Vedação da dupla penalidade administrativa nas relações de consumo (non bis in idem)
Sérgio Pinheiro Marçal*
O artigo 5º do Decreto 2.181/97 (clique aqui) estabelece que qualquer entidade ou órgão da Administração Pública, federal, estadual, municipal, destinado à defesa dos interesses e direitos do consumidor, tem, no âmbito de suas respectivas competências, atribuição para apurar e punir infrações à legislação das relações de consumo.
Ou seja, de um primeiro exame do texto legal aparentemente seria possível a multiplicação de procedimentos investigatórios de uma mesma infração, com punições aplicáveis pelos mais variados entes de defesa do consumidor.
Esse entendimento é defendido por muitos que acreditam não existir dentro do sistema de defesa do consumidor centralização do poder de fiscalização e de sanção. Cada órgão poderia atuar dentro da sua competência e de forma paralela em hipótese de competência concorrente.
Não nos parece ser esse o melhor entendimento, na medida em que muitos casos – como a convocação de recall e seus efeitos – estariam dentro da esfera de jurisdição e competência de praticamente todos os órgãos. Não se pode admitir a multiplicação de procedimentos investigativos e muito menos da aplicação de sanções por mais de um órgão em relação à mesma prática. Há que se buscar, dentro de uma interpretação sistemática das normas, uma solução que evite situações que a lei não pode querer.
O que se busca evitar, nesse tipo de circunstância, onde mais de um ente tenha competência e jurisdição, é a ocorrência do bis in idem. De fato, o non bis in idem é um princípio geral de direito, com aplicação especialmente no âmbito administrativo e penal, que veda a dupla punição. DANIEL FERREIRA comenta:
“O non bis in idem, ao contrario, tem outra e especial serventia enquanto princípio geral do Direito: a de proibir reiterado sancionamento por uma mesma infração – vale dizer, afastar a possibilidade de múltipla e reiterada manifestação sancionadora da Administração Pública.” (in “Sanções Administrativas”, Malheiros Editores).
Em recente acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, analisando mandado de segurança impetrado contra a dupla aplicação de sanção – pelo DPDC e pelo PROCON/SP – em caso de recall de âmbito nacional, foi decidido não ser possível o bis in idem. Confira-se trecho do recurso adotado como razão de decidir do acórdão:
“Como bem argumentou a apelante, nas suas razões de recurso, verbis (fls 704):
...o processo administrativo que teve curso em Brasília tinha por objeto a apuração da alegada infração em seus reflexos por todo o território nacional, sobrepondo-se a qualquer outro. Aliás, deve ser frisado que os fatos que levaram à convocação da campanha de recall são uniformes e jamais poderiam ser investigados localmente, justificando competência de órgão estadual ou municipal. A apelante comercializa veículos por todo o território nacional e o recall realizado tinha abrangência federal.
Ainda cabe observar que o DPDC impôs à apelante multa em seu grau máximo (R$ 3.192.300,00), não havendo sentido em que outros órgão apliquem novas multas para punir a mesma infração. Se assim fosse, chegar-se-ia ao raciocínio absurdo de que a apelante poderia ser punida tantas vezes quanto fossem o número de órgãos de defesa do consumidor existentes no país. Ou seja, a apelante poderia sofrer milhares de multas aplicadas nas mais variadas gradações.” (apelação cível nº 344.553-5/0-00)
Cabe mencionar que a solução para o non bis in idem encontra-se na própria regulamentação que dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, onde se prevê a hipótese de instauração de processos relativos ao mesmo ato infracional. Cite-se os artigos 15 e 16 do Decreto nº 2.181/97:
“Art. 15 – Estando a mesma empresa sendo acionada em mais de um Estado federado pelo mesmo fato gerador de prática infrativa, a autoridade máxima do sistema estadual poderá remeter o processo ao órgão coordenador do SNDC, que apurará o fato e aplicará as sanções respectivas.
Art. 16 – Nos casos de processos administrativos tramitando em mais de um Estado, que envolvam interesses difusos ou coletivos, o DPDC poderá avocá-los, ouvida a Comissão Nacional Permanente de Defesa do Consumidor, bem como as autoridades máximas dos sistemas estaduais.”
É evidente que as normas em questão visam obstar a ocorrência de decisões que imponham mais de uma penalidade para a mesma infração. Uma das hipóteses, como visto, é de remessa ex officio e a outra é de avocação no caso de interesses difusos ou coletivos.
A questão que parece gerar dúvida é a de como interpretar o comando “poderá” expresso nos dois artigos acima citados. Nos parece sem sombra de dúvida que aqui se trata de poder vinculado e não discricionário1. De fato, diante da necessidade de preservação do sistema e de evitar interpretação que conduza ao absurdo, as normas acima transcritas só fazem sentido se trouxerem um poder-dever e não uma mera faculdade.
A interpretação sistemática das regras de defesa do consumidor não pode conduzir a um absurdo que seria o de permitir a multiplicidade de sanções. A esse respeito, CARLOS MAXIMILIANO comenta:
“Deve o direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este juridicamente nulo.
…
Desde que a interpretação pelos processos tradicionais conduz a injustiça flagrante, incoerências do legislador, contradição consigo mesmo, impossibilidades ou absurdos, deve-se presumir que foram usadas expressões impróprias, inadequadas, e buscar um sentido eqüitativo, lógico e acorde com o sentir geral e o bem presente e futuro da comunidade.” (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1997, página 166).
Com isso, os órgãos e entidades que compõem o SNDC devem necessariamente adotar a interpretação mais lógica e eqüitativa das normas acima citadas e determinar, sempre que presentes os pressupostos legais, a reunião de procedimentos fiscalizatórios que tenham por origem a mesma prática infrativa. O não atendimento do comando legal vinculado implica em desrespeito à norma posta – com as conseqüências administrativas e funcionais cabíveis - e acarretara a nulidade do processo de investigação instaurado em duplicidade.
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1“O Estado, ou quem faça as suas vezes, na prática de atos administrativos, pode se encontrar em duas posições antagônicas: ora deve se cingir a estritas determinações legais, a obedecer o comando da norma, em se verificando as condições de fato por ela prescritas, no caso particular considerado; ora se pode apreciar a conveniência ou oportunidade dentro das soluções legais admitidas de forma indeterminada, de modo a proceder desta ou daquela maneira…No primeiro caso, diz-se que a Administração Pública a respeito dessa matéria tem poderes vinculados ou legais e, assim, o ato administrativo é de caráter vinculado ou legal.” (Bandeira de Mello, Oswaldo Aranha, “Princípios Gerais de Direito Administrativo”, vol. I, pág. 471 – Ed. Forense, 2ª ed.)
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*Advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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