Migalhas de Peso

Terrorismo fiscal

O Direito Penal do “quinto dos infernos”

18/2/2019

De todos os fatores que determinaram insurreições e revoluções na história da civilização ocidental, nenhum deles teve tanta relevância quanto às questões que envolvem a sobrecarga de impostos. As desavenças a respeito de convicções políticas e religiosas serviram apenas como pano de fundo para as mais variadas declarações de guerra. A certeza quanto ao injusto cometido por aqueles cujos desígnios deveriam voltar-se para o bem comum já inspirou multidões na luta contra os seus governantes.

Os romanos foram responsáveis pelo aperfeiçoamento do sistema tributário desenvolvido com bastante propriedade pelos egípcios. Os publicanus desempenhavam com maestria o papel de cobradores de impostos em favor de uma nação que a tudo sobretaxava. Até mesmo objetos como portas (ostiarium) e janelas (vectival sericum) não escapavam da tributação, e só perderam o destaque quando a ganância arrecadatória do Império recaiu sobre fezes e urinas dos cidadãos. Apesar da coincidência, não foi esse o motivo da conclusão de Vespasiano sobre o aspecto inodoro do dinheiro (pecunia non olet). O referido Imperador, cuja lição subsiste até hoje em nossa Constituição, pretendia apenas demonstrar sua indiferença quanto à origem do bem passível de tributação, se lícita ou ilícita.

Levando em conta toda essa volúpia em subtrair dinheiro alheio, fica fácil compreender o porquê de os publicanus terem sido tão odiados durante a dominação romana, especialmente pelos povos estrangeiros que capitularam diante do exército mais eficiente do mundo. A repulsa era tão grande que dos doze seguidores de Jesus de Nazaré nenhum foi recebido com tanta desconfiança quanto Mateus, o cobrador de impostos. Eram tão desprezados pelos judeus que nem seus dízimos e ofertas eram aceitos nas sinagogas.

Entretanto, o que mais desperta curiosidade está na queda do Império Romano do Ocidente ocorrida na segunda metade do século V, posto que sua derrocada ocorreu graças a execução dos mesmos métodos que costumavam utilizar contra os seus inimigos. Os povos bárbaros que tanto combatiam igualmente desenvolveram a técnica de fragilizar e subjugar uma nação inteira por intermédio da cobrança de impostos. Átila (406 – 453), conhecido como a “Praga de Deus”, não se destacou somente por ceifar impeduosamente a vida dos seus opositores, mas principalmente por ter promovido um gigantesco saque ao tesouro imperial mediante acharques sucessivos em troca de segurança. Contudo, foi a Genserico (428 – 477), rei dos vândalos, que o destino concedeu a glória de marchar sobre Roma depois de numerosos assaltos aos cofres romanos com suas aleatórias e exorbitantes tarifas aduaneiras. Para a glória de alguns e desgraça de outros, havia chegado o momento de Roma provar do seu próprio veneno.

As gerações seguintes, que sobreviveram às trevas da Idade Média, não obstante os intermináveis conflitos armados seguidos de pestes avassaladoras, igualmente sentiram o dissabor de ver suas riquezas serem expropriadas de forma legítima pelos seus senhores. E nesse período em que a Igreja Católica despontava como uma grande força política, clérigos e nobres mantinham uma união promíscua que mais tarde resultaria nas chamadas Monarquias Absolutas do Direito Divino. Obviamente, a montagem de uma estrutura burocrática muito bem organizada, acompanhada da unidade monetária, bem como do sistema de pesos e medidas, os métodos de arrecadação se aprimoraram de forma espetacular. O montante angariado era mais do que o suficiente para cobrir os custos da uma nobreza pródiga e ainda financiar os projetos expansionistas dos grandes reinos.

Foi assim que o tráfico negreiro se destacou como o negócio mais lucrativo da época. Mesmo com os impostos incidentes sobre cada escravo, as castas representadas no ápice da pirâmide social podiam enriquecer do jeito como outrora haviam ousado sonhar. O sangue derramado de milhões de negros não passava de um detalhe desagradável, mas nada capaz de tirar o sono. Para os senhores de engenho o que realmente importava era saber se conseguiriam burlar o fisco omitindo o número real de cativos em suas declarações de renda. Ao mesmo tempo, na América Espanhola, a encomienda teve um papel fundamental na consecução do maior genocídio da história da humanidade. Indígenas quedavam brutalmente assassinados quando se recusavam a pagar os impostos cujo fato gerador era a simples impotência frente às armas do homem branco europeu.

