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O STJ e a conflitância da decisão que resolveu o conflito de competência 149.018

Será muito difícil para o juízo da auditoria da Justiça militar do Estado da Bahia decidir qualquer questão disciplinar da Marinha brasileira, que não se encontra sob a jurisdição militar daquele Estado.

1/3/2019

Causou surpresa para a comunidade jurídica que orbita em torno do direito militar a decisão tomada, de forma monocrática, pelo ministro Benedito Gonçalves do STJ, no conflito de competência 149.018/BA (2016/0257037-6), publicada em 26/2/19, e que teve a seguinte ementa:

"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL MILITAR E JUSTIÇA FEDERAL. ATO DISCIPLINAR MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL. PRECEDENTE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR, O SUSCITANTE."

A surpresa – e eu diria até o espanto – se dá pelo fato de que que, na origem tratou-se de ato punitivo disciplinar aplicado contra um sargento da Marinha brasileira pelo seu comandante, já que inexistem dúvidas que a Marinha é uma das Forças Armadas (CF, art. 142) e, portanto, uma instituição militar de natureza Federal ao passo que a Justiça militar estadual, tem como seus jurisdicionados os integrantes e as autoridades de polícias e corpos de bombeiros militares (CF, art. 125, §§ 3º a 5º), também instituições militares, mas situadas que estão na esfera estadual.

Um rápido passeio pelos fatos originários servirá para demonstrar, com a devida e máxima vênia, a impropriedade da decisão referida já que ela, poderá servir de precedente (espera-se que isso não ocorra) para novas decisões no mesmo sentido.

DOS FATOS

Em julho de 2015, um sargento da Marinha brasileira, impetrou na Justiça Federal da Bahia, distribuído que foi para a 2ª Vara Federal (especializada criminal), um pedido de habeas corpus em face de transgressão disciplinar militar (processo 23.143-22.2015.4.01.3300), onde alegou ter sido submetido a um procedimentos administrativo disciplinar (PAD), o qual seria viciado em face da inobservância de princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Como havia sido sancionado com uma pena de 3 dias de prisão disciplinar rigorosa, solicitara a expedição de liminar suspendendo aquele ato disciplinar militar.

De forma surpreendente, o MM juiz Federal substituto deixou de apreciar o pedido, por entender que a competência dos juízes Federais estaria restrita a "processar e julgar os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, ressalvada a competência da Justiça militar, nos termos do art. 109, IV, da CF". E, seguindo esse entendimento, declinou da competência para analisar o pedido de habeas corpus em favor da Justiça militar estadual baiana.

A toda evidência, e com todo o respeito, a decisão do magistrado federal de primeiro grau foi equivocada, a competência dos juízes Federais não se limita ao inciso IV do art. 109 da Carta Magna. Não existe dúvida que a competência para analisar ações advindas de atos disciplinares das Forças Armadas é da Justiça Federal, ante o mandamento do inciso I do art. 109, verbis: "I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública Federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça eleitoral e à Justiça do Trabalho".

E, no caso específico de habeas corpus, o inciso que ampara é o VII do art. 109, ou seja, processar e julgar: VII - os habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição, trocado em miúdos, da autoridade militar da Marinha brasileira.

Conquanto o art. 125, em seus §§ 4º e 5º definam a competência da Justiça militar estadual e, em específico a do juiz de direito para processar e julgar monocraticamente as ações judiciais contra atos disciplinares militares, com toda certeza tais atos dizem respeito às instituições militares estaduais, e nunca às Forças Armadas como entendeu o juiz Federal.

Aliás, para demonstrar o entendimento do TRF da 1ª região (que abrange o Estado da Bahia), nascedouro do imbróglio, acerca da competência da Justiça Federal para processar e julgar questões disciplinares das Forças Armadas, suficiente referir os seguintes precedentes: 1ª turma, processo 0017204-62.2009.4.01.3400 (apelação cível 2009.34.00.017294-9/DF, relator juiz convocado Ciro José de Andrade Arapiraca, julgado em 8/8/18, unânime; 3ª turma, processo na origem: 47581120114013900 (recurso necessário em HC), relatora desembargadora Federal Assusete Magalhães, julgado em 19/3/12, unânime; 4ª turma, recurso em sentido estrito 0008030-02.2009.4.01.3700 (2009.37.00.008581-9)/MA, relator juiz Federal convocado Marcus Vinicius Reis Bastos, julgado em 1/8/11, unânime.

