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Lei da ficha limpa, indeferimento de pedido de registro de candidatura e aplicação de recursos públicos em campanha: dever de ressarcir o erário?¹

Sendo lícita a realização de campanha por candidatos sub judice, em regra, o posterior indeferimento definitivo do pedido de registro de candidatura não torna ilícitos os antecedentes atos de campanha e não constitui justo título para que seja pleiteada a devolução de recursos públicos aplicados por candidatos nessas circunstâncias.

16/1/2019

Introdução

A crescente judicialização da política tem conduzido a debates cada vez mais acirrados acerca do exercício dos direitos políticos no Brasil, o que inclui a aplicação da lei da ficha limpa no sentido de se promover o afastamento do processo eleitoral de pessoas, em tese, incursas em seus dispositivos, e do papel do registro de candidatura e da impugnação ao registro na aferição do cumprimento dos requisitos de elegibilidade e das causas de inelegibilidade.

No curso do pleito eleitoral de 2018, após o indeferimento do registro de candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, houve grande discussão acerca dos limites de aplicação do art. 16-A, da lei das eleições (lei 9.504/97), que permite a realização de campanhas eleitorais por candidatos que tiveram os seus pedidos de registro impugnados, bem como a PGE se manifestou por diversas vezes no sentido de que moveria ações para cobrar o ressarcimento de recursos públicos recebidos e aplicados por candidatos que tiveram os seus registros indeferidos em decorrência da aplicação da lei da ficha limpa.2

Destarte, o presente artigo tem como mote a resposta a seguinte pergunta: o indeferimento do registro de candidatura constitui causa para devolução de recursos públicos recebidos e aplicados por candidatos sub judice?

Lei da ficha limpa e restrições à capacidade eleitoral passiva: situando o problema

A elegibilidade refere-se à capacidade eleitoral passiva do indivíduo, ou seja, ao seu direito de ser votado e, quiçá, eleito para determinado mandato eletivo, demandando o preenchimento dos requisitos constitucionais previstos no art. 14, § 3º, da Constituição da República. Tratando-se de direito político e, portanto, fundamental, a elegibilidade apenas deve ser restringida nos casos previstos no texto constitucional.

Pode ocorrer, contudo, que no caso concreto incidam causas da inelegibilidade, consistentes em circunstâncias negativas, que afastam a capacidade eleitoral passiva, impedindo que determinado cidadão possa se candidatar e receber votos, ou ainda que interessado não cumpra os requisitos necessários para que seu registro de candidatura seja deferido.

Acerca das causas de inelegibilidade, por retratarem impedimentos ao exercício de direito fundamental, é imprescindível que sejam observados fielmente os requisitos constitucionais, de modo que a matéria apenas pode ser versada no próprio texto da Carta da República ou tratada por meio de LC, neste caso, obviamente, dentro das balizas traças pela Constituição da República.

Assim, a LC 64/90, posteriormente alterada pela LC 135/10 – popularmente conhecida como lei da ficha limpa – traça uma série de inelegibilidades a pretexto de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do voto e a normalidade e a legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou o abuso de poder.

Com a justificativa de dar cumprimento ao disposto na EC de revisão 4/94, que alterou o artigo 14, § 9º3, da Constituição da República justamente com o escopo de que as inelegibilidades se voltassem à tutela da probidade e da moralidade administrativas, a lei da ficha limpa incluiu uma série de tipificações de novos atos que podem gerar inelegibilidades e passou a prever que não há a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado de condenações em certos processos criminais ou em determinadas ações de improbidade para que possa ser reconhecida a inelegibilidade de determinada pessoa, bastando que as condenações tenham sido proferidas por órgãos colegiados.

Sem embargo de todas as críticas relativas à constitucionalidade de tais disposições e mesmo considerando que o STF já as declarou constitucionais, é importante destacar que se atravessa no Brasil um momento em que cada vez mais o direito influencia a política, selecionando previamente quem pode ou não se candidatar, de modo a restringir as possibilidades de escolha dos eleitores. A judicialização da política produz um enorme déficit democrático, já que, em regra, retira dos titulares do poder – o povo – a possibilidade de escolha.