Apesar de toda a opulência do período, não demorou muito para que o Antigo Regime entrasse em total contradição, criando dentro de si mesmo o gérmen que o conduziria à destruição: a burguesia mercantil. Com ela veio a fisiocracia, sob a liderança de François Quesnay, que se opunha aos exageros tributários do mercantilismo, no qual os impostos tinham papel exponencial. Os arranjos políticos promovidos pelos déspotas esclarecidos não foram suficientes para conter o inevitável. Os ideais do laissez-faire e laissez-passé eram, indubitavelmente, incompatíveis com o modelo vigente.

Na França, a cada derrota nos campos de batalha, Luiz XVI procurava manter seus privilégios onerando ainda mais os seus súditos com uma carga tributária impagável. E enquanto a população fazia dos ratos que habitavam os esgotos de Paris a principal fonte de proteína, os valores acumulados pelos burocratas se destinavam ao financiamento de novas batalhas, sem contar os vultosos banquetes palacianos. Em resposta, os franceses voltaram suas armas para a realeza de Versailles: revolución!

Nos dias atuais, o presidente Emmanuel Macron vem constatando que o ímpeto francês de se rebelar violentamente contra os impostos abusivos não se degenerou com o passar do tempo. No final de 2018, um movimento articulado pelos “coletes amarelos” mobilizou cerca de 130 mil pessoas em um só dia na avenida Champs-Elysées para protestar contra o aumento dos impostos sobre o combustível, deixando mais de 130 feridos, além de 400 detidos. Rodovias, estradas e acessos a complexos petrolíferos foram totalmente bloqueados.

A Inglaterra sempre teve a fama de ser precursora dos principais processos de transformação. O pioneirismo britânico já havia sido demonstrado no século XIII com a elaboração da invejável Magna Charta Libertatum, que, só para variar, também fora motivada pelo excesso de tributos criados pelo rei João Sem Terra. Todavia, em que pese a vasta experiência no âmbito fiscal, os ingleses viriam a cometer um erro imperdoável em suas posses ultramarinas nas últimas décadas do século XVIII. Depois de armar os habitantes das Treze Colônias no intuito de conter o avanço das tropas francesas na América durante a Guerra dos Sete Anos, passou a cobrar dos colonos o pagamento dos custos gerados pelo conflito. Nesse sentido foi editada uma série de leis estabelecendo novos impostos, como a lei do açúcar, lei do selo e a lei do chá. Irredutível em relação às reivindicações das câmaras coloniais, a Coroa Inglesa ousou agravar ainda mais a situação pondo em vigor as chamadas leis intoleráveis, transformando o pacote de encargos em um verdadeiro acinte. O resultado não poderia ser outro: civil war!

A experiência negativa adquirida em suas conquistas além-mar não foi suficiente para evitar a grande derrota inglesa no protetorado indiano diante da onda de desobediência civil organizada em repúdio aos injustos impostos. As articulações lideradas por Mahatma Ganhi em uma luta na qual abdicou do uso da violência culminaram com a libertação da Índia em relação ao controle direto da Inglaterra.

Os levantes ocorridos no mundo em reação às medidas expropriativas do Estado tiveram grande influência no Brasil desde o período colonial. O legado da cobrança de impostos durante a atividade mineradora pode ser percebido até hoje no linguajar nacional. Muitos podem não saber a origem, mas é difícil imaginar alguém que nunca tenha mandado um desafeto para o “quinto dos infernos” ou se referido ao sonso como “santinho do pau oco”. Na região das Minas Gerais eclodiu o movimento de sedição em consequência dos aviltantes tributos. O dia da derrama havia sido escolhido para o início da guerra de libertação. Porém, diante do amadorismo dos inconfidentes, somado ao malogro da traição, venceram aqueles que se empenharam em implantar o medo de insurgir contra as medidas do governo. Certamente, os efeitos desta lição perduraram no inconsciente coletivo das gerações seguintes.

De acordo com os dados recentes do IBPT – Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, o brasileiro precisa trabalhar cerca de 153 dias por ano somente para o pagamento de impostos. E o fato de o Brasil ocupar o 14.º lugar no ranking dos países com a maior carga tributária do mundo, não o coloca em posição de vantagem em relação àqueles que se encontram na dianteira, pois em todos eles a população vê seus esforços retornarem em benefícios para o bem-estar social, a exemplo da Finlândia, Suécia, Noruega etc. Em contrapartida, ao brasileiro resta apenas assistir pela televisão as notícias sobre o destino do seu dinheiro que é desperdiçado de diversas formas. No campo da ilicitude, dispensável listar os infinitos escândalos envolvendo desvio de dinheiro público no contexto dos crimes funcionais. Por outro lado, os recursos obtidos com o suor dos contribuintes acabam se esvaindo dentro da legalidade, embora sem qualquer compromisso moral, como o auxílio paletó aos parlamentares e outros tipos de subsídios inexplicáveis.

