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Os três maiores danos produzidos pelo imbróglio do caso Battisti

São prejuízos incalculáveis à autoridade de nossa Corte Suprema, à essência do instituto da extradição, e ao prestígio do Estado brasileiro como ator de relevo no âmbito da cooperação penal internacional.

16/1/2019

A extradição é a entrega por um país a outro, e a pedido deste, de alguém que deverá, no território do requerente, cumprir pena ou responder a processo penal.

 

Esse modelo de cooperação internacional contra o crime é regido por tratados, quase sempre bilaterais. Quando não houver tratado, o requerente pode fundar seu pedido numa simples promessa de reciprocidade. Esta última não garante a pronta satisfação de um pedido futuro. O que o Estado promete é o encaminhamento, à análise judicial, de eventual solicitação, segundo os parâmetros legais vigentes em seu território.

O detalhe parece trivial, mas merece atenção. Não se promete extraditar, porque o pedido sempre precisará ser confrontado com condições impostas pela ordem jurídica do Estado territorial. Isso porque o objetivo é promover entre Estados a cooperação desvinculada de arbítrio político, submetida à normativa contratual (o tratado) e legal (a lei interna que disciplina a medida no território do Estado em que se encontra o extraditando).

Em 2010 o STF deferiu a extradição de Cesare Battisti, no entendimento de que não se tratava de perseguido político, mas de criminoso comum. Ao julgar o pedido, entretanto, a Corte parece ter considerado, equivocadamente, a efetivação da medida ato discricionário do Chefe de Estado.

A primeira consequência negativa dessa decisão foi desviar o instituto de sua natureza constitucional. Ora, se a Carta confere a órgão judiciário o julgamento do pedido de extradição, é precisamente para neutralizar humores políticos sobre a medida de cooperação penal internacional.

Tudo quanto sucedeu desde então vem provando a gravidade desse erro. O instituto tem sido impregnado por ideologias. Isso é perceptível tanto no despacho heterodoxo e cheio de contradições do ex-presidente Lula, no apagar das luzes de seu governo, em 31 de dezembro de 2010, quanto nas publicações em redes sociais de um familiar do atual Presidente, contendo promessas de oferecer Battisti como "presente" ao governo italiano.

Ambas as atitudes destoam do propósito do instituto. É evidente o desvirtuamento de sua finalidade primeira: tornar possível o exercício da jurisdição penal entre os Estados sobre o crime comum, sem qualquer conotação política.

A decisão do STF, tomada por maioria apertada de votos, não parece compatível com a letra da Constituição e das leis nacionais. É implícita e óbvia a obrigação do presidente da República de efetivar a extradição após seu deferimento pelo STF. Afinal, a Constituição confere ao STF a prerrogativa de processar e julgar pedidos de extradição. E as decisões do Tribunal têm caráter obrigatório, não meramente sugestivo.

Até o caso Battisti, nunca se cogitou neste país de descumprir tais decisões da Suprema Corte. Durante anos, foram interpretadas sem controvérsia a Constituição e a lei extradicional brasileira (hoje, a lei 13.445/17, a nova lei de migração, que revogou a lei 6.815/80, o Estatuto do Estrangeiro). O caso Battisti trouxe ao palco da Praça dos Três Poderes uma cena inédita.

A segunda implicação do precedente do STF no caso Battisti foi a perda, por parte do Tribunal, de atribuições constitucionais e históricas.

Ao fim e ao cabo, da leitura atenta das mais de mil páginas do acórdão do STF, é possível concluir que a recusa da entrega deve ter respaldo no tratado de extradição. Nas condições da entrega1, o presidente da República pode, por exemplo, não concluir a extradição, caso o Estado requerente não prometa abster-se de aplicar a pena de morte. Essa condição é determinada pela lei. O acórdão do STF no caso Battisti permite a recusa fundada no texto do tratado bilateral de extradição.

O governo, no entanto, interpretou a entrega como medida facultativa, de natureza inteiramente discricionária.

Essa leitura enfraquece o STF como juiz do pedido de extradição, papel conferido pela Constituição.

Assim, além de esvaziar sua competência constitucional, o STF mitigou-a ainda mais pela falta de clareza da decisão que proferiu.

A não extradição de Battisti, embora definida como cabível pelo STF, consubstanciou o descumprimento de um tratado. Essa terceira consequência foi tão funesta quanto a primeira e a segunda.

Quase uma década mais tarde, o imbróglio encontrou solução. Ironicamente, coube a Evo Morales, líder de orientação política próxima à dos aliados e patrocinadores de Cesare Battisti, devolvê-lo à Itália, numa lição de respeito a esse país e, mais que tudo, à ordem jurídica internacional.

O Estado brasileiro sofreu inegável desgaste. Ficou claro ao mundo que mudados os ventos e a orientação ideológica de nossos dirigentes, muda também nossa forma de execução de compromissos que deveriam vincular Estados, e não governos.

Battisti segue para acerto de contas com a justiça de seu país, depois de décadas de uma vida de fugitivo expatriado. A República Italiana vira uma página importante de sua história.

Por aqui, ficam os estragos da passagem do italiano por solo brasileiro. São prejuízos incalculáveis à autoridade de nossa Corte Suprema, à essência do instituto da extradição, e ao prestígio do Estado brasileiro como ator de relevo no âmbito da cooperação penal internacional.

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1 As condições da entrega são hoje estipuladas no art. 96 e incisos da lei 13.445/17, mas já eram previstas no art. 91 da lei 6.815/80, vigente em 2010.

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*Ana Flavia Velloso é advogada, sócia da Advocacia Velloso. Mestre em Direito Internacional (Paris I-Panthéon-Sorbonne, Universidade de Brasília), professora de Direito Internacional Público.

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