Sobre o aspecto geral de como o direito assume uma posição de proeminência na sociedade, Georghio Tomelin observa que, embora devessem ser instrumentais em sua condição de atividade-meio, os aspectos jurídicos acabam atuando de maneira diversa para dizer o que pode ou não ser feito. E conclui: "em um país com o epíteto de República dos bacharéis, a capacidade ordenante dos juristas pode assumir proporções alarmantes" (2018, p. 31).

Acerca da influência negativa que a lei da ficha limpa e a judicialização da política podem representar, retirando poder e responsabilidade do eleitor, de modo a conferir o protagonismo do exercício democrático aos operadores do direito, escrevemos trabalho em coautoria no qual expressamos nossa preocupação (DIAS; SOARES, 2016, p. 103).

No mesmo sentido, logo após a entrada em vigor da lei da ficha limpa, Ricardo Penteado já apontava para o perigo da "judicialização da política" (2011, p. 93).

Néviton Guedes observa que as restrições à capacidade eleitoral passiva repercutem de maneira negativa sobre a universalidade do voto, pois limitam o poder do eleitor, que tem as suas opções de voto reduzidas, destacando, dessa forma, que todas as limitações aos direitos políticos devem ser excepcionais (2018, p. 113).

Conforme já ressaltamos anteriormente, a questão é extremamente complexa. De um lado, toda inelegibilidade gera restrição à capacidade eleitoral passiva, ou seja, à possibilidade de o cidadão concorrer a cargos políticos, retirando, igualmente, a faculdade do eleitor de destinar o seu voto ao candidato que teve indeferido o seu registro. De outro, porém, não se pode ignorar que a própria Constituição da República determina que LC disponha sobre inelegibilidades não só para proteger a legitimidade e normalidade das eleições, como também para tutelar a probidade e a moralidade administrativas para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato (2016, p. 103).

Destarte, a compatibilização entre as inelegibilidades e os direitos políticos exige parcimônia na restrição dos direitos políticos, bem como a observância do devido processo legal.

Registro de candidatura: momento adequado para aferição de inelegibilidades sob a ótica da jurisprudência do TSE

Como é cediço, a atribuição para analisar os pedidos de registro de candidatura pertence à Justiça eleitoral, tratando-se de competência material, sendo, portanto, absoluta4. Será no processo de registro de candidatura e, eventualmente, em decorrência de apresentação de impugnação ao registro que a Justiça eleitoral exercerá o seu mister e verificará, no caso concreto, se o pretenso candidato cumpre os requisitos de elegibilidade e não incide em causas de inelegibilidade (PENTEADO, 2012, p. 55).

O art. 11, § 10, da lei das eleições é claro no sentido de que é no momento do registro de candidatura que são aferidas as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade. Portanto, o processo de registro de candidatura é primordial para que a Justiça eleitoral possa verificar se qualquer pessoa preenche ou não os requisitos para o deferimento do registro.

Acerca do papel dos magistrados na necessária análise das supostas causas de inelegibilidade, bem como dos limites à atividade interpretativa, o TSE tem decidido:

1. A cognição realizada pela Justiça eleitoral, nas impugnações de registro de candidatura, autoriza a formulação, por parte do magistrado eleitoral, de juízos de valor no afã de apurar a existência, no caso concreto, dos pressupostos fático-jurídicos das inelegibilidades constantes do art. 1º, inciso I, de maneira a produzir uma regra concreta acerca do estado jurídico de elegibilidade do pretenso candidato, sem, contudo, imiscuir-se no mérito do título (judicial, administrativo ou normativo) que embasa a pretensão deduzida ou desautorizar as conclusões nele constantes (e.g., assentar dolo quando o aresto da Justiça Comum expressamente consignar culpa).