A incongruência da política fiscal adotada por qualquer governo pode ser observada pelos crescentes índices de sonegação, tanto no âmbito das pessoas físicas quanto das pessoas jurídicas. A grande maioria dos devedores não se entrega à inadimplência por opção, mas por nítida incapacidade financeira. Com exceção do mal pagador contumaz e dos fraudadores do fisco, todos querem caminhar dentro da legalidade. Inconcebível é o governo chamar de renda aquilo que o cidadão produz para prover o seu próprio sustento e de sua família, e, mesmo assim, muito aquém do que poderia ser considerado digno. E no mundo empresarial, a ideia de que o regular cumprimento das obrigações tributárias inviabilizaria qualquer negócio vem se tornando uma verdade absoluta, independentemente de quem esteja no comando do país.

Infelizmente, todas as propostas razoáveis para a construção de um sistema tributário mais justo vêm sendo engavetadas ou desvirtuadas no Congresso Nacional. Aliás, não é muito diferente do que tem ocorrido em relação a uma série de outros problemas da mais alta relevância no Brasil. As únicas soluções apresentadas são de natureza penal, o que aliás nem merecem assim serem consideradas. Atualmente, tudo acaba se precipitando no âmbito do Direito Penal. Jamais se viu um surto punitivo dessa ordem dentro de um regime dito democrático. Parece que colocar todo mundo na cadeia virou um lema, uma missão, um triunfo. O que poucos percebem é que, se dermos continuidade a essa histeria coletiva, em breve, estaremos vivendo o mesmo dilema que afeta o governo de Donald Trump a respeito da construção de um gigantesco muro na fronteira dos Estados Unidos da América com o México. A única diferença está no fato de que no Brasil um muro poderá um dia ser levantado para proteger o mundo de nós mesmos, porque estamos nos tornando uma sociedade de delinquentes, assim considerados pela legislação vigente.

No caso específico dos tributos, a legislação penal nunca se prestou exatamente a suprimir a liberdade dos devedores do fisco, como se pode extrair da análise do conjunto normativo editado sobre o tema. Nota-se, facilmente, que o Estado pretende apenas receber os valores que lhe são devidos. Além do mais, o encarceramento do contribuinte frustraria de uma vez por todas os planos estatais voltados para a recuperação de seus ativos. Por essa razão, as leis penais desempenham o papel fundamental no sentido de implantar o chamado terrorismo fiscal, no qual se comina a pena privativa de liberdade pura e simplesmente como meio de intimidar o contribuinte ao pagamento do tributo ou viver sob a ameaça do cárcere. Enfim, trata-se de uma forma velada de se legitimar a prisão por dívida, ao arrepio da Constituição da República e dos Tratados de Direitos Humanos dos quais somos signatários.

Logo que entrou em vigor a lei 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo) alguns autores, imediatamente, passaram a suscitar a tese supracitada. Entretanto, os Tribunais Superiores argumentavam que não se tratava de prisão por dívida, visto que a lei não pune o mero devedor. Trata-se, na realidade, de resposta penal ao “estelionatário do fisco”, que, mediante condutas fraudulentas, contidas nos incisos expostos nos dois primeiros artigos da referida lei, suprime ou reduz tributo ou contribuição social, ou ao menos, dirige o seu comportamento para tal fim.

Em que pese a jurisprudência ter sido fundamentada em argumentos bastante convincentes, as leis que se sucederam no tempo revelaram justamente o contrário. A lei 9.249/95 trouxe em seu texto uma causa de extinção da punibilidade para aquele que efetuasse ou promovesse o recolhimento do tributo, como seus acessórios (multa, correção monetária e juros), antes do recebimento da denúncia. Isso significa que o Estado não teria o menor interesse em instaurar um processo criminal contra o sonegador caso fosse efetuado o pagamento até o último centavo. Haveria mesmo vontade do Estado em punir o “estelionatário do fisco” ou tudo não passaria de um artifício para receber o dinheiro? O contribuinte ao pagar a sua dívida, mesmo quando comprovada a conduta fraudulenta, consegue alterar o seu status de “estelionatário do fisco”? E por que autores de outros crimes de natureza patrimonial, sem violência ou grave ameaça, como o furto, apropriação indébita e estelionato, não têm o mesmo tratamento diante da hipótese de arrependimento posterior?

