O protocolo de família como instrumento jurídico de continuidade da empresa
J. Miguel Silva*
Entretanto, apesar destas empresas serem a base do desenvolvimento das economias, constata-se que um número muito importante de empresas familiares desaparece todos os anos por não terem conseguido vencer dificuldades relacionadas com a sua gestão e com a preparação da sucessão para as gerações seguintes.
É consenso entre os estudiosos da matéria e pautados em pesquisas recentes que somente 30% (trinta por cento) das empresas familiares sobrevive à primeira geração e, das que sobrevivem, apenas 10% a 15% passam à segunda geração e apenas 5% (cinco por cento) consegue chegar a terceira geração.
Outro consenso: a maior dificuldade da empresa familiar é a miscelânea que se faz, com repercussões jurídicas, sobre os institutos família-propriedade-empresa. Pior ainda, é a empresa fazer ecoar as discordâncias latentes de seus membros consangüíneos nas instalações da organização fazendo dos negócios, uma extensão das suas casas. Neste ponto, é imperioso lembrar as palavras amargas de Aristóteles Onassis que devem, a todo custo, serem afastadas de nossa realidade: “Família é o grupo de pessoas unidas pelo sangue e o amor, mas separadas pelo dinheiro.”
Não importando qual o cenário da organização para a sucessão, harmônico ou pautado por impasses e, considerando a importância da empresa familiar, é preciso que lhe seja conferido um tratamento especial pela legislação, sob pena da sua continuidade ser comprometida, causando dano não só a família envolvida, mas também para a sociedade, dada a sua relevância econômica.
Neste contexto, é elogiável a Espanha conferir um tratamento especial às empresas familiares, visando a sua continuidade, regulamentando especificamente este tipo de empresa, inclusive recomendando que a Administração Pública adote políticas de informação para melhor desempenho das empresas familiares, com elaboração do Protocolo Familiar, que é considerado um instrumento jurídico adequado para regulamentar a problemática que estão inseridas.
Ressalte-se que no ordenamento jurídico internacional, nem mesmo o europeu conceitua o que seja empresa familiar, porém, analisando a sua natureza jurídica, temos que estas empresas são identificadas pelas características que apresentam, quais sejam:
(i) que uma ou mais famílias tenham uma participação relevante (normalmente a maioria) ou influente do capital social da empresa familiar;
(ii) que algum membro da família exerça a administração da empresa;
(iii) que exista uma intenção de continuidade da permanência da propriedade e gestão desta para as gerações seguintes.
Desta forma, em razão da importância sócio-econômico das empresas familiares, a legislação espanhola cuidou de regulamentá-las, por intermédio da Lei nº. 7/2003, “Sociedad Limitada Nueva Empresa”, que estabelece as condições e requisitos para elaboração dos Protocolos Familiares.
Pois bem. No Brasil as empresas familiares merecem o mesmo tratamento dispensando na Europa, em especial na Espanha, pois, há muito, percebe-se a dificuldade da família manter a empresa, seja por conflitos internos de gestão, seja porque não tem um tratamento jurídico específico que confira tranqüilidade aos fundadores, sucessores, funcionários, fornecedores e demais interessados na continuidade com sucesso da organização.
Em razão do nosso ordenamento jurídico não conferir um tratamento próprio às empresas familiares, gera uma confusão patrimonial entre o que pertence a família e o que pertence a empresa e o que se verifica não é uma intenção clara de sucessão e sim de propriedade.
Infelizmente o nosso legislador ainda não acordou para a problemática inerente a empresa familiar e o nosso Código Civil só trata da empresa sem deferir peculiar atenção à esta, bem como da sucessão como forma de aquisição da propriedade, então estas empresas se valem do acordo de quotistas, que é instrumento idôneo a formar grupos coesos de interesse no seio da sociedade empresária limitada, decorrente do acordo de acionistas aplicável na sociedade anônima.
A maioria da doutrina pátria, por exemplo, Celso Barbi Filho e Waldírio Bulgarelli, sob a égide da atual ordenação das limitadas, consagra a validade, vigência e eficácia do Acordo de Quotistas, fundamentada na aplicação supletiva do art. 118 da Lei nº. 6.404/76 (clique aqui - Lei das Sociedades por Ações), embasados no art. 1.053 do Código Civil.
Assim, Waldírio Bulgarelli afirma que "o acordo de quotistas não altera o contrato social - ao menos nas disposições essenciais - nem ofende em princípio o direito de terceiros, sendo destarte válido, vigente e eficaz; também não se trata de um contrato oculto entre todos os sócios infletindo sobre o contrato ostensivo, e sim, um ajuste entre sócios a respeito do exercício do direito de voto e outras avenças complementares.”