2. A estrutura normativa de cada hipótese de inelegibilidade informa os limites e possibilidades da atividade cognitiva exercida legitimamente pelo juiz eleitoral, ampliando ou reduzindo o objeto cognoscível, razão por que inexiste uniformidade na cognitio desempenhada na aferição da higidez do ius honorum do pretenso candidato à luz das alíneas do art. 1º, inciso I (i.e., a cognição autorizada em alínea g não deve se assemelhar àquela realizada nos casos de alínea o pelas distinções do tipo eleitoral).

3. A homogeneidade na tipologia das alíneas do art. 1º, inciso I, enquanto ausente, justifica a distinção quanto à amplitude do objeto cognoscível (i.e., se maior ou menor a profundidade da cognição), condicionada, no entanto, ao específico pressuposto fático-jurídico sub examine. (RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 26011 - ITATINGA – SP. Acórdão de 30/11/2016. Relator(a) min. Luiz Fux)

Outrossim, a parte final do § 10, do art. 11, da lei das eleições prescreve que fatos supervenientes ao pedido de registro de candidatura e que afastem eventual inelegibilidade devem ser considerados, o que demonstra que, se no curso da discussão acerca do tema, a inelegibilidade for afastada, por qualquer motivo, ela não impedirá o registro da candidatura.

Sobre esse aspecto, impende consignar que o TSE foi além e editou a súmula 43 para prever que devem ser consideradas as alterações supervenientes que beneficiem o candidato também no cumprimento dos requisitos de elegibilidade: "As alterações fáticas ou jurídicas supervenientes ao registro que beneficiem o candidato, nos termos da parte final do art. 11, § 10, da lei 9.504/97, também devem ser admitidas para as condições de elegibilidade".

Ressalte-se, ainda, que a jurisprudência da Corte superior eleitoral se firmou no sentido de que as modificações supervenientes que afastem a inelegibilidade podem ser consideradas em qualquer grau de jurisdição, mesmo que em grau de recurso extraordinário e até o momento da diplomação – ex vi recurso ordinário 9671, relatora min. Luciana Christina Guimarães Lóssio, publicado em sessão, data 23/11/16.

Relativamente a uma série de inelegibilidades fundadas em decisões ainda não transitadas em julgado, entre as quais se incluem as figuras decorrentes de condenação pela prática de crimes contra a administração pública (art. 1º, inciso I, alínea e, 1, da LC 64/90), considerada a própria natureza da restrição ao exercício da capacidade eleitoral passiva e a possibilidade de reversão da condenação (PINTO; PETERSEN, 2014, p. 181), há previsão específica de suspensão da inelegibilidade pelo órgão colegiado do tribunal ao qual caiba o julgamento do recurso interposto contra a decisão geradora de inelegibilidade, mediante provimento de natureza cautelar, desde que haja plausibilidade da pretensão recursal e pedido expresso de suspensão da inelegibilidade, quando da interposição do recurso, consoante disposto no art. 26-C, caput, da LC 64/90.

Com base no referido dispositivo, o STJ tem reconhecido de maneira ampla a possibilidade de afastamentos cautelares de inelegibilidades por meio do manejo de recursos especiais contra decisões que geraram o impedimento, com pedido expresso de suspensão de inelegibilidades, bem como por meio de outros mecanismos processuais inseridos no poder geral de cautela dos magistrados – MC 17.112/SP, rel. ministro Benedito Gonçalves, 1ª turma, julgado em 21/9/10).

Dessa forma, importante destacar que o disposto no art. 26-C, da LC 64/90 não afasta o poder geral de cautela, conferido aos magistrados conforme as regras do CPC, nos termos da súmula TSE 44: "O disposto no art. 26-C da LC 64/90 não afasta o poder geral de cautela conferido ao magistrado pelo CPC".

Com base no referido enunciado, a Corte duperior eleitoral consolidou o entendimento de que o art. 26-C, da LC 64/90 não impede que o relator ou o presidente do tribunal responsável pelo julgamento de recursos contra condenações que gerem inelegibilidade conceda medida cautelar para suspender-lhe os efeitos, conforme decidido no RE eleitoral 17635, julgado em 25/10/16.

