A progressividade do IPTU perante o Supremo Tribunal Federal
Luciano Felício Fuck*
I. - Introdução
Por ocasião da Lei n° 13.250 (clique aqui) de 28/12/2001 do Município de São Paulo ("Lei n° 13.250/01-SP"), amparada na Emenda Constitucional n° 29 de 14/9/2000 (clique aqui - “EC 29/2000”), a questão foi, em 28/6/2006, retomada pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário ("RE") n° 423.768 (clique aqui). Na espécie, o RE foi interposto contra aresto do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo que considerou inconstitucional a Lei n° 13.250/01-SP e a própria EC 29/2000, afastando a progressividade do IPTU de acordo com o valor venal do imóvel.
Após o voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, acompanhado pelos votos dos Ministros Carmem Lúcia, Eros Grau, Joaquim Barbosa e Sepúlveda Pertence, o julgamento foi interrompido antes de sua conclusão a pedido do Ministro Carlos Britto. Registre-se que o Ministro Ricardo Lewandowski está impedido de votar, sendo necessários seis votos do Pleno do STF para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, a teor do artigo 97 da Carta Magna.
Assim, tendo em vista a importância da questão, ainda não completamente dirimida à luz do atual ordenamento constitucional, cumpre analisar o status quaestione da controvérsia, acentuando o posicionamento do Excelso Pretório quanto ao tema.
II. - A jurisprudência do STF anterior a EC 29/2000
Na égide da Constituição de 1946, o STF teve a oportunidade de pronunciar-se a respeito da progressividade do IPTU, decidindo por sua constitucionalidade, no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança (“RMS”) n° 16.798, relatado pelo Ministro Victor Nunes Leal, cujo voto foi acompanhado pelos Ministros Oswaldo Trigueiro e Evandro Lins em 12/12/1966, assim ementado:
“IMPOSTO TERRITORIAL URBANO. INCIDENCIA PROGRESSIVA. LEI MUNICIPAL DE AMERICANA (SÃO PAULO). IMPROCEDENCIA DA ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE.”1
Naquela oportunidade, a progressividade surgia em virtude do tamanho da propriedade e só era aplicada aos contribuintes a partir do segundo imóvel. O voto do Ministro Victor Nunes Leal ressaltou que a progressividade, apesar de injusta, baseou-se em dados objetivos e tendo finalidade social relevante.
Todavia, no julgamento do RE 69.784, relatado pelo Ministro Djaci Falcão e julgado em 5/3/1975, o Pleno do STF entendeu que a progressividade do IPTU estatuída na Lei n° 614/64 do Município de Americana/SP – analisada nos autos do RMS 16.798 – não era compatível com Constituição de 1967, em aresto assim ementado:
“IMPOSTO TERRITORIAL URBANO - SEU CONCEITO (ART. 33 DO C.T. NACIONAL). INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2. DA LEI 614/64, DO MUNICÍPIO DE AMERICANA, POR VULNERAR O PAR. 6. DO ART. 19 E O ART.25, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO.”2
Nesse caso, em que o relator foi acompanhado pelos Ministros Eloy da Rocha, Thompson Flores, Bilac Pinto, Antonio Neder, Xavier de Albuquerque, Rodrigues Alckmin, Leitão de Abreu e Cordeiro Guerra e com dissidência do Ministro Aliomar Baleeiro, o voto condutor guiou-se pela definição da base de cálculo do Código Tributário Nacional, que não vigorava quando do julgamento do RMS 16.978. Ressalte-se, neste julgado, a diferenciação explícita entre tributos reais e pessoais.
A partir deste precedente, editou-se o verbete n° 589 da Súmula do Pretório Excelso, que dispõe:
“É inconstitucional a fixação de adicional progressivo do Imposto Predial e Territorial Urbano em função do número de imóveis do contribuinte.”
Já na vigência da Constituição de 1988, o Pleno do STF novamente ratificou este entendimento, decidindo pela inadmissibilidade da progressividade do IPTU de acordo com o valor venal dos imóveis, no julgamento do RE 153.771:
“IPTU. Progressividade. - No sistema tributário nacional é o IPTU inequivocamente um imposto real. - Sob o império da atual Constituição, não é admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu artigo 145, § 1º, porque esse imposto tem caráter real que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte, quer com arrimo na conjugação desse dispositivo constitucional (genérico) com o artigo 156, § 1º (específico). - A interpretação sistemática da Constituição conduz inequivocamente à conclusão de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o inciso II do § 4º do artigo 182 é a explicitação especificada, inclusive com limitação temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no artigo 156, I, § 1º. - Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, § 1º, aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§ 2º e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se inconstitucional o sub-item 2.2.3 do setor II da Tabela III da Lei 5.641, de 22/12/89, no município de Belo Horizonte.”3
No que tange ao RE 153.771, restou vencido o Relator, Min. Carlos Velloso, que entendia pela constitucionalidade da progressividade pelo valor venal do imóvel. Na esteira do voto do Ministro Moreira Alves – que expressamente apenas admitiu a progressividade extrafiscal em atenção à coisa, isto é, a função social do direito de propriedade sobre o imóvel, não em atenção ao contribuinte, dada a natureza real do tributo – votaram os Ministros Néri da Silveira, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Ilmar Galvão, Francisco Rezek e Maurício Corrêa. Na ocasião estava ausente o Ministro Marco Aurélio.