O projeto de Código Civil não cuidou do tema, que veio a ter lugar num único artigo do anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada, em trâmite no Congresso Nacional. Veja-se:
"Art. 39. Os sócios poderão celebrar acordo de quotistas, que, para valer contra terceiros, deverá ser arquivado no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, ensejando a execução específica.
Parágrafo único. Aplica-se ao acordo de quotistas o regime legal do acordo de acionistas previsto na Lei das Sociedades por Ações."
Saliente-se que, a despeito de constar no anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada, o Código Civil nada dispõe sobre o citado Acordo, limitando-se a tratar da aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas nas sociedades constituídas sob a forma de limitada.
Feitas estas considerações, verifica-se que o Acordo de Quotistas, não foi tratado no nosso Código Civil e nem tampouco foi conferido tratamento especial às empresas familiares, entretanto, assim como é largamente utilizado o “Acordo de Quotistas” pelos sócios comuns, se faz necessário utilizar o “Protocolo de Família” que tem natureza jurídica análoga como instrumento de viabilização da continuidade da empresa, destarte, citado protocolo é um refinado “Acordo de Quotista-Sucessores”.
Portanto, insta asseverar que o “Protocolo de Família”, poderá ser firmado com base no art. 421 da Lei nº. 10.406/2002 (clique aqui), (Código Civil), segundo o qual “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”, portanto, sua natureza de instrumento jurídico privado tem o fito de regular as relações acordadas entre as partes, ou seja, um pacto parassocial que norteará a vida da sociedade familiar, regrando a sucessão patrimonial, societária e administrativa, com o propósito de dar longevidade a organização.
Posto isto, somos levados a concluir que o Protocolo de Família é um instrumento jurídico que pode ser utilizado como uma poderosa ferramenta na administração de conflitos, quando da transição patrimonial de uma geração para outra, buscando sempre a longevidade da empresa.
Diferentemente do Acordo de Quotistas, o Protocolo de Família, é um acordo firmado entre os sócios (atuais e futuros), posto que este se presta também a exercer um papel coercitivo moral à medida que se dispõe sobre os papéis a serem exercidos pela família, enquanto proprietários e sucessores, sobretudo a importância de se separar estes papéis para que não gere confusão patrimonial e comprometa a sobrevivência da empresa.
Desta forma, o Protocolo de Família é um acordo firmado entre os sócios-herdeiros (atuais e futuros), objetivando regrar a sucessão patrimonial e a gestão da sociedade e a sua relação econômica e profissional com a família, visando:
(i) a continuidade com solidez e eficiência por meio dos sucessores;
(ii) definir âmbito de atuação da família e dos gestores, evitando interferências indesejadas;
(iii) postura a ser adotada pelos membros familiares em relação a sua própria vida patrimonial, evitando repercussões na sociedade;
Considerando as premissas acima dispostas, dentro do princípio da autonomia da vontade, os sócios-herdeiros poderão pactuar, observando os limites da lei e da função social do contrato, as seguintes diretrizes, visando a longevidade da empresa:
(i) como a família posicionar-se-á diante de problemas ou conflitos previsíveis, dispondo a tratativa a ser dispensada;
(ii) a instituição ou não de um conselho de família, visando dar soluções as questões familiares que possam prejudicar a empresa;
(iv) o efeito ou não perante terceiros do Protocolo Familiar;
(v) condições para um sócio-herdeiro ocupar o conselho de administração, a diretoria da sociedade e os critérios a observar após a posse;
(vi) forma que se operará a transmissão de participação entre os membros da família;
(vii) as condições e critérios para a sociedade ser gerida por profissionais externos;
(viii) sistemática de distribuição de lucros e de aporte de capital;
(ix) postura a ser adotada pelos membros em relação ao regime matrimonial e sucessório; e
(x) quorum para modificar o Protocolo de Família.
Saliente-se que, as disposições acima citadas, que podem ser acordadas no Protocolo de Família, não são exaustivas, pois considerando o contrato privado, pessoal e atípico do citado instrumento, este não tem um conteúdo predefinido, pelo contrário, fica a critério das partes estabelecerem as regras que entenderem e que possam evitar contenda para a sociedade, que é o que se busca proteger em primeiro plano, desde que não ofenda os interesses reservados legalmente.
Por todo o exposto, verifica-se que o Protocolo de Família é um instrumento jurídico eficaz e louvável que pode ser utilizado como ferramenta eficaz na prevenção de litígios e na eventualidade destes, as soluções a serem dadas, em que a família empresária acorda sobre a forma de sucessão e gestão da sociedade, tendo como bem sagrado e maior, a continuidade saudável da empresa, no transcorrer das gerações.
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*Advogado do escritório Miguel Silva Associados
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