Portanto, ainda que um pretenso candidato se encontre supostamente inelegível, o impedimento apenas pode ser declarado em sede de registro de candidatura, havendo inúmeros instrumentos processuais à disposição daquele que, em tese, esteja nessa situação em decorrência de condenações ainda não transitadas em julgado com o escopo de tentar suspender o impedimento, incluindo-se entre referidos instrumentos a previsão contida no art. 26-C, da LC 64/90 e o poder geral de cautela conferido aos magistrados.

Uma vez obtido provimento jurisdicional favorável a respeito da suspensão da inelegibilidade, tal decisão deve ser considerada para fins de afastamento do impedimento, ainda que tenha sido proferida após a apresentação do pedido de registro de candidatura, até a data da diplomação dos eleitos, na eventualidade da questão permanecer sub judice.

Outrossim, impende consignar que não só as decisões cautelares que afastem a inelegibilidade podem e devem ser consideradas, como também, por óbvio, eventual provimento do recurso interposto contra a decisão geradora de inelegibilidade.

Sendo o processo de registro de candidatura o meio processual hábil à verificação das condições de elegibilidade e da presença de possíveis inelegibilidades, a apresentação do pedido de registro de candidatura relativo a pessoas em tese inelegíveis, especialmente em virtude de decisões não transitadas em julgado, é uma faculdade decorrente do direito de petição e de acesso ao Poder Judiciário.

Mais que isso, apresentar-se como candidato e, consequentemente, também realizar a respectiva campanha eleitoral, é direito fundamental, protegido não apenas na Constituição da República, mas por todos os pactos e tratados internacionais de direitos políticos dos quais o Brasil é signatário.

Dessa forma, enquanto a Justiça eleitoral aprecia eventuais impugnações aos registros de candidaturas, é essencial à própria democracia que prossigam os atos de campanha eleitoral.

Até mesmo porque, os atos de campanha conferem ao corpo político a possibilidade de debater todas as alternativas e propostas, inclusive aquelas apresentadas pelos candidatos com registro eventualmente sub judice.

Não se ignoram as discussões inerentes à natureza do processo de registro de candidatura e a divisão entre posicionamentos que o consideram como um processo administrativo ou administrativo/jurisdicional (GOMES, 2016, p. 335). Todavia, tendo em vista que mesmo em processos administrativos deve ser garantido o devido processo legal para que alguém seja despojado de eventual direito, não há como se negar ao cidadão o acesso ao órgão competente para apreciar os pedidos de registro de candidatura, no caso a Justiça eleitoral, a fim de que esta se pronuncie, pela via processual adequada, sobre a ocorrência ou não de eventual inelegibilidade.

Nesse passo importante destacar também que ainda que possa reconhecer causas de inelegibilidade ou o não preenchimento dos requisitos de elegibilidade de ofício, a Justiça eleitoral deve garantir o devido processo legal, com contraditório e ampla defesa, com todos os recursos a ela inerentes, antes do indeferimento do pedido de registro de candidatura. Esse entendimento foi consolidado pelo TSE por meio da súmula 45: "Nos processos de registro de candidatura, o juiz eleitoral pode conhecer de ofício da existência de causas de inelegibilidade ou da ausência de condição de elegibilidade, desde que resguardados o contraditório e a ampla defesa".

Portanto, o eventual indeferimento do pedido de registro de candidatura antes da instauração do devido processo legal, da observância do contraditório e da ampla defesa, o que inclui o direito de manifestação do candidato e de seu partido sobre eventuais inconsistências pendentes sobre o pedido de registro, representaria ofensa aos direitos políticos do cidadão e violação a inúmeras garantias fundamentais previstas no texto constitucional.

