Migalhas de Peso

A arbitragem e o contrato de seguro privado

Quando a arbitragem vier a ser utilizada como meio de solução de pendências no campo do seguro, sentenças desastrosas poderão ser proferidas tanto quanto no Judiciário, no caso da ignorância dos árbitros dos aspectos peculiares e complexos deste instituto.

3/12/2018

Entre os problemas jurídicos que podem ser resolvidos por meio da arbitragem conta-se o contrato de seguro, uma vez que nele são identificados direitos patrimoniais disponíveis. É possível aceitar que tal característica não faça parte dos chamados seguros obrigatórios porque neles a intenção do legislador é tornar mais fácil a recomposição do patrimônio afetado pelo evento. Não seria modalidade de contrato em que a autonomia privada tem prioridade, mas de dictatum, terminologia que encontramos em Messineo no seu conhecido “Il Contrato in Genere”.

Duas grandes vertentes podem ser identificadas no tocante aos segurados: a dos avessos a riscos, que muitos qualificam como consumidores e a dos garantidores, as seguradoras que, por força da aplicação de regras atuariais, são profissionais, vistos como empresários. No caso dos primeiros à tutela “normal” desse contrato agrega-se o CDC com todas as implicações legais correspondentes, muitas vezes desnaturadas por um tratamento esquizofrênico do Poder Judiciário que de tal instituto mostra saber nada ou muito pouco. Os exemplos dessa atuação desnaturada são frisantes, como é o caso da negativa do reconhecimento da situação de agravamento de risco quanto a um segurado que resolveu escalar a estrutura de uma alta torre metálica para tirar uma fotografia mais abrangente da vista que dali poderia descortinar. Tendo sofrido uma queda e sido acionada a seguradora para pagar a indenização correspondente (concedida), a decisão da Corte que julgou o caso foi no sentido de que qualquer pessoa teria tomado a mesma iniciativa para o fim em vista, não tendo se caracterizado o agravamento do risco de acidentes1. Ou seja, ignora-se o cálculo atuarial e, portanto, a correta precificação do risco que, eventualmente, será garantido. Lembre-se que o segurador não é o está em estado de oferta permanente. A oferta é feita pelo interessado e pode ser recusada.

Ao ser adotada a arbitragem objetivando a solução de conflitos nesse campo, colocam-se alguns problemas, sendo o primeiro deles relativo ao fato de que tal contrato geralmente não merece tratamento algum no curso de bacharelado da maioria das faculdades de direito e, quando presente, seu tratamento mais aprofundado se perde no meio de muitos outros contratos julgados mais importantes. Mas, sobretudo, por falta de conhecimento do próprio ministrante no que tange à atuária, no mais das vezes deixada de lado no curso ministrado. De outra parte, são poucos os professores de Direito Comercial que verdadeiramente conhecem o instituto, muitos deles dotados de visão simplista, especialmente no que tange à chamada lei dos Grandes Números, que nada mais é do que aplicação da ciência atuarial. Reconhecer esse fato é extremamente importante para as partes em uma arbitragem quando se dispõem a escolher os árbitros e quanto a estes no momento em que fazem a indicação do terceiro membro de um tribunal arbitral a ser composto.

Por havermos ministrado algumas vezes a disciplina de contratos no curso de graduação e, por duas vezes, no de pós graduação da Faculdade de Direito da USP2 ficamos grandemente surpreendidos com nossa própria ignorância, pois o nível de complexidade que progressivamente identificamos ia muito além do conhecimento adquirido nos anteriores anos de estudo do Direito Comercial, que não foram poucos. Tendo contado no curso de pós graduação com alunos que atuavam no mercado de seguros (junto ao órgão regulador e em escritórios de advocacia e seguradores/resseguradores) foi possível mergulhar nos meandros desse instituto não tendo aprendido tudo, é claro, mas tendo enriquecido os conhecimentos a seu respeito em grau significativo3. Passemos a examinar alguns pontos fundamentais do contrato de seguro aos quais está alheia boa parte da comunidade jurídica.

