INTRODUÇÃO
O CNJ editou um regramento que altera diversas questões relacionadas ao registro de pessoas naturais, dentre as quais a possibilidade de reconhecimento extrajudicial das filiações socioafetivas e o registro dos filhos havidos por métodos de reprodução assistida. Trata-se do provimento 63 do CNJ, de novembro de 2017, mais um exemplo do chamado movimento de extrajudicialização do direito privado, pelo qual diversas questões que anteriormente restavam restritas à apreciação do Poder Judiciário passam a poder ser solucionadas por vias extrajudiciais.
Além da redução do número de demandas judiciais relativas ao registro civil, as novas permissões trazidas por este Provimento são dignas de favorecer um enorme contingente de pessoas em todo o território nacional, muitas das quais restavam sem formalização adequada da sua filiação justamente em face dos óbices que até então se apresentavam. As medidas implementadas visam facilitar o acesso a um direito que deve ser assegurado sem maiores obstáculos a todos: o registro do estado de filiação.
Merece destaque especial a extensa capilaridade dessas disposições frente a atual realidade brasileira, que apresenta uma infinidade de combinações e recombinações familiares, cujas especificidades muitas vezes acabam por resultar em um déficit registral, em especial quanto à filiação.
Os novos procedimentos estabelecidos são representativos de um outro momento para as serventias de registro de pessoas que, inequivocamente, passam a assumir um maior protagonismo.
1 Reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva
O direito de família brasileiro admite uma série de vínculos como suficientes para o estabelecimento da filiação. Elos biológicos, afetivos, presuntivos, registrais, adotivos ou decorrentes de reprodução assistida perfilam lado a lado no nosso sistema jurídico, todos passíveis de consagrar uma relação de parentesco1.
O reconhecimento da ligação socioafetiva como suficiente vínculo parental teve um longo percurso. Há mais de três décadas é conhecida entre nós a denominada “paternidade socioafetiva2”, relação precursora do reconhecimento dos vínculos socioafetivos na filiação3.
A literatura jurídica e a jurisprudência contribuíram significativamente para a consolidação desta modalidade de vínculo parental, de tal modo que, atualmente, é possível afirmar “que a socioafetividade tem um grande significado jurídico, integra o direito de família, possui caráter normativo4”.
O STJ teve um papel central para densificar a socioafetividade no âmbito das relações paterno-filiais, uma vez que em diversas decisões esta Corte afirmou que a relação filial5 pode se estabelecer exclusivamente por intermédio do vínculo afetivo.
Até pouco tempo, o reconhecimento e registro de uma relação filial socioafetiva somente poderia se dar por intermédio de uma intervenção do Poder Judiciário. Ou seja, os interessados em ver registrada uma dada filiação socioafetiva (ainda que consensual) deveriam, necessariamente, ajuizar uma ação judicial para alcançar tal intento, o que demandava a intervenção de advogado, o custo e o tempo de um processo judicial, dentre outros percalços que envolvem uma demanda em juízo. Neste contexto, os cartórios de registro civil registravam de forma direta apenas filhos de pessoas que se declaravam ascendentes genéticas de quem pretendiam reconhecer ou, então, nos casos que incidiam as respectivas presunções legais (por exemplo, art. 1.597, CC)6.
Assim, eram registrados extrajudicialmente, ou seja, diretamente nas serventias de registro, apenas os filhos biológicos e aqueles havidos de relação na qual incidisse uma presunção legal (ex: havido durante o matrimônio7). Já os filhos socioafetivos só poderiam ser reconhecidos pela via jurisdicional, o que fazia com que muitos vínculos desta natureza não fossem devidamente registrados, apesar de presentes na realidade fática.