Demais disso, se a pessoa em tese inelegível por decisão ainda não transitada em julgado e que tenha interposto recurso contra a eventual condenação não apresentar o pedido de registro de candidatura, não terá condições de posteriormente se beneficiar de eventual deferimento de suspensão cautelar de inelegibilidade ou de eventual provimento de recurso interposto contra a decisão geradora do impedimento, ainda que decisões benéficas ocorram entre o pedido de registro de candidatura e a diplomação dos eleitos.

A realização de campanha por candidatos sub judice

A lei 9.504/97 expressamente permite que o candidato que tenha o seu pedido de registro de candidatura impugnado e indeferido realize todos os atos da campanha eleitoral, inclusive com a possibilidade de acesso aos programas de rádio e televisão e com a manutenção de seu nome na urna eletrônica para a recepção de votos, enquanto a questão estiver sendo discutida judicialmente, condicionando a validade dos votos ao deferimento do pedido de registro de candidatura por instância superior (art. 16-A).

Na linha da jurisprudência do c. TSE, conforme se observa do julgamento dos EDs-Respe 13.925, da relatoria do min. Henrique Neves, de 28.11.16, "a decisão da Justiça eleitoral que indefere o registro de candidatura não afasta o candidato da campanha eleitoral enquanto não ocorrer o trânsito em julgado ou a manifestação da instância superior, nos termos do art. 16-A da lei 9.504/97".

Assentou-se no referido paradigma que "cabe relembrar que o art. 16-A da lei 9.504/97 tem provável origem na jurisprudência deste Tribunal que admitia a continuidade da campanha eleitoral na pendência do recurso contra o indeferimento do registro, 'por conta e risco' do candidato".

De modo que "na redação adotada pela lei 12.034/09, que introduziu o mencionado art. 16-A, a referência à expressão 'por conta e risco' foi suprimida, passando-se a admitir, portanto, a continuidade da campanha eleitoral para todos os efeitos, que ficam condicionados ao provimento do recurso".

A permissão decorre do fato de que a campanha eleitoral não se interrompe ou se suspende enquanto os pedidos de registro de candidatura e as respectivas impugnações são analisados pela Justiça eleitoral, incluindo a apreciação de eventuais recursos referentes ao deferimento ou indeferimento do registro.

Desse modo, e considerando o curto lapso das campanhas eleitorais no Brasil, impedir automaticamente aquele que tem o pedido de registro de candidatura impugnado ou mesmo indeferido pela instância originária de realizar campanha, estando a questão pendente de apreciação pela via recursal própria, poderia gerar um dano irreparável, prejudicando a igualdade de oportunidades no pleito, em detrimento do direito fundamental de se candidatar. Caso o recurso contra o indeferimento fosse provido, nada mais haveria que ser feito para reparar o prejuízo sofrido pelo candidato.

O tema foi muito debatido no pleito eleitoral de 2018, tendo em vista o indeferimento do pedido de registro de candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo TSE. Na oportunidade, por maioria, além de indeferirem o registro, os ministros do TSE impediram a realização de propaganda eleitoral e determinaram a retirada do nome do ex-presidente das urnas.

Posteriormente, no julgamento do recurso 0600919-68.2018.6.12.0000, o TSE fixou o seguinte entendimento: "A condição de candidato sub judice, para fins de incidência do artigo 16-A da lei 9.504/97, cessa, nas eleições gerais: 1 – com o trânsito em julgado da decisão de indeferimento do registro; ou 2 - com a decisão de indeferimento do registro proferida pelo TSE". Constou ainda da decisão que: "como regra geral, a decisão de indeferimento de registro de candidatura deve ser tomada pelo plenário do TSE".

Destarte, não tendo ocorrido o trânsito em julgado da decisão que indefere o pedido de registro de candidatura ou o indeferimento do registro pelo TSE, o candidato pode concorrer e praticar todos os atos de campanha, enquanto seu pedido de registro permanecer sub judice.

Dentro da prática de atos de campanha se incluem a arrecadação e o gasto de recursos, sejam eles privados ou públicos, e a possiblidade de acesso aos programas de rádio e televisão.

