No início da construção acadêmica de um jurista, cheia de novidades e descobertas conceituais que irão fundamentar sua futura carreira no Direito, encontra-se uma asserção capaz de enraizar seu pensamento:
“Iura novit curia - O juiz(o) conhece o Direito”!
Trata-se de axioma fundamental, ensinado nos primeiros meses do curso de Direito. A explicação para esse brocardo é bem simples, onde, dentre vários autores, Miguel Reale1 sintetiza de modo simples:
“Há um brocardo romano que diz: Jura novit curia, o que quer dizer que o foro, os juízes e tribunais presumem-se conhecedores do Direito. Esse brocardo é, indiscutivelmente, certo quanto à lei. Se invoco uma lei, não preciso exibir o Diário Oficial que a publicou.”
Enquanto o jurista em formação aprofunda seus estudos acadêmicos, encontra outro brocardo que remete a asserção que previamente deparou-se:
“Da mihi factum, dabo tibi ius – Dá-me os fatos que lhe darei o Direito”!
Este axioma, que normalmente é visto quando o jurista em formação é apresentado ao tema “função jurisdicional do Estado”, deve ser observado em conjunto ao brocardo anterior. Em termos lógicos, o jovem jurista (aqui, referindo-se à maturidade acadêmica) poderia fazer a seguinte dialética:
“Se o juiz conhece o Direito (Iura novit curia) e, para que preste jurisdição só precisaria dos fatos (Da mihi factum, dabo tibi ius), logo, não precisa provar existência de lei para aquele fato, em qualquer ação judicial, somente haveria a necessidade de descrever o fato para tal prestação, sem mencionar qualquer legislação”.
Professores são rápidos em desmanchar esse raciocínio, seja demonstrando que é necessário apresentar normas jurídicas para apontar precisamente aquilo que se pede, seja mostrando os artigos da lei processual que exigem a ligação entre os fatos e a lei, ou, de modo simples, explicando sobre a necessidade de uma argumentação jurídica.
Essa, argumentação, também denominada de “tese”, pode ser definida como um conjunto de proposições extraídas de uma interpretação do direito objetivando fundamentar uma conclusão jurídica valida – ou seja – as ideias que defendem um pedido, ou uma defesa a este pedido, com base no direito. Tais ideias são essenciais na formação da convicção do juízo, uma vez que apresenta a perspectiva única das partes que integram um processo, e servem como base para entender a verdade dos fatos.
A menção à artigos de lei, igualmente, é essencial, uma vez que facilitam a leitura e possibilitam que o entendimento de um fato possa ser absorvido de maneira imediata pelo leitor. De fato, trata-se de uma questão humana, visto que o juízo é representado por uma pessoa da sociedade civil, aprovada em concurso e investida nesta qualidade.
Mas deve ser feita uma pergunta essencial: deve o juízo da causa estar restrito à uma “tese” ou aos artigos legais descritos pelo autor para conceder o pedido?
A questão não tem solução simples.
Por um lado, admitindo que sim, estaríamos dizendo que as questões jurídicas interpretadas pelo autor que causaram o ajuizamento da ação, são essenciais para a análise do pedido em si. Na prática, se o judiciário entender que foi dada uma interpretação jurídica errônea a um fato, o pedido não poderia ser aceito.
Essa posição é válida, uma vez que não seria incorreto dizer que o pedido e sua causa configuram uma só ideia, representando: 1 – o bem da vida prejudicado (ou que poderá ser prejudicado), protegido por lei, gerado uma ação e; 2- o que deve ser feito em relação a esse bem da vida, para que se faça “justiça”.
Por outro, verificando que as questões jurídicas interpretadas e que deram causa ao ajuizamento não possuem o mesmo grau de essencialidade, o pedido poderia ser concedido, mesmo que a interpretação do autor fosse diferente. Em um exemplo prático, mesmo um autor interpretando o direito de uma forma errônea, o pedido poderia ser concedido.
E é essa última observação que obedeceria aos brocardos jurídicos acima expostos.
Ora, apesar de não se retirar a importância da argumentação jurídica em uma ação judicial (tanto assim o é que no Código de Processo Civil, por exemplo, para que uma sentença seja considerada fundamentada, o juízo deve enfrentar todos os argumentos do processo2), o juiz não poderia estar restrito à “tese” jurídica. Fazer isto seria retirar toda a autonomia que o mesmo poderia ter quando do julgamento de um processo judicial.
