Migalhas de Peso

O Supremo Tribunal Federal de nosso tempo

É urgente que o Supremo Tribunal Federal volte a ser o “recanto de paz”, o “refúgio da Justiça”, nas palavras de Rui Barbosa.

23/4/2019

Em diversos artigos anteriores publicados em nosso querido “Migalhas”, abordei episódios lamentáveis protagonizados no seio de nosso Supremo Tribunal Federal e, em todos eles, iniciei recordando que meu inesquecível e querido amigo e mestre professor Vicente Ráo, no escritório de sua casa em São Paulo, mantinha fotografia de sua visita ao STF como ministro da Justiça, em 1936, e me dizia: “Ovídio olhe o Supremo que conheci”. Entre eles, recordo-me das figuras dos excelsos ministros Costa Manso, Laudo de Camargo, Edmundo Lins, Eduardo Espínola, Carlos Maximiliano, Octavio Kelly, Bento de Faria e Carvalho Mourão. juízes e homens notáveis. Parodiando o meu querido amigo e mestre, pontuei que em minha vida de 55 anos de dedicação exclusiva ao Direito e à Justiça, também, conheci diversas composições de nossa Suprema Corte de Justiça. em que pontificavam juízes do quilate de Orosimbo Nonato, Hahnemann Guimarães, Nélson Hungria, Luiz Gallotti, Ribeiro da Costa, Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal, Hermes Lima, Prado Kelly, Gonçalves de Oliveira, Pedro Chaves, Rodrigues de Alckimin, Eloy da Rocha, Muñoz Soares, entre outros. Em época mais recente, consegui vivenciar a presença dos ministros Moreira Alves, Néri da Silveira, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Sydney Sanches, Paulo Brossard, Marco Aurélio Mello, Cezar Peluso, Menezes Direito.

Ser ministro do Supremo Tribunal Federal exige do juiz que tenha presente a imorredoura exortação de Rui Barbosa feita em sustentação oral perante a Suprema Corte: "Quisesse eu levantar os escarcéus políticos e não me dirigiria ao remanso deste Tribunal, a este recanto de paz" e "aqui não podem entrar as paixões que tumultuam na alma humana; porque este lugar é o refúgio da Justiça". Os “escarcéus políticos”, de outra parte, não se coadunam com atitudes de qualquer ministro do Supremo Tribunal Federal, dentro ou fora da Corte Constitucional.

Na tradição grega, pelas palavras de Ésquilo, citadas por Rui Barbosa, dizia-se, como intróito na instituição de um tribunal: “Eu instituo este tribunal venerando, severo, incorruptível, guarda vigilante desta terra através do sono de todos, e o anuncio aos cidadãos, para que assim seja de hoje pelo futuro adiante”.

Antes de tudo, não se concebe a presença de ministros que não sejam pessoas vocacionadas à magistratura. Não bastam o elevado saber jurídico e a reputação ilibada, pois a vocação de ser magistrado é fundamental. Neste ponto, não posso deixar de mencionar o eminente ministro Cezar Peluso, uma das maiores vocações de magistrado, que conheci em minha já longa vida e que, ao se aposentar no ano de 2012, era o juiz mais antigo em exercício em todo o país.

Aliás, nestes tempos bicudos de nossa Suprema Corte, calha recordar a presença do saudoso e notável ministro Ribeiro da Costa, na presidência do STF. Logo depois da promulgação do Ato Institucional, 2, em outubro de 1965, corria a notícia que a presidência da República iria aposentar, compulsoriamente, três ministros do Supremo: Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. O ministro Ribeiro da Costa atravessou a Praça dos Três Poderes e se dirigiu ao Gabinete do Presidente Castello Branco onde solicitou audiência urgente, na qualidade de chefe do Poder Judiciário.  Na audiência, com a maior tranqüilidade do mundo disse, conforme relato dos jornais da época: “Senhor Presidente, noticia-se a intenção do Governo de aposentar compulsoriamente três Ministros do Supremo Tribunal Federal. Se tal fato ocorrer, digo que trancarei todas as portas do edifício do Supremo, e seguindo a tradição grega entregarei as chaves a Vossa Excelência. Não preciso dizer que nada foi feito. Seus colegas ministros aprovaram uma emenda transitória ao Regimento Interno para estender o tempo da presidência do Supremo até a aposentadoria do ministro Ribeiro da Costa. Único ministro na história do STF a receber tão justa e honrosa homenagem.

Quanta saudade de juízes como o ministro Ribeiro da Costa na presidência de nosso Supremo Tribunal Federal!