Impedir a movimentação de recursos ou o acesso ao rádio e televisão durante a discussão do pedido de registro inviabilizaria por completo a realização da campanha eleitoral, em detrimento do disposto no artigo 16-A, da lei das eleições e do direito fundamental do exercício da capacidade eleitoral passiva, com o risco de dano irreparável em caso do provimento de recurso apresentado contra o indeferimento.

Utilização de recursos públicos de campanha por candidatos sub judice: o indeferimento definitivo do registro constitui causa para ensejar pedido de ressarcimento dos valores aplicados ao erário?

Durante o julgamento da ADI 4650, o STF considerou inconstitucional a possibilidade de que empresas financiassem candidatos e partidos políticos. A decisão impactou diretamente na necessidade de estabelecimento de novas formas de financiamento das campanhas eleitorais, dado que as doações de pessoas jurídicas eram a maior fonte de receita até então – no pleito de 2014, elas doaram valor superior a R$ 3 bi a candidatos e partidos políticos.5

Nesse contexto, foi criado o fundo especial de financiamento de campanha, que para as eleições de 2018 teve o valor de R$ 1,7 bi. 1% do montante foi distribuído de maneira igualitária entre todos os partidos políticos registrados perante o TSE e os outros 99% de acordo com a representatividade das agremiações no Congresso.

Delia Ferreira Rubio lembra que a destinação de recursos públicos para as atividades político-partidárias não é novidade, tendo surgido depois da segunda guerra mundial, a partir da constitucionalização dos partidos políticos e do reconhecimento de tais entidades como essenciais às democracias contemporâneas (2005, p. 8).

Assim, uma das razões iniciais para a adoção de medidas de financiamento público foi a constatação de que era preciso investir na democracia, conforme observa Ana Cláudia Santano (2016, p. 104).

A utilização de recursos públicos no financiamento de partidos e candidatos não é novidade no Brasil. Com efeito, o fundo especial de financiamento de campanha (FEFC) passa a se somar aos recursos do fundo partidário e ao tempo de rádio e televisão – que constitui uma forma de financiamento público indireto, já que o tempo de antena cedido pelas emissoras decorre de compensação fiscal6.

Ocorre que a criação do FEFC num momento de crise de representatividade e econômica gerou uma série de questionamentos oriundos dos eleitores. Nesse sentido, muito tempo antes da criação do novo fundo público, Delia Ferreira Rubio escreveu que a transferência de elevadas somas de recursos públicos para candidatos e partidos políticos em momentos de dificuldade orçamentária e demandas sociais não assistidas, tende a aumentar a crise de representatividade (2005, p. 9)

Nesse contexto, surgem notícias de que a PGE adotará medidas para cobrar o ressarcimento de valores públicos aplicados por candidatos que tiveram os seus pedidos de registro de candidatura ao final indeferidos pelo Justiça eleitoral.7

Contudo, salvo melhor juízo, não há justa causa para respaldar tal pretensão, por inúmeros motivos. Inicialmente, ressalta-se que pela sistemática legal vigente, aquele que, em tese, pode estar inelegível tem a faculdade de pleitear o registro de candidatura, como decorrência do direito de petição e como garantia do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, bem como da materialização do exercício do próprio direito político, especialmente em casos nos quais a inelegibilidade decorra de decisões não transitadas em julgado e/ou submetidas a questionamento perante o Poder Judiciário.

Outrossim, a inelegibilidade somente é reconhecida pela Justiça eleitoral em sede de processo de registro de candidatura, havendo mecanismos cautelares para a suspensão da inelegibilidade que podem ser pleiteados a outros órgãos jurisdicionais, bem como a possibilidade de que no curso do pedido de registro de candidatura seja reconhecida qualquer decisão proferida por outro órgão jurisdicional que afaste a decisão, em tese, geradora de inelegibilidade.

Demais disso, a legislação expressamente permite a realização de campanha pelo candidato sub judice e, de acordo com o posicionamento consolidado pelo TSE, a permissão vai até o trânsito em julgado da decisão que indefere o registro ou até o seu indeferimento pelo próprio TSE.

