É inadmissível pela nossa Constituição da República qualquer asfixiamento da liberdade de pensar e julgar. Pensar e julgar correspondem a separar o certo e o errado dentro dos limites constitucionais, mesmo quando isso confrontar-se com a opinião geral e corrente.
O juramento à Constituição e às leis da República, mais por ações do que palavras, impõe lealdade constitucional com independência. Não deve, assim, animar tanto o entusiasmo com o não pensamento, com o vale-tudo corrente, quanto responder à arbitrariedade com igualmente arbitrário exercício jurisdicional.
A condição democrática é inerente à República constitucional brasileira. E vincula a todos, a jurisdicionados e a juízes. Todos temos compromisso de cumprir a Constituição, defendeu, com irretorquível acerto, o Ministro Celso de Mello em recente pronunciamento. O dever de fundamento está no leiaute do como decidir, a partir do qual dissonâncias e controvérsias são legítimas.
Por isso, conviver com as diferenças e com os conflitos na esfera pública, é pressuposto da responsabilidade pelas nossas escolhas.
Julgar, por conseguinte, é manter-se fiel à Constituição e às leis da República. Nada mais, nada menos.
Direitos e garantias constitucionais no estatuto intangível das cláusulas pétreas, proteção dos direitos humanos conforme reconhecimento de um direito constitucional multinível, respeito ao diferente, rechaço à homofobia, à misoginia, cuidado com as questões das drogas como graves problemas de política pública, proteção e reconhecimento aos povos indígenas, tutelas contramajoritárias, entre outras diretrizes vinculantes, estão na linha constitucional do refutar à inadmissível 'liberdade educacional sitiada'; soma-se a isso, também com estribos constitucional e infraconstitucional, sanções devidas aos malferires dos bens públicos em sentido amplo, cumprindo-se com rigor todos os limites considerados na Constituição da República na ordem econômica e tributária, em todos os níveis da federação. Igual para todos, a Constituição é de uma República democrática sem tréguas à delinquência, a quem quer seja, dentro ou fora do Estado.
A pluralidade humana de nossa Nação, esculpida no texto constitucional, nos desafia a viver esse complexo mundo em comum.
Encontrar equilíbrio entre arroubos ingênuos e saudosismos catastróficos, reabre no Brasil da jurisdição constitucional o lócus do julgamento autônomo, testemunhado pela fidelidade à Constituição, acima dos preconceitos, das lamentações e do conformismo.
A Constituição sabe a condição democrática, que significa partilhar da ‘casa comum’ (na expressão do Papa Francisco) no qual a vida de cada um é assegurada em sua dignidade pela intersubjetividade, pela vida de todos nós.
Sopram ventos desafiadores em todos os cantos do planeta. A ‘banalidade do mal’ já mostrou sua face monstruosa. Antes de chegarmos àquela situação-limite, há de haver, acima dos interesses de grupos ou de facções, mulheres e homens, em todos os segmentos sociais, que não deixem a condição democrática da Constituição perecer. E o façam sem sucumbir às pressões, sociais ou ideológicas.
Esse mergulho nas águas de uma crise ética há de fazer emergir pulmões revigorados pela Constituição, sem concessões nem arrogância.
A morada do Brasil democrático é o abrigo da Constituição. É lição de nosso decano e paradigma no Supremo Tribunal Federal. Atender a esse chamamento homenageia a lucidez, zelo e sensibilidade de quem mira quase seis lustros de serviços prestados à justiça, ao País e ao debate democrático.
Irreflexão leva a fanatismos, à intolerância e aos cinismos de todos os gêneros. É essencial, mas não basta somente cumprir deveres, agir de boa fé, impende ao mesmo tempo pensar sobre a nossa capacidade de gerar o desenvolvimento humano, social e econômico sem demolir os limites das leis e da República.
Serenidade e verdade são alavancas para a liberdade com responsabilidade; como se atribui a Jaspers, citado por Arendt: "bactérias podem causar epidemias que destruam nações, mas elas permanecem meramente bactérias".
Não deixemos se alastrar o desapego à democracia como fungos se alastram pelas superfícies. Há muito mais de complexidade entre a inocência e o crime que suscita nossa atenção. Mitologizar o desprezo à democracia, às instituições, pode nos tirar a condição de possibilidade de continuar a conviver na diferença e na liberdade. A indiferença pode ser o algoz daquilo que nos constituiu como seres viventes em uma democracia.
A condição democrática é imprescindível para essa liberdade de ser e de estar. Como apreendemos do jesuíta François Varillon, em homilia recente dos padres Paulo Botas e Eduardo Spiller Pena, "tornar-se homem livre é morrer para tudo o que não é amor e caridade. O homem torna-se livre quando é capaz de afrontar a morte - a morte do egoísmo sob todas as suas formas: tranquilidade, conforto, privilégios, consentimento às insolentes desigualdades do mundo. O homem é livre quando, ativamente, morre para tudo isso e trabalha a fim de não se tornar escravo de si". Catapultada por esse genuíno sentimento assenta-se, no artigo 5º da Constituição a liberdade, essencial à fé na vida.
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*Edson Fachin é ministro do STF.