Diante desta vivência, posso dizer sem medo de erro, que todos esses ministros, que citei, sempre se destacaram, não só pelo inconteste saber jurídico e ilibada reputação aliadas à vocação, como também pela educação de berço, sendo homens gentis e que nunca buscaram aplausos da opinião pública, ou agrediram, por palavras, seus colegas, as partes, seus advogados e muito menos qualquer classe de profissionais do Direito.

É da tradição do Supremo o tratamento respeitoso, educado e cortês entre seus ministros, durante os debates travados no Plenário e nas sessões de suas turmas.    

Sugestivo lembrar que na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, durante os debates, o tratamento utilizado por seus juízes é o de 'my Brother” e não “Vossa Excelência”, simplesmente.

O espírito de educação, cortesia e generosidade reina em todas as Cortes Supremas de Justiça, por serem “recantos de paz” e “refúgio da Justiça”.

De tempos a esta parte, presenciamos altercações entre os ministros do Supremo, que abandonaram a toga e se deixaram levar por suas paixões e rancores pessoais.

Alguns deixaram se levar, até mesmo, por ideologias políticas, no esquecimento de que, “quando a política penetra no recinto dos tribunais – lembra Guizot – a Justiça se retira por alguma porta.”1 

Alguns outros fazem coro ao politicamente correto, tão em voga na época atual. O notável e saudoso ministro Franciulli Netto lembra que o professor Paulo Ferreira Cunha, conceituado catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, em feliz síntese, diz que o politicamente correto que pretende elevar-se a pensamento único, é uma nova ideologia totalitária. E mais perigosa e sutil, porque não se afirma e nem se pretende como tal. Não tem sede, nem partido, nem líder. É difusa, e todos sempre de algum modo vergam numa plenamente colonização cultural, impondo silêncio do que passa por inconveniente, criando tiques e reflexos condicionados que nos levarão a todos a dizer o mesmo...”2

Posso dizer, sem medo de erro, que o “recanto de paz”, o “refúgio da Justiça” de que falava Rui Barbosa, acabou se transformando em “escarcéu”, como lembrado nos lamentáveis episódios que foram mencionados em meus artigos anteriores. Nunca se viu no seio do Supremo Tribunal Federal, uma Corte tão dividida entre seus ministros. Muitas vezes, há o abandono da clave da busca da Justiça, para a satisfação, em notas dissonantes, do canto da vaidade sem limites e, até mesmo, das antipatias pessoais.  

São fatos lamentáveis, porque os ministros e ministras do Pretório Excelso são exemplos de juízes e juízas para toda a magistratura. Há uma aura de respeito e veneração que cerca o Supremo Tribunal Federal.

Em 14 de março de 2019, o presidente do Supremo “ex proprio marte”  resolveu instaurar inquérito para apuração de “fatos indeterminados” correspondentes a possíveis notícias mencionadas na portaria GP 69, designando para a condução do feito o ministro Alexandre de Moraes. O fundamento utilizado na portaria se refere a uma interpretação elástica (não extensiva, muito menos razoável) do art. 43 do Regimento Interno. Dizemos elástica, porque o referido art. 43 trata do poder de polícia do Tribunal e dispõe: “ocorrendo infração à lei penal, na sede ou dependência do tribunal o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.

Se o regimento interno tem força de lei, inegável que os preceitos nele contidos haverão de ser aplicados de forma correta e razoável e sem quaisquer devaneios a uma interpretação elástica.

A portaria se fundamenta no poder de polícia no Supremo Tribunal Federal. O poder de polícia é exercido na conformidade da lei e da Constituição. Como o exercício do poder de polícia tem o potencial de vir a atingir direitos fundamentais garantidos na Constituição, a legalidade de tal poder se encontra na combinação de tal exercício em consonância com o art. 5º da Constituição. De outra parte, se o  ato de polícia se insere na discricionariedade do Poder Público, urge esclarecer que o poder de polícia é exercido dentro da ordem jurídica. Eis porque, como demonstra o saudoso professor Ráo, no melhor estudo que conheço sobre o assunto, discricionariedade não se confunde com arbitrariedade.

O ato de polícia fixado no art. 43 está limitado à infração penal que venha a ocorrer na “sede ou dependência do tribunal“ e se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua juriadição. Pois bem, a portaria não aponta qualquer infração à lei penal que tenha ocorrido na sede ou dependência do tribunal. Muito menos aponta qualquer autoridade ou pessoa sujeitas à sua jurisdição. Em interpretação elástica da norma regimental autoriza investigação sobre quaisquer fatos, dentro do território nacional, desde que ocorra o objetivo genérico contido na portaria. Santo Deus, não existe exclamação outra. Acresça-se a circunstância de que o ministro Alexandre de Moraes é reconhecidamente um eminente constitucionalista e, assim sendo, deixou o mundo jurídico alarmado em aceitar a condução de um feito que nasceu morto, em virtude de sua inconstitucionalidade e ilegalidade. E quando deu execução a tão infeliz portaria, para que as reportagens fossem tiradas de circulação e diversas pessoas fossem obrigadas a depor, independentemente, de que se encontrem sob a jurisdição do Pretório Excelso, bem como mandou expedir mandados de busca e apreensão lançou às urtigas a Constituição Federal e fez coro, até mesmo, a uma abominável censura prévia, coisa inadmissível diante do que dispõe o art. 220 da Lei Magna.

