Depois de intensos debates, na sociedade e no Congresso Nacional, quando se chegou a temer pela proibição dos aplicativos de transporte individual privado de passageiros, foi muito comemorado o resultado da votação que redundou na recente promulgação da lei 13.640/18, que fez alterações pontuais na Política Nacional de Mobilidade Urbana (“PNMU”, objeto da lei 12.587/12).
De fato, havia o receio de que fosse materializado um retrocesso absurdo, caso nossos legisladores optassem (como alguns pretendiam) pela proibição completa dessa atividade econômica que está revolucionando a mobilidade urbana nas cidades brasileiras. Porém, passada a euforia inicial, é necessário fazer uma análise fria da legislação, de modo a avaliar se ela representou ou não um efetivo avanço na regulação dessa atividade, especialmente considerando a necessidade de maior segurança jurídica para todos os envolvidos nesse tema (a saber: poder público, empresas que operam os aplicativos e sociedade civil que utiliza essas plataformas, como motoristas ou passageiros).
De um lado, é evidente que, com a categorização explícita desse tipo de atividade como uma das modalidades de transporte que integram a Política Nacional de Mobilidade Urbana (art. 4°, inciso X, da Lei 12.587/12), afastou-se o risco de proibição que permanentemente rondava as empresas que atuam no setor. E essa é a boa notícia.
De outro lado, e aqui temos a má notícia, a regulamentação como foi feita acabou se revestindo de vícios jurídicos que precisam ser enfrentados de forma rápida, pois ainda que não impeçam o exercício da atividade dos aplicativos de transporte individual privado de passageiros, podem inviabilizá-la.
Com efeito, na regulamentação editada pela União Federal, foram incluídos dois artigos à lei 12.587/12 (artigos 11-A e 11-B), que, de forma inconstitucional, delegaram aos Municípios e ao Distrito Federal, competência exclusiva para “regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do art. 4º desta Lei no âmbito dos seus territórios”. Essa competência exclusiva indevidamente outorgada pela União aos Municípios e Distrito Federal deverá, contudo, observar algumas condicionantes, que são detalhadas posteriormente, mas que uma vez não observadas pelos motoristas, ou pelas empresas que operam os aplicativos, podem redundar na declaração de atividade ilegal de transporte de passageiros (artigo 11-B, parágrafo único).
A delegação de competência aqui indicada é claramente inconstitucional porque é indiscutível que competência privativa não pode ser delegada, sendo que o artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal estabelece, de forma literal, que compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte. Nesse sentido, a jurisprudência no STF sobre o tema da inconstitucionalidade de delegação da competência privativa de transporte é consolidada, bastando fazer referência, apenas como exemplos, aos acórdãos proferidos na ADIn 1.704 (sobre lei estadual que determinava uso de película solar em carro) e na ADIn 3.610 (sobre lei distrital que regulamentava atividade de motoboy).
Essa inconstitucionalidade, aparentemente grosseira, fica ainda mais reforçada quando se verifica que os artigos 11-A e 11-B foram indevidamente inseridos dentro do capítulo que trata das diretrizes para a regulação dos serviços de transporte público coletivo (capítulo II da Lei 12.587/12, que instituiu a PNMU). Esse capítulo é o que estabelece, por exemplo, critérios para a política tarifária de ônibus municipais (artigos 8° a 10°), bem como os requisitos para o exercício do transporte público individual de passageiros (os táxis, conforme artigo 12).
Ou seja, de forma absolutamente contraditória, a União exerceu sua prerrogativa constitucional privativa de aprimorar a Política Nacional de Mobilidade Urbana (daí o acerto da inclusão da atividade de transporte remunerado individual de passageiros na Lei n° 12.587/12), porém, tentou novamente aproximar a atividade dos aplicativos de transporte com os táxis, transferindo a possibilidade de regulamentação (ampla) e fiscalização do serviço aos Municípios e ao Distrito Federal.
O contrassenso está estampado na Lei, porque se somente à União cabia regular a matéria no exercício de sua competência privativa para tratar de trânsito e transporte, jamais ela poderia ter posteriormente delegado essa competência a outro ente federativo, ainda que essa delegação fosse, em tese, somente para regulamentar e fiscalizar essa atividade. Menos ainda porque não se está falando de serviço público ou coletivo de transporte, mas sim de atividade privada exercida pelos aplicativos.
Longe de ser um formalismo jurídico-constitucional, que é importante para estabilidade das relações jurídicas, existe uma razão de ser para essa contenção do papel dos Municípios e do Distrito Federal e a consequente prevalência do papel da União em matéria de trânsito e transporte: a uniformidade na exigência do cumprimento dessas regras.
Não é razoável supor que os mais de 5000 municípios estabeleçam normas e regulamentos diversos sobre a atividade dos aplicativos de transporte individual de passageiros. Ainda que a regulamentação seja facultativa, o fato é que as empresas que operam esses aplicativos exercem atividade econômica de âmbito nacional, atuando nas mais diversas cidades e estados do País. Qual seria o sentido em que um município possa exigir que os carros dirigidos pelos motoristas de aplicativos tenham no máximo 10 anos de uso e outro município exija o prazo máximo de 5 anos? Que interesse local poderia hipoteticamente justificar essa diferenciação? Este é apenas um exemplo – pode-se extrapolá-lo a outras inúmeras exigências, como os tributos de natureza diversa instituídos por diferentes prefeituras (ora como preço público, ora como taxa, por exemplo).
Mas esses singelos exemplos demonstram o tamanho do problema gerado por uma inconstitucionalidade evidente na recente tentativa de se estabelecer um marco regulatório sobre as atividades de transporte individual privado de passageiros. Mais do que preciosismo jurídico, estamos diante de um risco regulatório relevante que deve ser enfrentado o quanto antes, por meios dos ajustes legislativos necessários. A lei avançou, a sociedade civil viu sua preferência prosperar e é imprescindível a manutenção desses avanços.
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*Atualizado em 10/4/19.
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*Guilherme Dominguez é advogado do escritório Cescon Barrieu Advogados.