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Ocupação e uso do solo em terras devolutas da união sob os aspectos jurídicos e da panificação econômica

Este trabalho tem como objetivo a apresentação de uma solução para a ocupação, uso e desenvolvimento sustentável da agricultura nas Terras Devolutas da União, além da criação de “Polos de Desenvolvimento”, concessão para a agricultura de subsistência para famílias e militarização da “Faixa de Fronteira”.

17/4/2019

Por séculos, as terras devolutas permaneceram uma incógnita quanto a sua finalidade, seja para a economia nacional ou no âmbito jurídico. Originalmente, eram espécies de terras públicas oriundas do sistema de Capitanias Hereditárias e que não tinham serventia alguma, nem para o poder público ou para os particulares.

Porém, a parir da metade do século XIX e ao longo do século XX, a evolução legislativa aponta para diversas mudanças de interesse econômico, político, social e jurídico quanto a ocupação e uso do solo das terra devolutas sob o controle do Governo Federal.

 Surgiram, ao longo deste período, marcos legais que permitiram a destinação destas terras a produção agrícola, seja por famílias de agricultores até o surgimento de grandes propriedades rurais voltadas para a produção de monocultura (latifúndios).

Cabe salientar que a pesquisa sobre este tema está relacionada a propor soluções também para a militarização da chamada “Faixa de Fronteira” e para a criação de uma infraestrutura voltada a proteção do meio ambiente e o exercício da atividade econômica nas terras devolutas da união nesta área. 

Por fim, a finalidade deste trabalho é resgatar um equilíbrio entre os diversos interesses e a propositura de uma solução quanto a esta questão, sendo por meio de mecanismos econômicos e jurídicos.

       

1.1. Aspectos históricos das terras devolutas: do período colonial até a atualidade

Inicialmente, há necessidade de se fazer uma abordagem histórico-evolutiva das terras devolutas, com enfoque no aspecto jurídico-político (desde o período colonial até a contemporaneidade).

De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, citando Igor Tenório, há quatro fases da propriedade rural: sesmarias, a de posses, a que se inic ia com a lei de terras (lei 601, de 1850) e a que tem por marco a instauração da República (Constituição de 1891).1

Na primeira fase, todas as terras eram pertencentes à Coroa Portuguesa, além de serem de natureza jurídica pública e que foram organizadas em um regime de monopólio, cuja a concessão era feita a particulares.2 O intuito era a exploração das terras e obtenção das riquezas naturais (em especial metais preciosos) para dar prosseguimento à política econômica mercantilista.3 Em razão destas questões, para legitimar a colonização (além da exploração das terras) foi criado por meio de relações jurídicas  entre os particulares e a Coroa, em troca do pagamento de uma porcentagem por conta do uso da terra (enfiteuses e equiparação ao sistema político, administrativo e econômico conhecido como feudalismo)4. Tal sistema vigorou até 1822, tendo sido posto a termo em razão dos eventos históricos que desencadearam a independência e a criação do Império do Brasil.

A segunda fase, ao qual fora chamada de “ocupação”, não havia legislação disciplinando o uso das terras e, desta forma, a legitimidade da posse passou a ter como elementos a morada habitual e o cultivo da terra. Portanto, houve favorecimento dos pequenos proprietários em detrimento dos grandes latifúndios do período colonial.5

Com intuito de evitar abusos por parte dos posseiros e de regularizar a situação das terras públicas no País, fora promulgada a primeira lei de terras (lei 601 de 1850), inaugurando a terceira fase.

Além de legitimar a posse da terra pelos requisitos já consolidados nas realidades social e econômica (morada habitual e cultivo da terra), as sesmarias que foram concedidas de forma irregular poderiam ser revalidadas, desde que fossem apresentados os mesmos requisitos.6

Além disso, o artigo 2º da lei 601 de 1850 proibiu o apossamento de novas terras, assim como o respectivo artigo 1º determinou a aquisição de terras devolutas somente mediante compra.7

Importante ressaltar que a conceituação dada no respectivo artigo 3º do diploma determina que as terras devolutas são de caráter residual.8

 Após o advento da Constituição de 1891, fora inaugurada uma nova fase do regime de terras. A lei maior reservara a União a porção de terras indispensáveis à defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais, havendo transferência das demais aos estados membros.

Importante ressaltar que o decreto-lei 9.760/46 conceituou as terras devolutas federais e as separou em duas zonas estratégicas relevantes as questões de segurança nacional na “Faixa de Fronteira” e ao interesse coletivo. Coube a lei 6.634/79 regulamentar o uso, ocupação e exploração dos recursos naturais tanto para o exercício da atividade econômica e à proteção das fronteiras pelas forças armadas.

               Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tanto o Estado quanto a sociedade civil devem proteger e garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as futuras gerações.

               Passaremos, agora, à conceituação e classificação das terras devolutas.