Essa importância é fundamental para a jurisdição (em seu sentido literal – “dizer o direito”), especialmente em processos contra a Fazenda Pública. Como se sabe, as leis de um governo (aqui, leia-se, federação, estados e municípios).
Como é notório, a interpretação de leis que trazem benefícios aos servidores públicos, por exemplo, não possui padrão específico – até porque a situação fática de cada servidor no momento do ajuizamento poderá ser interpretada de diversos modos. Pode ocorrer que, em um dado momento, a interpretação dada a causa seja favorável, apenas para que no futuro, o entendimento seja alterado desfavoravelmente.
Desse modo, não seria estranha a situação onde, por exemplo, determinada lei que fazia parte da argumentação do autor – sua “tese” – seja alterada, ou até mesmo revogada. Ou ainda, o autor observar inicialmente que seu pedido seria fundamentado em um artigo específico, quando na verdade deveria ser outro.
Nesse caso, considerando inexistir previsão legal capaz de manter o argumento apresentado na “tese”, ou, a previsão legal – na análise do juízo – está errônea, o pedido deve ser julgado procedente ou improcedente?
Estudando julgado proferido pela 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo3, verifica-se que prevalece o entendimento de que a “tese” apesar de fundamental para o julgamento de um processo, não deve restringir o julgamento do magistrado:
O autor impetrou o presente mandado de segurança objetivando a manifestação da municipalidade de São Paulo quanto à concessão ou não de sua aposentadoria especial nos termos do art. 88, § 1º, II, da Lei Orgânica do Município de São Paulo (emenda 36, de 17/12/13), a qual concede ao integrante da Guarda Civil Metropolitana a aposentadoria voluntária, nos termos do art. 40, § 4º, II e III, da Constituição da República, sem limite de idade, com paridade e integralidade do último salário que receber, desde que se comprove 30 (trinta) anos de contribuição, contando com pelo menos de 20 (vinte) anos de efetivo exercício em cargo da carreira da Guarda Civil Metropolitana, no caso para o homem.
(...)
O d. magistrado a quo concedeu parcialmente a ordem para reconhecer o direito do autor à análise do pedido de aposentadoria especial já apresentado, com base no disposto no artigo 57 da lei 8.213/91, c.c. o artigo 1º da LC 51/85, ressalvando que o direito à integralidade se subordina ao preenchimento das condições estabelecidas pela emenda constitucional 41/03. Sendo preenchidos os requisitos necessários para a aposentadoria voluntária e permanecendo o servidor em atividade, reconheceu também o direito ao recebimento do abono de permanência previsto no artigo 40, §19, da Constituição Federal, contado do momento em que preenchidos os requisitos.
Observa-se que a sentença atendeu ao quanto pleiteado na inicial, não havendo que se falar em extra petita.
Como não se desconhece, o juiz não está adstrito aos artigos de lei invocados pela parte na inicial, podendo conceder o pedido com base no direito que entende pertinente aos fatos. Com efeito, não é defeso ao magistrado prolatar sentença sob fundamento não citado na inicial. A subsunção do fato à norma é dever do juiz, que poderá, ao julgar a ação, promover a correta interpretação do direito, o que não gera a sua nulidade.
Neste caso, aplicam-se os princípios narra mihi factum dabo tibi jus e jura novit curia, pelos quais é possível ao julgador, diante dos fatos narrados e provados nos autos, aplicar o direito, ainda que diferente daquele invocado pelas partes. (grifamos)
Assim, é essencial que a máxima estabelecida nos brocardos da mihi factum dabo tibi jus e jura novit curia sejam seguidos pelos operadores do direito, considerando que, o juízo também é um jurista, assim como os patronos das partes (advogados e defensores, procuradores e promotores). A diferença existente está em seu ofício, uma vez que foi lhe dada a função máxima do Direito: dizê-lo diante dos cidadãos.
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1 REALE, Miguel - “Lições preliminares de direito”. — 27. ed. — São Paulo: Saraiva, 2002.
2 Artigo 489, IV do CPC/15.
3 TJ/SP; apelação 1025998-03.2014.8.26.0053; relator (a): Djalma Lofrano Filho; órgão julgador: 13ª Câmara de Direito Público; Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 9ª Vara de Fazenda Pública; data do julgamento: 11/11/2015; data de registro: 13/11/15.
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*Frederico Almeida de Barros é advogado do escritório Aparecido Inácio e Pereira Advogados Associados.