Desta forma, aportando os autos do pedido de habeas corpus no juízo da auditoria da Justiça militar baiana, o MM juiz de direito do juízo militar, de forma correta e inquestionável,  citando inclusive robusto precedente da Corte Maior no sentido da competência da Justiça Federal para processar e julgar questões de ordem disciplinar das Forças Armadas (STF, RHC 88.543/SP) suscitou o conflito negativo de competência, no intuito de que o STJ resolvesse a quaestio.

 

DO PROCESSO NO STJ

Autuado no STJ sob número 149.018 - BA (2016/0257037-6), o conflito de competência foi distribuído ao i. ministro Benedito Gonçalves, o qual, como primeira medida, em setembro de 2016, verificou que naquele caso concreto, havia pedido de liminar pendente de apreciação.

Em assim sendo, nos termos do artigo 955, caput, do CPC/15, é facultado ao relator, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, designar um dos juízes para resolver, em caráter provisório, as medidas urgentes (art. 955. O relator poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, determinar, quando o conflito for positivo, o sobrestamento do processo e, nesse caso, bem como no de conflito negativo, designará um dos juízes para resolver, em caráter provisório, as medidas urgentes).

Foi o que fez o ministro relator do CC 149.018, em 26 de setembro de 2016, designando o juízo Federal da 2ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado da Bahia (juízo suscitado) para resolver, em caráter provisório, acerca de eventuais medidas urgentes.

Uma consulta ao andamento do processo no E.STJ permitiu verificar que desta decisão do Relator acerca do pedido liminar pendente de apreciação, foram expedidos dois telegramas judiciais, o primeiro ao juiz de direito da auditoria militar do Estado da Bahia (e-STJ-fls.187) e o segundo ao juiz federal da 2ª Vara Criminal da S.J. do Estado da Bahia (e-STJ-fls.189). Instala-se aqui uma dúvida: apesar de ter sido expedido o telegrama judicial designando o juiz federal para decidir sobre a liminar pendente de apreciação, uma consulta ao processo originário de 0023143-22.2015.4.01.3300 demonstra de forma cristalina que o pedido pendente de liminar não foi apreciado pelo juiz designado. A última movimentação do processo, datada de 10/8/15 foi, exatamente a baixa dos autos pela remessa para outro juízo por alegada incompetência. Também na movimentação processual do STJ não consta qualquer informação ao relator que o juiz designado não se manifestara, nem cumprira a designação, muito menos alguma determinação do relator para que assim o fizesse.

Justiça atrasada não é Justiça, disse-o, há muito tempo, o incomparável Rui, na célebre Oração enviada aos moços da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Se na vida militar – e no regulamento disciplinar da marinha, não há previsão de efeito suspensivo da punição aplicada e, se a Justiça sequer se manifestou sobre o pedido de liminar feito pelo paciente no habeas corpus originário, a conclusão que se chega é que o militar da Marinha foi preso, a medida pleiteada não foi sequer apreciada, e uma possível injustiça não pode ser evitada.

Para além do mérito do HC originário – que não é o objeto desta análise, causou muito mais surpresa o parecer do fiscal da lei, emitido em 23 de maio de 2017 (e-STJ- fls. 201-204), no qual o subprocurador-Geral da República, encampando os argumentos equivocados do juiz Federal suscitado no conflito de competência, entendeu ser da Justiça militar estadual a competência para processar e julgar ações envolvendo questões disciplinares da Marinha do Brasil, contra todos os dispositivos constitucionais vigentes que norteiam a temática.

E foi desta forma, que em 26/2/19 decidiu monocraticamente o ilustre relator do CC 149.018 no STJ.

Ad argumentandum tantum, mas não apenas para simplesmente argumentar, mas também mostrar a impropriedade da decisão final do conflito de competência, tanto nas alegações do juiz Federal suscitante do conflito, como no parecer do MPF como na decisão do ministro relator, foram citadas as seguintes decisões do STJ como aptas a embasar o entendimento (equivocado) que foi adotado:

No CC 122.413/MG, rel. ministro Sérgio Kukina, primeira Seção, julgado em 11/6/14, DJe 17/6/14, o conflito negativo era entre o juízo da 3ª auditoria da Justiça militar do Estado de Minas Gerais e o juízo de direito da 2ª Vara da Fazenda Pública estadual e de autarquias de Belo Horizonte, a questão era para solucionar conflito envolvendo questões de ordem disciplinar do corregedor da PMMG, a questão foi bem resolvida pela 1ª Seção do STJ em favor da Justiça militar estadual, mas frise-se, os dois juízos envolvidos eram do Estado de Minas Gerais e o ato disciplinar era oriundo da polícia militar, não das Forças Armadas;