Destarte, como a realização de qualquer campanha pressupõe a movimentação de recursos financeiros, dentro da sistemática legal vigente, não há como impedir o candidato, que tem a possibilidade de concorrer e se apresentar para o eleitor, ainda que como concorrente sub judice, arrecade e utilize recursos de origem pública.

A utilização de recursos do FEFC e do fundo partidário por candidatos nessas circunstâncias é lícita, como demonstra a interpretação sistemática do arcabouço legal, ressaltando-se que o artigo 16-A, da lei das eleições, inclusive, menciona a possibilidade de acesso a tempo de rádio e televisão por esses concorrentes e, como é cediço, o tempo de antena decorre de financiamento público indireto.

Permitir que o ministério Público Eleitoral e Poder Judiciário venham a sindicar toda e qualquer utilização de recursos públicos de campanha por candidatos sub judice põe em risco o exercício de direito fundamental relacionado à capacidade eleitoral passiva do pretenso candidato e o próprio jogo democrático, na medida em que se pode gerar uma situação de insegurança jurídica e prejudicar a igualdade entre os diversos candidatos, negando àqueles que ainda discutem licitamente o direito à candidatura a possibilidade de acesso a recursos públicos de campanha. O prejuízo seria evidente, especialmente em casos nos quais o indeferimento do registro fosse posteriormente revisto.

O argumento no sentido de que a busca pelo ressarcimento ocorrerá posteriormente ao trânsito em julgado do indeferimento do registro de candidatura, sem influência direta na aplicação dos recursos durante a campanha, não encontra amparo jurídico.

A uma, porque a simples ameaça de cobrança posterior já traz insegurança jurídica e pode fazer com que órgãos que não deveriam buscar a posição de protagonistas nas eleições, no caso representantes do ministério Público Eleitoral, influenciem matérias que não lhe são próprias.

A duas, porque tendo o recebimento e a aplicação de recursos ocorrido quando os atos de campanha eram permitidos, decorrendo a discussão do registro de candidatura de direitos fundamentais relativos ao direito de petição, devido processo legal e exercício da capacidade eleitoral passiva, não há título jurídico para que se busque posteriormente o ressarcimento, mormente porque a lei expressamente permite que o candidato sub judice realize campanha.

Desse modo, havendo dúvida acerca da inelegibilidade e necessidade de pronunciamento da Justiça eleitoral sobre a questão em sede de registro de candidatura, o indeferimento posterior do pedido de registro com trânsito em julgado não torna os antecedentes atos de campanha ilícitos ou irregulares, não constituindo, em regra, justa causa para o pedido de ressarcimento dos valores aplicados por aquele que teve a candidatura indeferida.

Exigir que o candidato sub judice deixasse de utilizar recursos públicos a pretexto de que poderia ter a candidatura ao final indeferida, seria atribuir-lhe o exercício de futurologia em detrimento dos já mencionados direitos fundamentais e garantir pela metade o exercício do direito de continuar no pleito até o trânsito em julgado do indeferimento do pedido registro.

Por outro lado, é preciso ainda acrescentar que os princípios da eficiência e economicidade, regentes da atuação da administração pública, não podem ser transportados de maneira estanque para o direito eleitoral.

Se do ponto de vista da administração os aludidos princípios determinam que as atividades públicas sejam desenvolvidas de maneira a se alcançar os desideratos públicos de forma econômica e com a exigência de que para os gastos realizados seja alcançada uma determinada finalidade pública muitas vezes tangível (ex.: a execução de obra pública), do ponto de vista da aplicação de recursos públicos em campanha eleitoral a finalidade última é intangível, referindo-se à garantia do debate democrático, sem, obviamente, a exigência de vitória no pleito.

