispositivo que foi alegado em embargos de declaração rejeitado ou não conhecido. Pretende-se com a restrição criada que o uso dessa regra se faça conjuntamente com a alegação de violação ao art. 1.022 da Lei de Processo, apontando-se para a nulidade da decisão que não apreciou o que deveria ter apreciado. Fere-se a letra da lei que prevê exatamente o contrário, ou seja, que a simples alegação supra o não exame pelo tribunal recorrido.

Talvez o pior desses óbices todosé a simples afirmação de que se alegou a ofensa à lei, mas não se demonstrou,13 sem dizer o que faltou para que se visse efetivamente demonstrada a ofensa à legislação. Assertivas desse teor são por demais graves, pois é a negativa de um direito sem dizer como deveria ter-se feito para alcançar o seu reconhecimento. Resposta a isso é difícil. Melhor é a simples reafirmação de que se demonstrou, repetindo, inteiramente e dizendo que está repetindo o que se disse e pedindo ao órgão a que se recorre que ateste o que faltou ou confirme se o deduzido não é suficiente como demonstração do desrespeito à lei.

A situações deste jaez soma-se a odiosa prática da ameaça, com a qual se procura intimidar o uso de recurso contra decisões monocráticas que não conheceram ou negaram provimento a recurso interposto. Induz-se o recorrente a até do recurso desistir, uma vez que se adverte a parte de que seu uso poderá justificar imposição de multa ou mesmo agravamento da fixação de honorários.14

Usa, sem dúvida, muito mal o STJ o título a que, no passado, fez realmente jus: Tribunal da Cidadania. Suas decisões estão empobrecidas, dado que se cuida muito mais de aspectos formais, secundários, vistos sem atinar-se para a razão da regra, e, na essência, irrelevantes, do que do direito material, ficando longe de cumprir sua função de intérprete derradeiro da legislação federal infraconstitucional.

7. Do que lhe resta

Urge e é fundamental que o Tribunal Superior recupere seu prestígio, mas é inegável que não se conseguirá reduzir o expressivo número de recursos que a ele chega, a maior parte como agravo, pois os tribunais estaduais e federais ajudam a represar a subida dos especiais, sendo, pois, um valioso aliado na tentativa de reduzir o trabalho da Corte Superior, antecipando-se no exagero da restrição e até na criação da jurisprudência defensiva.

O número de recursos decorre do número de processos, problema que é fruto da facilitação do acesso à Justiça, sem indicar a porta de saída; da transformação do cidadão em consumidor, de modo que ele reclama a realização efetiva daquilo que a legislação disse a ele garantir; do elevado e crescente grau de litigiosidade da população; da falta de definição sobre questões simples, que poderiam ser assentadas por agências reguladoras; e até de uma jurisprudência vacilante e insegura, que não traz para o jurisdicionado certeza alguma, convidando-o a arriscar em mais uma instância.

O entendimento dos tribunais sobre questões de fundo, mérito das controvérsias, deveria ser mais firme e consistente, definindo posições e procurando mantê-las por longo tempo, de modo a desestimular a recorribilidade, porque se conhece a posição do tribunal e se sabe que não é tão simples alterá-la.

Valores de indenizações, por exemplo, deveriam ser legalmente definidos, evitando-se apostas na possibilidade de aumento ou redução do quanto fixado nas instâncias ordinárias. Deveria, efetivamente, se cumprir a súmula que diz vedar rever fatos e provas, o que, ao contrário do que diz a súmula 7, ocorre a pretexto de que, em situações excepcionais, isso se faz possível, usando termos que não se explicam sozinhos, como exorbitante, insignificante, razoabilidade, proporcionalidade, que não conferem solidez à asserção, pois são relativos. Álea pura, portanto, uma vez que não se tem uma diretriz clara sobre quais seriam essas circunstâncias excepcionais.

Não adianta aumentar o valor das custas nem o número de ministros; não adianta criar embaraços; não adianta pugnar para que se restrinja o acesso à Corte Superior de causas de menor valor ou de procedimentos mais singelos. Isso e muito mais já foi antes testado pelo Supremo e não deu resultado.

A qualidade dos julgamentos e a solidez do resultado serão sim uma inibição para a busca de reforma, por isso há de se cobrar qualidade dos órgãos de segundo grau e mostrar o Tribunal Superior também qualidade. Há de haver trabalho e trabalho de qualidade, criando no cidadão a confiança no tribunal pela segurança que ele já demonstrou, há não muito tempo, criando efetivos precedentes marcados inegavelmente pela qualidade.