Não importa tenha dias depois, voltando atrás para excluir do rol de medidas tomadas, a censura prévia imposta aos veículos de informação. Isto porque, a inconstitucional e ilegal portaria da presidência da Corte continua em vigor e o constitucionalista ministro Alexandre de Moraes está convencido de dar continuidade à investigação autorizada.

É tenebroso aceitar-se que um único órgão do Poder Judiciário investique, denuncie e julgue.                        

Bem por isso o fato ora relatado não se circunscreve ao âmbito do Supremo Tribunal Federal. Ganha repercussão nos demais órgãos jurisdicionais colegiados e em toda a magistratura nacional.

É urgente que o Supremo Tribunal Federal volte a ser o “recanto de paz”, o “refúgio da Justiça”, nas palavras de Rui Barbosa.

O  meu saudoso e querido amigo ministro Domingos Franciulli Netto costumava dizer: “ser Juiz é o estado d’alma do homem vocacionado”, enquanto outro saudoso e querido amigo desembargador Alves Braga dizia: “ser magistrado é estado de espírito”. Quem exerce a nobre missão de ser magistrado há de meditar sobre essa candente realidade. Somente os vocacionados estão aptos ao exercício de ser magistrado em todos os momentos de sua vida.  E pode-se acrescentar que a incontinência vocabular, quando agressiva, revela um tumulto íntimo de insegurança que espanca a serenidade necessária ao magistrado e o afasta por inteiro da sindérese, como síntese dos princípios morais e filosóficos.

Toda vez que presenciar lamentáveis episódios protagonizados pelo Supremo Tribunal Federal ou por seus ministros, estarei aqui a criticá-los, com a veemência que me autorizam os mais de 55 anos dedicados, de forma exclusiva, ao Direito e à Justiça, como advogado, professor, escritor e atualizador de obras clássicas do Direito brasileiro, estudioso incansável da Lógica Jurídica, da Ética e do magistrado que fui por anseio maior de vocação.

Antes de encaminhar este artigo à publicação, alguns amigos me disseram: “Ovídio, cuidado, não critique o Supremo Tribunal Federal. É Perigoso”. Não intui dessa advertência, a obrigação de deixar de ser corajoso e, prontamente, veio à minha mente essa triste experiência de vida. Vladimir Maiakovski, um dos maiores poetas russos do século passado, depois de descobrir o engodo do comunismo e do sanguinário regime totalitário implantado pelos bolchevistas, suicidou-se para registrar com a própria morte o protesto contra os métodos ditatoriais que foram sendo implantados uns após outros na União Soviética. O seu sacrifício deu-se em 1930. Em 1960, Eduardo Alves da Costa, em memória à tragédia do jovem poeta russo, escreveu o poema “No Caminho com Maiakovski”, que decanta magistralmente o processo de aniquilamento das liberdades humanas:

"...Na primeira noite eles se aproximam

 e roubam uma flor

 de nosso jardim.

 E não dizemos nada.

 Na segunda noite, já não se escondem:

 pisam as flores,

 matam nosso cão,

 e não dizemos nada.

 Até que um dia, o mais frágil deles

 entra sozinho em nossa casa,

 rouba-nos a luz e,

 conhecendo nosso medo,

 arranca-nos a voz da garganta.

 E já não podemos dizer nada."

 

O belo poema de Eduardo Alves da Costa, poeta brasileiro, faz lembrar em linguagem lírica o lamento de um pastor luterano alemão, Martin Niemöller, sobre os horrores do nazismo: “Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar.

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1 EDGARD DE MOURA BITTENCOURT, “O Juiz”, Ed. Jurídica Universitária, S. Paulo, ed. 1966, p. 44.

2 A Prestação Jurisdicional. Ed. Millennium, Campinas, ed. 2004, pgs. 25/26.

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*Ovídio Rocha Barros Sandoval, advogado do escritório Saulo Ramos Rocha Barros Sandoval Advogados, magistrado aposentado, autor de obras e artigos jurídicos, atualizador de obras clássicas do Direito brasileiro.

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