Este era o acórdão paradigma que orientava a jurisprudência até o advento da EC 29/2000, impedindo a aplicação da progressividade no IPTU, com relação ao valor venal do imóvel ou a capacidade econômica do contribuinte.
Nessa linha, o STF decidiu também pela inconstitucionalidade da progressividade de outro imposto real, qual seja, o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (“ITBI”), no julgamento do RE 234.105, assim ementado:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE IMÓVEIS, INTER VIVOS - ITBI. ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS. C.F., art. 156, II, § 2º. Lei nº 11.154, de 30/12/91, do Município de São Paulo, SP. I. - Imposto de transmissão de imóveis, inter vivos - ITBI: alíquotas progressivas: a Constituição Federal não autoriza a progressividade das alíquotas, realizando-se o princípio da capacidade contributiva proporcionalmente ao preço da venda. II. - R.E. conhecido e provido.”4
III. - O julgamento do RE 423.768
Inconformado com o entendimento reiterado do STF, o legislador constitucional derivado acatou a posição dos Municípios e promoveu alteração na Carta Magna, consubstanciada na EC 29/2000. Assim, o STF enfrenta, no RE <_st13a_metricconverter productid="423.768, a" w:st="on">423.768, a constitucionalidade não só de Lei n° 13.250/01-SP, mas da própria EC que autoriza a progressividade do IPTU em razão do valor do imóvel.
No caso, o voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, concluiu pela constitucionalidade da EC 29/2000, afastando violação a qualquer cláusula pétrea, sendo acompanhado pelos votos dos Ministros Carmem Lúcia, Eros Grau, Joaquim Barbosa e Sepúlveda Pertence.
Na ocasião, fundamentou-se o r. voto condutor na inexistência de garantia individual, pois “o texto anterior já versava a progressividade dos impostos, a consideração da capacidade econômica do contribuinte, não se cuidando, portanto, de inovação a afastar algo que pudesse ser tido como integrado ao patrimônio”.
Ainda, sustentou o Ministro Marco Aurélio que a EC 29/2000 veio “simplesmente a dar o real significado ao que disposto anteriormente sobre a graduação de tributos.”
Frise-se que o Ministro Sepúlveda Pertence, já no julgamento do RE 153.771, acentuou que o valor do imóvel serviria como presunção juris et de jure da capacidade contributiva do proprietário, ressaltando apenas que as balizas constitucionais à época não permitiam outra forma de progressividade.
Todavia, o voto condutor não se pronunciou quanto a argumentos importantes pela inconstitucionalidade da Emenda Constitucional EC 29/2000 como: (i) a violação do princípio da isonomia, dado o tratamento desigual entre contribuintes em situação similar, como por exemplo, o contribuinte que tenha 8 imóveis no valor de R$ 50.000,00 ser beneficiado em relação ao que detém único imóvel no valor de R$ 400.000,00; (ii) que a enumeração taxativa das hipóteses de progressividade constituía limitação ao poder de tributar, já entendida como garantia individual; (iii) a violação ao princípio da capacidade contributiva, por deixar de considerar a capacidade global do contribuinte, apurando tão somente ponto específico; e (iv) violação dos direitos individuais do adquirente do imóvel que passa a ser devedor de acordo com a capacidade contributiva do proprietário à época do fato gerador.
IV. - Conclusão
Desse modo, o julgamento do RE 423.768 parece retomar o entendimento inicial do Supremo na década de 1960, sem examinar, de forma tão abrangente, os problemas e temas que envolvem a questão da progressividade de impostos reais, principalmente tendo em conta a apreciação de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional.
Na realidade, os argumentos de que (a) a progressividade de alíquotas do IPTU já era prevista na Constituição, de sorte que não constitui garantia individual; (b) que o valor do imóvel consubstancia presunção juris et de jure da capacidade contributiva do contribuinte, a nosso ver, são frágeis, seja porque a existência de formas anteriores de progressividade não autoriza a extensão do rol de exceções; seja porque a capacidade contributiva, aspecto ontologicamente global, não pode ser presumido por apenas um único aspecto.
Mesmo a existência de suposta função social na progressividade não é consistente: se por um lado a progressividade quanto à utilização dos imóveis estimula ao aproveitamento e construção de espaços urbanos, de outro a progressividade quanto ao valor venal do imóvel estimula apenas o fracionamento de propriedades e a pulverização seus valores individuais. A utilidade social de tal estímulo é, no mínimo, controvertida.
Assim, nesse momento, a questão parece limitada a perspectivas bem mais estreitas do que em precedentes anteriores do próprio STF, merecendo estender-se o foco da discussão para fundamentos que extravasem a necessidade de o Estado recolher ainda mais tributos e abranjam as garantias individuais dos contribuintes.
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1STF, Primeira Turma, RMS 16.798/SP, Relator Min. Victor Nunes, DJU de 5/4/1967
2STF, Pleno, RE 69.784/SP, Relator Min. Djaci Falcão, RTJ 77/172.
3STF, Pleno, RE 153.771, Redator para o acórdão Min. Moreira Alves, DJ 5/9/1997.
4STF, Pleno, RE 234.105, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 31/3/2000.
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*Advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados
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