Entretanto, a partir de 2013 essa situação começou a mudar no cenário brasileiro, pois alguns Estados passaram a permitir o reconhecimento da filiação socioafetiva de forma extrajudicial, diretamente nos cartórios de registro de pessoas naturais. O primeiro Estado a levantar a possibilidade de registro extrajudicial da paternidade socioafetiva foi Pernambuco. Em seguida outros Estados, tais como Maranhão, Ceará, Amazonas, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Sergipe, também acompanharam essa linha, com similar fundamentação. Contudo, cada Estado regulou o procedimento com as suas particularidades. Em consequência, passou a ser permitido o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva em várias localidades, porém, sem uniformidade nacional, cada qual com seus critérios e formatos distintos, enquanto que em alguns Estados a medida ainda não era sequer permitida.8
Diante do grande dissenso nacional sobre a temática, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM elaborou um pedido de providências ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ solicitando a uniformização de procedimento, para que houvesse igualdade e padronização na possibilidade de reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva em todos os cartórios de registro de pessoas naturais do país9.
O Conselho Nacional de Justiça admitiu a necessidade de uniformização do procedimento, entendendo que o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva teria fundamentação legal no art. 1º, III, art. 227, caput e § 6º da Constituição Federal, no art. 1.593 e art. 1.596 do Código Civil e no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, além de farta fundamentação doutrinária e jurisprudencial10.
Nesse ambiente, então, que no dia 14 de novembro de 2017 o Conselho Nacional de Justiça editou o provimento 63 para regular em todo território nacional o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva, entre outras deliberações.
- Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
____________
1 FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade: Relação Biológica e Afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
2 Rodrigo da Cunha Pereira define paternidade socioafetiva como: “a paternidade formada pelos laços de afeto, com ou sem vínculo biológico. (...) A paternidade socioafetiva tem seu embrião na antiga expressão posse de estado de filho. Para que haja a posse de estado é necessário que o filho seja tratado como filho e que sua condição oriunda da filiação seja reconhecida socialmente. Paternidade socioafetiva é uma expressão criada no Direito brasileiro, usada pela primeira vez pelo jurista paranaense Luiz Edson Fachin, em seu livro Estabelecimento da filiação e paternidade presumida, publicado em 1992. A concepção da paternidade socioafetiva estende-se também aos irmãos, mãe, enfim a toda parentalidade (...)”. Cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões: ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 520.
3 CARDOSO, Simone Tassinari. Notas sobre parentalidade socioafetiva. Trabalho aprovado e apresentado no II Congresso Brasileiro de Direito Civil, Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCIVIL. Curitiba, 2014.
4 VELOSO, Zeno. Direito Civil – Temas. Belém: ANOREG/PA, 2018. p. 210.
5 Para aprofundamento no tema: LÔBO, Paulo Luiz Netto. A socioafetividade no Direito de Família: a persistente trajetória de um conceito fundamental. In: DIAS, Maria Berenice et al. (Coords.). Afeto e estruturas familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
6 Capítulo IV da Lei 6.015/73 que dispõe sobre os registros públicos.
7 TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Direito de Família. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. v. 5.
8 Para aprofundamento no tema: CALDERÓN, Ricardo. Princípio da Afetividade no Direito de Família. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
10 Após a referida manifestação, formou-se no CNJ um grupo de trabalho específico para a elaboração de normativa mínima sobre o tema. Em paralelo à elaboração desse estudo, houve decisões paradigmáticas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal sobre filiação e, ao mesmo tempo, entrou em vigor o Novo Código de Processo Civil, que tem dentre as suas diretrizes uma indicação pela extrajudicialização.
____________
*Ricardo Calderón é doutorando e mestre em Direito Civil, pós-graduado em Direito Processual Civil e em Teoria Geral do Direito. Diretor Nacional do IBDFAM. Coordenador de curso de pós-graduação em Direito das Famílias e Sucessões na Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Professor de cursos de pós-graduação e graduação. Advogado em Curitiba.
*Gabriele Bortolan Toazza é mestre em Ciências Jurídicas especialidade em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – FDUL. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões, Direito Contratual da Empresa e em Direito Aplicado. Advogada e professora.