No RMS 46.293/MG, segunda turma, relator ministro Ogg  Fernandes, julgado em 17/3/15, unânime, o paciente interpusera mandado se segurança contra ato imputado ilegal, atribuído ao governador do Estado de Minas Gerais, consubstanciado em sua demissão dos quadros da polícia militar, após o trâmite de procedimento administrativo disciplinar e, novamente a questão foi bem resolvida pela 2ª turma do STJ, pois,  cingia-se a controvérsia em determinar qual é o juízo competente para análise e julgamento da ação mandamental com vistas ao afastamento da pena de exclusão da polícia militar, e, considerando que a competência da Justiça militar para decidir a respeito da perda do posto e da patente de militar está delimitada à apuração de crimes e/ou atos disciplinares militares, nos termos do art. 125, § 4º, da Constituição Federal, em se tratando de ação que objetiva a anulação de ato (administrativo disciplinar) praticado pela administração militar de Estado, a competência é da Justiça castrense, e não da comum estadual. Uma vez mais, anotamos, o paciente era militar estadual, e, desta forma, jurisdicionado da Justiça militar estadual, sem nenhuma relação com as Forças Armadas;

O mesmo se diga do CC 122.413, 1ª Seção, relator o ministro Sérgio Kukina, julgado em 11/6/14, unânime, onde se decidiu conflito negativo de competência entre o juízo da 3ª Auditoria da Justiça militar do Estado de Minas Gerais,  e o juízo de Direito da 2ª Vara da Fazenda Pública e de autarquias de Belo Horizonte novamente a questão foi bem resolvida pela 1ª Seção do STJ, ficando assentado que a ausência de resposta a requerimento administrativo formulado pela parte implicada, no curso de processo disciplinar militar, equivale a ato administrativo militar típico, de cunho omissivo. Logo, cabe à Justiça militar estadual processar e julgar as ações que questionam a validade de atos administrativos processuais, comissivos ou omissivos, ocorridos durante processo administrativo disciplinar militar. Como nos outros precedentes, o paciente era militar estadual e não militar das Forças Armadas, sendo indiscutível a competência da Justiça militar.

CONCLUSÃO

A primeira conclusão a que se pode chegar, é a de que, a interposição de um habeas corpus com pedido de liminar ante a iminência do paciente ser preso por transgressão (contravenção) militar levou cerca de 4 (quatro anos) para ser decidido ante a suscitação de um conflito negativo de competência. Claro, não tendo ocorrido suspensão liminar, o paciente foi preso, e cumpriu a punição disciplinar sobre a qual pedira manifestação da Justiça (CF, art. 5º, XXXV).

A derradeira conclusão é a de que o tribunal encarregado de processar e julgar os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, "o", bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos (CF, art. 105, I, d), o fez de forma equivocada. No CC 149.018, o STJ, decidiu de forma conflitante, deferindo a competência para o juízo que não tem jurisdição para processar e julgar a causa, melhor dizendo, conquanto o art. 125, em seus §§ 4º e 5º definam a competência da Justiça militar estadual e, em específico a do juiz de direito para processar e julgar monocraticamente as ações judiciais contra atos disciplinares militares, com toda certeza tais atos dizem respeito às instituições militares estaduais, e nunca às Forças Armadas como no caso concreto.

A decisão em comento é, no mínimo inusitada já que a parte dispositiva da referida decisão do conflito de competência contraria as razões invocadas na sua própria fundamentação: contraria os dispositivos constitucionais da competência da Justiça militar estadual e da Justiça Federal, os precedentes citados do próprio STJ, além de contrariar precedente do próprio STF. Os precedentes do STJ demonstram sim a competência da Justiça militar estadual para processar e julgar as ações judiciais contra atos disciplinares militares, mas em relação aos militares estaduais, que no CC 149.018 foram interpretados de modo equivocado; já o precedente do STF demonstra extreme de dúvida que a competência para processar e julgar questões disciplinares das Forças Armadas é da Justiça Federal.

Enfim, com certeza será muito difícil para o juízo da auditoria da Justiça militar do Estado da Bahia decidir qualquer questão disciplinar da Marinha brasileira, que não se encontra sob a jurisdição militar daquele Estado.

__________
*Jorge Cesar de Assis é advogado, secretário geral da Associação Internacional de Justiças Militares e membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar.

 

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