Migalhas de Peso

O momento de execução das penas: avanço ou retrocesso?

Não se pretende, aqui, voltar a tal celeuma, mas apenas realçar alguns aspectos trazidos na proposta legislativa que podem trazer novas perspectivas às discussões.

9/4/2019

Uma das polêmicas veiculadas pelo denominado “projeto de lei anticrime” diz respeito ao momento processual de execução das penas. Já é conhecido o debate entre os que defendem, de um lado, que somente após o trânsito em julgado da condenação é que se poderá iniciar o cumprimento da pena, e os que entendem, de outro lado, que não viola a presunção de inocência eventual execução provisória da reprimenda. Não se pretende, aqui, voltar a tal celeuma, mas apenas realçar alguns aspectos trazidos na proposta legislativa que podem trazer novas perspectivas às discussões.

O fato de que o título “Medidas para assegurar a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância” é o primeiro do projeto revela a importância que o Governo Federal dá a essa questão. Mas, diferentemente do que se poderia pensar, a proposição não é, de fato “assegurar” o início da pena em segunda instância: o §1º do art. 617-A (CPP) estabelecerá que o “tribunal poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão constitucional ou legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa plausivelmente levar à revisão da condenação”. Exceção semelhante está prevista para os recursos interpostos perante tribunais superiores, quando houver “questão de direito federal ou constitucional relevante, com repercussão geral e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto” (CPP, art. 637, II).

Contradição à parte, tais exceções não constam do entendimento prevalecente do STF (em que pese a Corte já tenha adotado tal posicionamento, quando permitia a execução provisória). Trata-se de uma flexibilização do projeto em relação à realidade forense atual. Certamente, farão com que a regra, no dia a dia da defesa criminal, seja pleitear, em apelação ou em recursos extraordinários, que o caso em questão se enquadra na exceção por conter questão constitucional ou legal relevante. E provavelmente muitos desses pleitos serão acolhidos, conforme a justiça dos seus argumentos. Não poderia ser essa uma interessante saída conciliatória para a ferrenha oposição garantias versus eficiência? Basta que ambos os lados confiem nos juízes.

O projeto também quer resolver a execução da pena de multa: até então, não se vinham cumprindo juntamente com as privativas de liberdade. A vingar a proposta, deverá ser cumprida provisoriamente também (art. 50, CP). Aliás, se existe hoje alguma divergência sobre a possibilidade de execução provisória da pena restritiva de direitos, a proposta decide: poderá cumprida antes do trânsito em julgado. Esses dois pontos representam um recrudescimento em relação à jurisprudência atual.

Restam as seguintes questões: quando o projeto afirma que “penas pecuniárias” (CPP, art. 617-A) deverão ser executadas provisoriamente, a quais sanções se refere? Se as “penas restritivas de direitos” já foram mencionadas no mesmo dispositivo, parece que não havia necessidade de citar especificamente uma de suas espécies. E, se essa for apenas uma redundância, as penas pecuniárias seriam exclusivamente as de prestação pecuniária (que podem não ser em pecúnia) ou também as de perda de bens e valores? A pena de multa não pode ser, pois ela é disciplinada em dispositivos distintos da proposta; a menos que se esteja considerando a multa na modalidade de pena substitutiva. Se não for o caso de pleonasmo, estaria a proposta sugerindo que somente as penas restritivas pecuniárias podem ser executadas provisoriamente e não as de prestação de serviços, interdição temporária de direitos e de limitação de fim de semana? A descobrir.

Mas as inovações não param na justiça comum: logo em seguida ao título primeiro, vêm as “Medidas para aumentar a efetividade do Tribunal do Júri”. Dentre elas, destaca-se a proposta de inserção do art. 492, I, e no CPP, permitindo a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos e pecuniárias logo após a sessão do Júri, independentemente da interposição de recursos. A ideia deve ter sido inspirada no entendimento da maioria da 1ª Turma do STF em julgamentos recentes (HC 118.770 e HC 140.449, por exemplo) e comporta muito mais críticas do que a execução em segunda instância.

O ministro Luiz Roberto Barroso, que capitaneou dito entendimento, defendeu, em seus votos, que “a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico da condenação pelo Tribunal do Júri, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri, e o Tribunal não pode substituir-se aos jurados na apreciação de fatos e provas (CF/1988, art. 5º, XXXVIII, c), o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar.” Ocorre que, assim como o princípio constitucional da presunção de inocência não é absoluto, igualmente não o é o princípio da soberania dos vereditos.

Não se pode justificar a relativização do princípio da presunção de inocência tornando absoluto o princípio da soberania da decisão do Júri, que, afinal, também poderia “ser aplicado com maior ou menor intensidade”. É de se lembrar, inclusive, a possibilidade de recurso de apelação contra as decisões do Tribunal do Júri (art. 593, III, do CPP). Há precedentes que autorizam, mesmo em sede de revisão criminal, a desconstituição de sentença condenatória do tribunal popular (TJPR – Rev. 610690-9 – j. 19.8.2010; TJSP – Rev. 227.269-3 – j. 20.10.1998; dentre outros). Isso sem mencionar as muito frequentes reduções de pena; alterações de regime de cumprimento; declarações de nulidade que ocorrem na segunda instância. Tolher o duplo grau de jurisdição para crimes graves inspira muita preocupação.

Não se pode equiparar a tendência de execução provisória da pena após a condenação em segunda instância com a hipótese em comento. Aquela foi consagrada no julgamento do HC 126.292/SP e, em seu voto condutor, o min. Teori Zavascki foi taxativo: “a execução provisória do acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.” Fala-se, na decisão, de acórdão; de julgamento de segunda instância; de apelação.

Como é evidente, o Tribunal do Júri, embora seja um colegiado, é órgão de primeiro grau de jurisdição. Em outras palavras, a sentença coletiva do Júri, antes de ser coletiva, é sentença e equivale às decisões monocráticas dos julgadores singulares. Não se pode, assim, aproximar situações completamente distintas e justificar a execução provisória da pena após o julgamento pelo corpo de jurados com aquela que ocorre após julgado o recurso de apelação.

Tal qual ocorreu com a proposição da execução provisória da pena após decisão de segunda instância, há, aqui, igualmente uma exceção: segundo dispõe a proposta, tanto o Juiz do Júri quanto o Tribunal de Apelação podem deixar de autorizar a execução provisória da pena. O Magistrado singular pode fazê-lo “se houver uma questão substancial cuja resolução pelo Tribunal de Apelação possa plausivelmente levar à revisão da condenação (art. 492, §3º). O Tribunal, por sua vez, concederá efeito suspensivo ao recurso, quando verificado que este não tem propósito meramente protelatório e que igualmente levanta questão substancial que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento, substituição de penas ou alteração do regime de seu cumprimento (art. 492, §5º). Mas essa exceção não representa muito alento diante da regra que – diferentemente da proposta para a justiça comum – representará o menoscabo de todo o sistema recursal.

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*Alexandre Knopfholz é advogado do Escritório Professor René Dotti.

*Gustavo Scandelari é advogado do Escritório Professor René Dotti.

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