Primeiro, o contrato de seguro tem natureza unitária, conforme foi estabelecido por Tullio Ascarelli, significando dizer que sua teoria geral é a mesma tanto para os contratos relativos às pessoas (vida, integridade física e saúde), como em relação aos seus bens materiais e imateriais, ou seja, seguros de pessoas e seguros de danos. Os bens têm um valor que pode ser estimado de forma objetiva. A vida, a integridade física e a saúde (que não têm preço, como se costuma dizer), podem merecer do interessado em uma garantia por meio do seguro correspondente uma avaliação subjetiva, que tem por critério a capacidade de pagamento do prêmio que venha a ser estabelecida dentro de determinados patamares da indenização pretendida. Esses fatores, de forma muito simplificada, permitiram a construção da referida natureza unitária.

Observe-se que, como espécie, o seguro de pessoas tem como objetivo garantir que se a pessoa perder a capacidade laborativa – obter recursos para seu sustento e o de sua família – seja por falecimento ou por problemas físicos, o seguro opera como espécie de poupança, seja ele seguro de vida por morte ou de sobrevida.

Um ponto em discussão diz respeito ao pagamento do seguro no caso de suicídio do segurado. De um lado apresenta-se a regra do CC de 2002, que adotou um critério temporal objetivo de dois anos no artigo 798, caput, diferentemente do art. 1.440 do C. Civil de 1916, referindo-se este ao suicídio premeditado, que excluía o pagamento do valor devido. São conhecidas as infindáveis discussões sobre este critério.

Segundo, obrigatoriamente contratados junto a uma empresa especializada que atual segundo regras próprias – trata-se de atividade regulada -, as seguradoras não se encontram em estado de oferta permanente. Neste sentido o seguro não pode ser reduzido a uma mercadoria que se encontra na prateleira de um supermercado, dali retirada pelo comprador que a apresenta no caixa para a efetivação da sua compra. Verifica-se por tal motivo uma aparente inversão da forma de contratação do seguro: é o interessado que faz uma proposta para a seguradora – por intermédio geralmente de uma corretora de seguros – que será analisada a partir das informações prestadas e, quando dentro dos limites próprios do instituto, poderá ser aceita por aquela. Daí a exigência de máxima boa-fé na prestação das informações feitas pelo interessado. Sem isso não há como aplicar as regras atuariais.

É claro, portanto, que a seguradora pode recusar uma proposta, não se reconhecendo abusividade quando ela entende que deva fazê-lo em vista da situação do caso concreto.

Uma proposta será certamente recusada quando o objeto do contrato for qualificado ou classificado como incerteza e não risco, outro requisito fundamental desse contrato. Uma explicação muito superficial nos dirá que o risco é passível de mensuração por meio de cálculos estatísticos, a tal lei dos Grandes Números - fundados na quantidade e qualidade das informações que podem ser objetivamente analisadas. Por exemplo, uma seguradora é capaz de identificar com grande margem de precisão quantos automóveis de determinada marca e de valor serão furtados em algum bairro de uma cidade em certo lapso temporal. O índice resultante dos cálculos correspondentes indica o grau de risco de ocorrência do evento (dano) e o valor das indenizações que deverão ser pagas, o que propicia a precificação do risco - a ser pago pelo segurado.

Não podemos nos esquecer de que a mensuração do risco depende de um nível ótimo de informações à disposição da seguradora, cabendo ao segurado agir com lisura e ética em face da seguradora, passando-lhe todas aquelas de natureza positiva ou negativa que possam afetá-lo. Aqui se exige o exercício da boa-fé contratual em sua mais alta expressão. Por exemplo, ao pleitear um seguro-saúde, é o proponente obrigado a dar conhecimento à seguradora, de que em sua família existem inúmeros casos de diabetes, de infartos do miocárdio, de câncer do fígado, etc. Isto porque a medicina já apurou que estas doenças têm um componente relacionado ao DNA, que passa de pais para filhos, netos e demais descendentes. Esconder tal informação da seguradora viola do dever de boa-fé e, no momento em que o sinistro acontecer, ao tomar conhecimento do vício informacional correspondente, a seguradora poderá, justificadamente, negar a indenização pretendida.

