Hoje completam-se dez anos que o professor José Joaquim Calmon de Passos deu seu passo para fora do círculo do tempo.
Soteropolitano de 16 de maio de 1920, ele escreveu sobre os temas fundantes da ciência processual. Não foi um homem para questões pequenas.
“Da Jurisdição”, seu primeiro livro, foi publicado em 1957, quando ele contava com 11 anos de conclusão da graduação em Direito. Àquela altura, já havia sido promotor de Justiça em Remanso, Santa Inês e Amargosa, no interior da Bahia, retornando a Salvador em 1954. Também já havia logrado aprovação para a livre docência da Cadeira de Prática de Processo Civil e Comercial da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade da Bahia, vaga a que concorrera no mesmo ano em que retornou à capital.
Logo no capítulo inicial, intitulado “Noções Prévias”, o jovem professor explicava a sua visão acerca da função do Direito na interação social e como o Processo Civil aí se insere. A percepção da relação do fenômeno jurídico com o poder e com a justiça se desdobraram ao longo dos seus oitenta e oito anos, explicitada nas suas aulas, nas palestras e nos textos que viera a escrever no decorrer da vida, como em “Direito, Poder, Justiça e Processo – Julgando os que nos Julgam”, cuja 1ª edição fora publicada em 1999, pela editora Forense (RJ), revelando a sua maturidade sob as perspectivas jurídica, política e filosófica, enriquecida pela intensa atuação profissional, inclusive à frente da Procuradoria-Geral de Justiça da Bahia e da Seccional baiana da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ele atribuía ao Direito a função de garantir as liberdades alcançadas no espaço político, mas não a de conquistá-las. Na sua visão, era nesta arena que a sociedade se movia, estabelecendo os limites entre dominantes e dominados. Ao profissional da área jurídica caberia a importante função de guardar essa fronteira, enfrentando a sua transgressão. No seu modo de ver, as transformações sociais não seriam obtidas pelas reformas legislativas, muito menos pelo processo judicial. Recusava a ideia de que o Direito possuiria um papel modificador. Com isso, não pretendia minimizar a sua relevância. Tampouco negava o seu conteúdo político. Pelo contrário, afirmava-o expressamente como elemento de instrumentalização que busca assegurar a convivência social num modelo previamente posto. Para Calmon, ambos os combates – o político e o jurídico – eram importantes, porém diferentes. O Direito impediria a dominação que ultrapassa os limites estabelecidos naquele outro âmbito.
Em 1959, veio à lume “A ação no direito processual civil brasileiro” (publicado pela Livraria Progresso Editora, Salvador), tese que apresentara para o concurso à Cátedra de Direito Judiciário Civil da Faculdade de Direito.
Também enfrentou as invalidades processuais, no seu “Esboço de Uma Teoria das Nulidades Aplicadas às Nulidades Processuais”, trazido a público pela editora Forense (RJ) em 2002.
Foi no ano anterior que o conheci pessoalmente, por intermédio de Marcelo Cintra Zarif. Os dois eram amigos. Marcelo, que fora meu professor de Processo Civil e de quem fui Monitor na graduação, recomendou-me que fizesse a “Especialização de Calmon”. Tornei-me seu aluno.
Calmon não só coordenou o curso de Pós-Graduação por mais de vinte anos – inicialmente na Faculdade de Direito da UFBA; depois, na UNIFACS e, finalmente, no CCJB –, como também ministrou a maior parte das aulas, que, aliás, eram ainda melhores do que os livros.
Foi após uma delas que o procurei. Era maio de 2002. Eu havia encontrado um tema para a seleção do Mestrado da UFBA – onde ele integrava o quadro docente – e queria ser seu orientando. Pretendia defender que a antecipação da tutela por incontrovérsia parcial do pedido ou de parcela dos pedidos cumulados – recém inserida no CPC então vigente – consistiria num provimento definitivo, e não provisório, como acontecia com as demais hipóteses previstas na legislação.
“Onde já se viu antecipação da tutela definitiva?!” – ou algo muito próximo disso –, foi a sua negativa peremptória.
Dois dias depois, ele me chamou no final da aula e pediu que eu explicasse de novo “aquela ideia”.
Ali começava a orientação da minha dissertação, defendida em 2006.
A partir desse vínculo, passamos a compartilhar também a sala de aula e a coordenação do seu tradicional curso de Especialização em Direito Processual no CCJB.
Além das obras já mencionadas, a evolução do seu pensamento também pode ser encontrada nas diversas edições dos seus “Comentários ao Código de Processo Civil” (ed. Forense), que foram publicadas por trinta anos – de 1974 (1ª edição) a 2004 (data da 9ª e última edição). Calmon não se repetia. Cada edição é um livro diferente, resultado da sua contínua mudança na maneira de perceber o Direito.
Em outros trabalhos, cuidou de temas mais específicos, nunca abandonando a sua peculiar verve, como em “Mandado de Segurança Coletivo, Mandado de Injunção e Habeas Data: constituição e processo”, “Inovações no Código de Processo Civil” e “A lei 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Questionamentos e perplexidades (A montanha que pariu um rato)”, respectivamente publicados em 1989, 1995 e 2007. Todos pela editora Forense.
Em 2012, o esforço de sua filha Eridan Passos em reunir os seus últimos textos trouxe o “Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo – Reflexões de um Jurista que trafega na contramão” (ed. JusPodivm, Salvador). Longe de ser uma revisão, é um novo livro, em que o autor trata d’“Os Pilares do Pensamento”, trazendo reflexões sobre o Direito, a Ética, o Processo e a Função Jurisdicional; do “Espaço onde opera o Direito: pressupostos econômicos, políticos e ideológicos”; da “Democracia e Poder Judiciário: uma conspiração insidiosa”; d’“O Operador do Direito”, encerrando com um capítulo intitulado “Para Além do Imediato”.
Em 2014 e em 2016, seguiram-se as coletâneas dos seus “Ensaios e Artigos” (ed. JusPodivm), organizados em dois volumes.
Todos esses registros contribuem para manter animadas não só as suas ideias – que marcaram gerações de professores, estudantes e profissionais do Direito –, mas, sobretudo, os seus ideais. Fiel às suas convicções, dedo em riste ao expressar-se publicamente, defendia-as com veemência. Seu discurso era mobilizador.
A inquietude que o movia nestes espaços não o impedia, de outro lado, de estar sempre atento e ter uma postura amiga na convivência pessoal. Disposto a novas reflexões, punha-se a ouvir e a conversar serenamente, recebendo as pessoas com ternura.
Como na bela música de Caetano Veloso, Calmon foi tão genuinamente (Re)côncavo e legitimamente (Re)convexo.
Por todas essas obras, por sua atuação profissional e política, por sua carreira docente, pelo seu modo de ser e de estar no mundo, Calmon cumpriu o papel de espalhar benefícios nos caminhos que trilhou entre 16 de maio de 1920 e 18 de outubro de 2008, quando alçou à atemporalidade. Como ele mesmo dizia: “Nada é sozinho. Nada é para sempre. Todo saber é saber do homem, ser histórico e contingente, pelo que este saber só se legitima se apto para servir à humanidade”.
Mucugê (na charmosa Chapada Diamantina), Bahia, outubro de 2018.
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*Antonio Adonias Aguiar Bastos é doutor e mestre (UFBA). Professor da UFBA. Conselheiro da OAB. Presidente do CESA – Seccional Bahia. Advogado.