 

1.2. Conceito e classificação das terras devolutas na faixa de fronteira e em em outras áreas

Em razão do caráter residual e disponível das terras devolutas conceituados na lei 601 de 1850, é possível classificar tais bens públicos em dominicais.9

Após a queda da Monarquia Constitucional e com o advento da Constituição Federal de 1891, o legislador originário positivara no referido diploma (artigo 64) o interesse da união de fazer uso das terras devolutas localizadas nas faixas de fronteira e aquelas indispensáveis para a defesa do território brasileiro.10 Portanto, fora inserido no ordenamento jurídico pátrio um elemento de suma importância, relacionado ao interesse secundário (estatal) e que se sobrepunha ao interesse público primário nos casos em que havia necessidade de garantir a segurança nacional.

              Cumpre ressaltar que o decreto-lei de número 9.760/46, trouxe o conceito das terras devolutas federais em seu artigo 5º e abrangendo os aspectos conceituais anteriores, traz a seguinte redação: “ são devolutas, na faixa da fronteira, nos territórios federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprias nem aplicadas a algum uso público federal, estadual ou municipal, não se incorporaram ao domínio privado. “11

             Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o legislador originário não só resgatou os princípios relacionados à Direitos Humanos da Constituição Federal de 1946, como também buscou sistematizar um equilíbrio entre o interesse público primário e a garantia da segurança nacional (interesse estatal) com base nos dispositivos supraconstitucionais referentes às terras devolutas (artigo 225, §5º e 20,II e §2º).12

            Por isso, tal evolução legislativa permite concluir que houve mudanças sobre a conceituação, natureza jurídica e da classificação das terras devolutas, de tal forma que foram ampliados em concordância com os interesses sociais e estatais.

            Quanto a conceituação, classificação e natureza jurídica, o administrativista Helly Lopes Meirelles conceitua as terras devolutas da seguinte forma: “terras devolutas são todas aquelas que, pertencentes ao domínio público de qualquer das entidades estatais, não se acham utilizadas pelo poder público, nem destinadas a fins administrativos públicos específicos.”13 Porém, em razão da redação dada ao artigo 20, II da Constituição Federal de 1988, o autor afirma que as terras devolutas da união merecem tratamento diferenciado em razão do desenvolvimento nacional e da garantia da segurança nacional.14

            Complementando de uma forma mais específica os ensinamentos do administrativista, Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que a redação do artigo 225, § 5º da lei maior trouxe uma inovação  que deve ser interpretada de acordo com o dispositivo supracitado, sendo este referente a proteção dos ecossistemas naturais.15 E, além deste dispositivo, a redação do §2º do artigo 20 discorre sobre a faixa de fronteira de 150 km de largura, sendo de caráter fundamental para a defesa do território nacional.16

             Portanto, a autora conclui que as terras devolutas da união, têm natureza jurídica indisponível e residual, possibilitando a classificação destes bens em uso comum do povo (quando estiverem desocupadas e sem uso algum) ou de uso especial (tem serventia para a União).17

              Em razão dos argumentos apresentados, tornar-se-á necessário discorrer a respeito dos conceitos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável.

1.3.  Desenvolvimento sustentável e o conceito de uma infraestrutura militar e agrária

          Inicialmente, o conceito de desenvolvimento abrange não tão somente o crescimento econômico, mas também um caráter interdisciplinar e plurívoco em razão da necessidade de se distribuir a riqueza de uma forma mais igualitária e, consequentemente, permitir a evolução da sociedade como um todo.18

         Tal conceito difere do que chamamos de “progresso econômico”, cujo o sentido refere-se a acumulação de riquezas por um setor mais abastado da sociedade, baseado em indicadores econômicos como o “PIB per capita” e o produto nacional global, por exemplo.19

          Desta forma, o conceito de desenvolvimento permite a libertação de padrões liberais econômicos e aplicação de estratégias voltadas para mudar as estruturas da sociedade, em especial dos países subdesenvolvidos.

         Portanto, há necessidade de o Estado coordenar e planejar tal desenvolvimento. Roberio Nunes dos Anjos Filho, citando Gilberto Bercovici, reafirma “o papel central das reformas estruturais na política dos países subdesenvolvidos, constituindo condição prévia e necessária de desenvolvimento, para o qual é preciso uma atuação ampla e interna do Estado como coordenador do planejamento, visando modificar as estruturas socioeconômicas e a distribuição e descentralização da renda, de forma a integrar toda a população no âmbito social e político.”20 Além disso, a lei maior aponta como um dos objetivos fundamentais o desenvolvimento nacional, expressa no artigo 3º, II.21

        Seguindo este raciocínio, a noção de desenvolvimento sustentável foi estabelecida com intuito de conscientizar tanto aos países desenvolvidos quanto aos subdesenvolvidos, sobre a exploração econômica excessiva dos recursos naturais e as consequências advindas da interferência do ser humano na natureza. 22

            Tais bases somente foram definidas após as discussões entre os líderes mundiais durante a conferência de Estocolmo, realizada no ano de 1967, da seguinte forma: harmonização entre o progresso econômico, social e a preservação ambiental sem comprometer as necessidades das gerações futuras.23

             Seguindo esta tendência global, Roberto J. Pugliese complementa que, “a propriedade agrária tem por dever inerente a essa situação jurídica, entre outros o de promover o desenvolvimento e bem-estar econômico e social, de forma ampla, dos seus proprietários e dos empregados destes que nela trabalhem, bem como o desenvolvimento social, observando sempre a sustentabilidade própria e da situação geográfica na qual se encontra”.24

            Portanto, a noção de desenvolvimento sustentável tem como objetivos a promoção do bem-estar social, o uso razoável dos recursos naturais e o equilíbrio entre os interesses estatais e econômicos.