A alternativa de pagamento da dívida para não se ver processado evitou uma série de demandas criminais em face de contribuintes que de algum modo conseguiram liquidar seus débitos fiscais tempestivamente. Os demais, por estarem em situação econômica mais fragilizada, não puderam dessa forma escapar das humilhantes acusações em juízo. Por essa razão, reforçando o argumento de que o Estado não quer abarrotar ainda mais os tribunais com processos (atualmente ultrapassa a marca de cem milhões em trâmite, sendo que em mais da metade o Estado figura como autor ou réu), foi editada a lei 9.964/00 que implantou o sistema de parcelamento da dívida tributária (REFIS), acarretando a suspensão da pretensão punitiva enquanto o contribuinte estivesse atualizado no pagamento das respectivas prestações. Assim, quem não se revestisse de condições de quitar desde logo o seu débito, que tratasse de pedir o parcelamento.

Mesmo assim, não foi pequeno o número de contribuintes processados. Por variadas razões alguns não conseguiram sequer ingressar no plano de parcelamento, e isso se deu ou por total insolvência financeira, ou por não estar ciente da oportunidade legal, ou por não possuir a documentação exigida pelo poder público. Sendo assim, acabaram figurando no polo passivo de uma ação penal. Todavia, sem perder de vista o desejo governamental de somente receber os valores inscritos na dívida ativa, entrou em vigor a lei 10.684/03, criando o parcelamento especial (PAES ou REFIS II). Com base no referido diploma legal, o contribuinte poderia requisitar o parcelamento mesmo no curso do processo. Com o pagamento a qualquer tempo, parcelado ou não, ocorreria a extinção da punibilidade. A regra se aplicaria não somente para os crimes tributários, mas também aos delitos previdenciários, como no caso dos crimes dos arts. 168-A e 337-A, ambos do Código Penal. Em suma, em defesa do contribuinte pode-se concluir o seguinte: se tem dinheiro, efetue o pagamento para não ser denunciado; se não tem, requeira o parcelamento; se denunciado, pague integralmente a dívida e verá o processo arquivado em razão da extinção da punibilidade; não sendo possível, peça o parcelamento para acarretar a suspensão do processo.

Posteriormente foram publicadas mais duas leis referentes ao assunto, como a lei 11.941/09 e a lei 12.382/11, que também versam sobre a possibilidade de suspensão e extinção da punibilidade, mediante parcelamento e pagamento da dívida. Finalmente, a lei 13.254/16 regulamentou o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária, na qual o art. 5.º renova a figura das causas extintivas da punibilidade

Diante de tudo que foi exposto, não há como não concordar com o ilustre professor Hugo de Brito Machado, um dos mais renomados especialistas na área: “Constitui hipocrisia negar que a criminalização do ilícito tributário tem inegável caráter utilitarista, pois, se a razão de ser da criminalização é compelir as pessoas ao pagamento, como de fato é, pagar o tributo com os acréscimos legais satisfaz plenamente os objetivos da lei.” (MACHADO, Hugo de Brito. Estudos de Direito Penal Tributário, p. 231, Editora Atlas, São Paulo, 2002).

Admitir que o Estado possa se valer de qualquer expediente para obter os recursos que, na maioria das vezes, são destinados exclusivamente para a sua manutenção, e preservação dos privilégios de alguns dos seus representantes, é ultrajante, repulsivo, nauseante. O terrorismo fiscal instalado no Brasil somente gera insegurança para os empreendedores nacionais e estrangeiros, inibindo os investimentos em todas os setores. As dívidas contraídas pelas empresas que se aventuraram a produzir em território nacional, com todos os riscos oriundos da instabilidade política e econômica, não se comunicam com o patrimônio dos seus sócios, mas, em contrapartida, podem sujeitá-los às sanções penais e aos demais efeitos da condenação. Um contrasenso que precisa ser reavalidado.

As leis devem ser boas para o homem. Se não está a serviço do indivíduo, então desvirtuou-se de sua natureza. É por essas e por outras particularidades que os povos do mundo inteiro estão começando a desacreditar na democracia, e muitas vezes no próprio Estado. Movimentos de desobediência civil tendem a se proliferar, como em tempos remotos, quando Henry David Thoreau (1817 – 1862) preconizava que “o melhor governo é o que não governa”.

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*Sergio Ricardo do Amaral Gurgel é sócio do escritório Amaral Gurgel Advogados.

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