Assim, se no campo do direito administrativo se exige que os dispêndios realizados com o escopo de executar uma obra pública conduzam a sua conclusão de maneira eficiente e econômica, na aplicação de recursos públicos em campanha se exige que os candidatos ou partidos políticos - que não integram a administração pública – empreguem os recursos na disputa eleitoral de modo a permitir o debate democrático e a informação do eleitor.

Sendo os recursos aplicados em campanha, de modo a permitir o debate de ideias, não há como se exigir qualquer outro resultado e a utilização de recursos é lícita.

Desta maneira, salvo melhor juízo, a única forma de mudar o cenário seria por meio de alteração legislativa que adiantasse e estabilizasse os pedidos de registro de candidatura, como chegou a ser discutido na última minirreforma eleitoral, pois nessa hipótese já se saberia de antemão quem cumpriria os requisitos para se candidatar e realizar campanha

Conclusões

A compatibilização entre as inelegibilidades e o exercício da capacidade eleitoral passiva exige parcimônia na restrição dos direitos políticos, considerados os impactos que todos os impedimentos geram sobre a universalidade do voto, com a possibilidade, inclusive, de que pela via da judicialização da política os verdadeiros protagonistas do processo democrático (eleitores, candidatos e partidos políticos) sejam substituídos ou limitados por meio da utilização de instrumentos jurídicos.

Ainda que um pretenso candidato se encontre supostamente inelegível, o impedimento apenas pode ser declarado em sede de registro de candidatura, havendo inúmeros instrumentos processuais à sua disposição com o escopo de tentar suspender a inelegibilidade, especialmente quando ela decorre de decisões judiciais ainda submetidas a recursos.

Portanto, é legítimo que um indivíduo em tese inelegível, especialmente em virtude de decisões ainda não definitivas, apresente o pedido de registro de candidatura e se utilize de todos os instrumentos jurídicos previstos pela legislação de regência para tentar suspender ou reverter a inelegibilidade, devendo qualquer provimento jurisdicional favorável nesse sentido ser considerado no processo de registro de candidatura.

Destarte, a legitimidade do pedido de registro de candidatura nessas circunstâncias decorre da natureza política do direito de se candidatar, catalogado constitucionalmente inclusive como fundamental, de princípios inerentes ao Estado democrático de direito, como o devido processo legal, o contraditório, e a ampla defesa, e do próprio direito de petição.

Do mesmo modo, a legislação permite que o candidato sub judice realize todos os atos de campanha. O permissivo legal, de acordo com tese fixada pelo TSE para as eleições gerais de 2018, se estende até o trânsito em julgado do indeferimento do pedido de registro de candidatura ou até o pronunciamento do TSE sobre a matéria.

Portanto, sendo lícita a realização de campanha por candidatos sub judice, em regra, o posterior indeferimento definitivo do pedido de registro de candidatura não torna ilícitos os antecedentes atos de campanha e não constitui justo título para que seja pleiteada a devolução de recursos públicos aplicados por candidatos nessas circunstâncias.

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1 Artigo resumido a partir do originalmente publicado na Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistemas Político.

2 'Ministério Público Eleitoral vai pedir ressarcimento de dinheiro público usado por candidatos inelegíveis (Atualizada).'

3 Art. 14 [...]

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

4 REspe 25725/SE, rel. min. Gilmar Mendes, DJe de 18.11.14.

5 Clique aqui.

6 Lei 9.504/97: Art. 99. As emissoras de rádio e televisão terão direito a compensação fiscal pela cedência do horário gratuito previsto nesta lei.

7 'Ministério Público Federal cobrará ressarcimento de candidatos inelegíveis.'

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SANTANO, Ana Cláudia. O Financiamento da Política. Teoria geral e experiências no direito comparado. 2. ed. Curitiba, 2016: Íthala.

TOMELIN, Georghio. O Estado Jurislador. 1 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 31.

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*Joelson Dias é advogado, ex-ministro substituto do TSE, mestre em Direito pela Universidade de Harvard (EUA), vice-presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da OAB e membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

*Michel Bertoni Soares é advogado, mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com dedicação a pesquisas relacionadas a financiamento eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

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