Veja-se que alguém em uma das situações acima não terá necessariamente sua proposta negada caso dê todas as informações correspondentes. A diferença estará no cálculo do prêmio, na medida em que o risco se revelar de maior amplitude ou seja, há quase certeza de que o evento – perda de qualidade de vida - ocorrerá.

No caso do seguro empresarial, não deve ser negado à seguradora o fato de que o estabelecimento do proponente está situado ao lado de uma fábrica de explosivos regularmente instalada, dado o risco de explosão que reconhecemos ser notório. E ainda dentro do mesmo exemplo, deve ser informada a instalação de uma empresa dessa natureza se ela ainda não existia quando o contrato foi celebrado já que um novo risco surgiu, de forma que o equilíbrio contratual ficou desequilibrado em detrimento da seguradora, na verdade da mutualidade formada pelos prêmios cobrados pela seguradora para fazer frente às garantias conferidas.

Observe-se que neste tipo de contrato a assimetria informacional é clara. De um lado o proponente não detém as informações atuariais que suportam a operação e, muitas vezes, ignora que existam. Já a seguradora não dispõe de informações sobre o segurado em relação aos riscos que este pretende obter mediante a garantia. A seguradora exerce atividade regulada e, uma vez aceita a proposta, fixará o valor do prêmio sem abuso, fundado nos cálculos atuariais disponíveis. Todavia a assimetria informacional enfrentada pela a seguradora depende de que o proponente, eventual futuro segurado, preste de boa-fé todas as informações relevantes, ou seja, responder ao questionário com a máxima boa-fé.

De outra parte, por mais que a previsão do tempo tenha se aperfeiçoado ela jamais chegará a se colocar no plano do risco, remanescendo no da incerteza, reconhecendo-se que muitos fatores àquela relacionados são intrinsecamente imponderáveis. E no momento em que uma seguradora aceita assumir o pagamento de indenização no caso de uma prima-donna perder a sua voz e não mais puder cantar óperas, ela estará, no fundo, assumindo uma aposta e não fazendo um contrato de seguro. Isto porque neste caso não é possível fazer um cálculo estatístico de sinistro dessa espécie. De um lado porque o universo de segurados é pequeno e não homogêneo, de outro porque não se pode garantir que não haja oportunismo por parte de quem tenha feito o seguro. Impossível, conforme entende o vulgo, atender à lei dos Grandes Números.

Outro elemento essencial desse contrato é o interesse, o objeto sobre o qual o risco incide (pessoa ou bem). Trata-se de uma relação de valor do interessado, lícita e legítima. Portanto é necessária uma ligação do segurado com o bem. No caso de coisas ocorre nas situações de propriedade e de posse. Quanto a pessoas deve verificar-se uma relação daquelas no tocante à sua integridade física (proteção na forma de uma indenização em relação à saúde ou contra acidentes) ou à vida. Neste último caso o interesse legítimo é que próprio segurado ou seus familiares não se vejam em situação de penúria. Quanto a estes presume o direito que seu interesse é o da preservação a vida do seu parente e não, como nos romances policiais, a busca premeditada de sua morte. Portanto, o não é legítimo ao médico oportunista, que atende um paciente terminal, fazer seguro de vida deste em seu próprio favor.