            Para tornar possível a aplicação de tais conceitos ao caso concreto, há necessidade de se discutir sobre o que é infraestrutura e sua relação com o tema. Gilberto Bercovici, citando Reimut Jochimsen, afirma que: “infraestrutura consiste no conjunto de instalações e condições de natureza material, institucional e pessoal, disponibilizado a unidades econômicas no âmbito de uma economia baseada na divisão de trabalho, e que auxiliam, de um lado, a reduzir as diferenças na remuneração de fatores de produção, regional e setorialmente, e, de outro, a promover o crescimento da economia”.25 Além disso, o autor complementa  que tanto a lei quanto a doutrina jurídica não conceituam o vocábulo “infraestrutura”, cabendo a ciência econômica fomentar o debate e dar subsídios ao campo jurídico.26

               Desta forma e em concordância com os artigos, caberá a união e sobre o seu monopólio exclusivo, o planejamento, execução e promoção da infraestrutura seja em terras devolutas inseridas nas faixas de fronteira ou não.

                

1.4. Fundamentos constitucionais e legais para a concepção de um plano para as terras devolutas

            Em primeiro lugar, o planejamento estatal do setor público e seus fundamentos constitucionais devem ser interpretados em consonância com os artigos 3º, II, 20, II, 170, III e VIII e 225, §3º.27,28

            Quanto a competência administrativa da união, o artigo 21, III e IX determinam a defesa nacional e a criação de planos regionais para proporcionar o desenvolvimento nacional.29 Tais incisos, ao serem interpretados de forma combinada com os artigos 225, §3º, 20,II e 3º, II fundamentam a criação de uma infraestrutura planejada e voltada para o desenvolvimento sustentável e garantia da segurança nacional das terras devolutas localizadas na faixa de fronteira.

           Além disso, tal execução de um eventual plano deve estar amparada nos artigos 22, IV e XVIII e, principalmente, nos artigos 5º, parágrafo único do decreto-lei 9.760/46 e 8º da lei 6.634/79.

          Conclui-se que a destinação dada pelo próprio ente estatal para estas terras deve ter como objetivo o fornecimento de uma infraestrutura adequada em concordância com o conceito de desenvolvimento sustentável e com os fundamentos constitucionais que permitem o exercício da garantia da lei e da ordem pelas forças armadas.

          Passemos agora a discorrer sobre um modelo de planificação econômica que contribuirá para o exercício do intervencionismo estatal e para o cumprimento dos seus deveres.

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Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Página 866.  29º ed. Rev., atual. e ampl. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2016. 

2 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. loc. Cit. Página 866

3 O mercantilismo era a política econômica adotada pelos países europeus, ao qual o controle absoluto da atividade econômica e financeira eram exercidas pelas monarquias absolutistas, (período do século XVI até XVIII).

4 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. loc. Cit. Página 866

5 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Página 867.  29º ed. Rev., atual. e ampl. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2016.

6 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. loc. Cit. Página 867 

7,8 https://www.planalto.gov.br/cCivil_03/LEIS/L0601-1850.htm

9 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Página 869.  29º ed. Rev., atual. e ampl. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2016. 

10 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm

11 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del9760compilado.htm

12 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

13,14 Meirelles, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. pagina 617 e 618. 39º edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2012.

15 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. loc. Cit. Página 869

16 A lei 6.634/79 foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, por conta do artigo 20, §2º.

17  Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. loc. Cit. Página 869   

18 Filho, Robério Nunes dos Anjos. Direito ao Desenvolvimento. Paginas 17 e 18. 1º Edição. Editora Saraiva. São Paulo, 2013.

19 Filho, Robério Nunes dos Anjos. Loc. Cit. Pagina 22

20 Filho, Robério Nunes dos Anjos. Loc. Cit. Pagina 23

21 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

22, 23 Flores, Nilton Cesar. A Sustentabilidade Ambiental. Paginas 24,25 e 26. Editora Millenium. Campinas, 2012. 

24 Pugliese, Roberto J.; Direito das Coisas. Pagina 626. 1ºed.Ed. Universitária de Direito.2005.

25,26 Bercovici, Gilberto; Valim, Rafael. Elementos de Infraestrutura. Paginas 18 e 19. Editora Contracorrente. São Paulo, 2015.

27,28,29 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm

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*Cesar Felipe Dal Poggetto Canheo é advogado.

 

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