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1 Cf., entre outros, Velloso (1991, p. 4). Santos (1991, p. 91) traz pesquisa que bem demonstra o grave problema do expressivo aumento no número de recursos: até 1950, o Supremo havia julgado 17 mil recursos; esse número saltou em 1965 para 60 mil; e em 1988, quando foi criado o recurso especial, para 120 mil recursos.

2 Apud Athos Gusmão Carneiro, trabalho e local antes citados (1991).

3 Roberto Rosas (2012, p. 203), na linha de Orosimbo Nonato, deixa claro que a decisão razoável deveria ser “reforçada com argumento poderosos”, com o que ela passava a representar uma corrente de pensamento. Isso realmente lhe dava sustentação.

4 Eduardo Ribeiro de Oliveira dizia não ser aceitável decisão menos exata (1991, p. 177).

5 Vem da preocupação com esta forma de julgamento a atual redaçã do inciso IX do art. 93 da CF, impedindo e reprovando o modo de julgamento da relevância. A disposição veda o julgamento sob sigilo e a decisão sem fundamentação, prevendo: “Todos os julgamentos em órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]”.

6 O nome deve-se ao ministro Humberto Gomes de Barros, no seu discurso de posse no cargo de presidente do STJ em 2008.

7 A campanha da AASP contra esta prática tem feito produzir excelentes manifestações a propósito do assunto, demonstrando o que ele guarda de perverso e os direitos que lesa, prejudicando os jurisdicionados e verdadeiramente lesando o direito de quem precisa do Judiciário. Entre elas, por ser mais recente, veja-se “Pretexto e obstáculos ao pleno exercício do Direito”, Boletim 3.076 (ASSOCIAÇÃO, 2019, p. 6).

8 Diante do não conhecimento de recursos a pretexto de que o protocolo não era legível e, pois, não permitia que se aferisse a tempestividade, escrevemos um artigo abordando a impossibilidade de se superar esse vício e denominamos de “E Kafka ficou infantil”, pois a ideia nem sequer chegou a ser imaginada por Franz Kafka, com toda sua criatividade na ficção sobre os enredos que comprometem a vida do cidadão. O texto é parte do nosso Processo Civil: verso e reverso (2005, p. 163 e ss.). 

9 AgInt no AREsp 1.325.535; AgRg no AREsp 687.394; AgInt no AREsp 957.821.

10 O citado Boletim da AASP (ASSOCIAÇÃO, 2019) registra a existência de 1.810 acórdãos e 87.848 decisões monocráticas considerando temado “feriado local”.

11 Referindo-se a “documento oficial”, Ag nos EDcl no AREsp 642.610. Decisão no AgInt no REsp 1.666.794 recusou a prova por meio de “cópia do calendário do Judiciário extraído da internet”.

12 AgInt no AREsp 1.344.145; AgInt no AREsp 1.117.302; AgInt nos EDcl nos EDcl no REsp 1.700.251.

13 A simples referência aos dispositivos legais desacompanhada da necessária argumentação que sustente a alegada ofensa à legislação federal não é suficiente para o conhecimento  do recurso especial” (AgReg no AREsp 601.358).

14 Entre tantas outras decisões monocráticas: REsp 1.793.452; REsp 1.792.517; e REsp 1.792.465.

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ASSOCIAÇÃO dos Advogados de São Paulo. Pretexto e obstáculos ao pleno exercício do Direito. Boletim nº 3.076, São Paulo, AASP, p. 6, fev. 2019.

ARRUDA, Antonio Carlos Matteis de. Recursos no Processo Civil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.

BERMUDES, Sérgio. Comentários ao Código de Processo Civil. 7 v. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975.

CARNEIRO, Athos Gusmão. Anotações sobre o recurso especial. In: Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991.

FORNACIARI JÚNIOR, Clito. Recurso especial com fundamento na letra a do permissivo constitucional. In: Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991.

______. E Kafka ficou infantil. In: Processo Civil: verso e reverso. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005.

OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro de. Recurso especial – algumas questões de admissibilidade”. In: Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991.

ROSAS, Roberto. Direito sumular. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

SANTOS, Francisco Cláudio de Almeida. Recurso especial – Visão geral. In: Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991.

SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no Direito Processual Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963.

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O recurso especial e o Superior Tribunal de Justiça. In: Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991.

VELLOSO, Carlos Mario da Silva. O STJ – competências originária e recursal. In: Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991.

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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.

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*Clito Fornaciari Júnior é advogado, mestre em Direito pela PUC-SP, ex-presidente da AASP, ex-conselheiro da OAB-SP e sócio da Clito Fornaciari Júnior - Advocacia.

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