Neste breve resenha não se pode esquecer do aspecto essencial da mutualidade, presente nos contratos de seguro. Isto diz respeito à característica segundo a qual um grande número de pessoas sujeitas ao mesmo risco que, todavia, não afetará a todas nem, de regra, no mesmo tempo, e que pagam prêmios às seguradoras, de maneira a que esses recursos formem um fundo destinado a cobrir os danos sofridos por alguns dos segurados. As seguradoras são, dessa forma, as administradoras dos fundos compostos por meio da mutualidade e isto não tem sido levado em conta pelo Judiciário em muitas situações. Uma das mais conhecidas corresponde à determinação de uma cobertura em seguro saúde não prevista no contrato, a pretexto de se atender ao direito à saúde previsto na Constituição Federal. Esse pagamento tem o efeito de desequilibrar a relação econômica estabelecida e, dessa forma, afetar a mutualidade. O efeito perverso de tais decisões não causará efeitos imediatamente para os demais segurados, mas certamente será computado no cálculo do prêmio quando da renovação do seguro o que os tornará, evidentemente, mais caros.

Outra ponderação fundamental diz respeito ao completo descabimento no contrato de seguro do chamado adimplemento substancial por parte do segurado, como justificativa para que a seguradora cumpra o dever de garantia. Esta teoria (invenção de uma doutrina aplicável principalmente ao CDC - Código de Defesa dos Coitadinhos), tem sido utilizada em situações, por exemplo, em que de cem parcelas da compra de um imóvel o adquirente adimpliu noventa e cinco, tendo de deixado de pagar as cinco restantes porque independentemente da sua vontade, experimentou dificuldades econômico-financeiras. Assim sendo, é necessário segundo essa visão, que tal circunstância seja reconhecida em seu favor, considerando-se que adimpliu substancialmente as suas obrigações até o momento e, portanto, não impõe ao credor perda significativa que justifique a rescisão do contrato. No caso do seguro o art. 763 do C.Ci. é claro em dizer que não tem direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação. Tão somente a seguradora deve tomar as medidas adequadas em tal sentido pela notificação do segurado.

Se a referida teoria pode estar fundada em algum parâmetro jurídico – a se descortinar – no campo do seguro ela mostra-se claramente inaplicável. Isto porque a garantia outorgada pela seguradora é integral ao longo de todo o tempo de vigência do contrato, fundada estritamente na mutualidade. A partir do momento em que esse parâmetro deixa de ser atendido, todo o equilíbrio econômico-financeiro daquela carteira de seguros fica comprometido. E não se diga que duas ou três prestações inadimplidas pelo segurado causarão qualquer dano significativo ao fundo formado pela mutualidade de segurados. Primeiro porque para ser viável esse instituto tem como suporte cálculos que são revistos periodicamente a fim de promover a higidez do sistema e, para ser viável, sua construção dá-se estritamente segundo o modelo “pão pão, queijo queijo”, como diziam nossas avós. Depois porque, aberta uma fresta na muralha de uma represa, ela certamente virá abaixo, não havendo remendo que a salve.

Em conclusão. Quando a arbitragem vier a ser utilizada como meio de solução de pendências no campo do seguro, sentenças desastrosas poderão ser proferidas tanto quanto no Judiciário, no caso da ignorância dos árbitros dos aspectos peculiares e complexos deste instituto. Oxalá que isto não aconteça.

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1 Essa decisão afronta claramente o princípio do agravamento do risco, ainda que no art. 768 do C.Ci. se encontre a expressão “agravar intencionalmente”. Isto porque a atitude do segurado no caso foi mostrou-se como caso de dolo preterintencional, caracterizado por uma atitude claramente irresponsável, a mesma do motorista que disputa um racha na avenida de uma cidade, tendo atropelado e matado alguém na velocidade de 150 quilômetros por hora.

2 Ao lado da grata companhia do professor Marcos Paulo de Almeida Salles.

3 Os trabalhos desses cursos, junto com textos dos professores foram reunidos em um livro que se encontra no prelo.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

*Rachel Stajn é advogada em São Paulo. Professora Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito de São Paulo.

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