A literatura abre as portas da linguagem e da interpretação, demonstrando, de um lado, a infinita possibilidade de criação da mente humana, de outro, o risco demasiado da abstração sobre os pilares da realidade jurídica.
Sabe-se que o sistema jurídico estadunidense é permeado há alguns séculos pelas obras de Oliver Wendel Holmes depois, mais recentemente, por Richard Posner, a respeito do pragmatismo jurídico e a análise econômica das decisões tomadas pelos sujeitos jurídicos.
Significa dizer que a sociedade exige a imposição de limites democráticos ao processo de tomada de decisão, sendo que figuras como ativismo, judicialização e estado de coisas inconstitucional, não podem ser banalizadas.
Recorde-se que o ativismo foi a denominação dada ao conjunto de técnicas do Chief Justice Earl Warren quando presidiu a Suprema Corte dos Estados Unidos em casos como Brown v. Board of Education.
Já o termo judicialização (aportuguesado) foi utilizado pela primeira vez na monumental obra "The global expansion of judicial power" de Neal Tate, para se referir ao processo (fenômeno, não processo judicial) de discussão das fronteiras do poder perante as Cortes de Justiça.
Tate dizia que, em grande parte na América Latina e na África, que sofrem com a dissidência política e busca a reconhecida democracia, as Cortes de Justiça tornar-se-iam palco de disputa a respeito de intervenção militar, conflito étnico e revolução.
O estado de coisas inconstitucional, por seu turno, consiste – resumidamente (se é que é possível resumi-la) em técnica por meio da qual a Corte Constitucional declara a inconstitucionalidade calcada em omissão dos agentes públicos e fixa marcos de sua atuação (fiscalização e implantação das medidas de resgate do direito fundamental).
Com isso se quer dizer que o Judiciário não julga e não decide ex nihilo, havendo processualidade das técnicas de julgamento que se apegam a determinados pressupostos jurídicos, como é o caso da formação do precedente, da modulação de efeitos de inconstitucionalidade etc.
Há uma gama de pressupostos para que a decisão proferida seja eficaz, o que torna imperiosa a análise pelo julgador quanto aos meios de que dispõe – sobretudo econômicos – para compelir o particular ou o poder público ao cumprimento dela.
Mas, todas as técnicas pressupõem o seguinte: ausência de norma (regra posta = omissão) ou ofensa à regra posta (violação). O ativismo de Warren, exemplificando, no caso Brown, tinha como pressuposto a emenda à Constituição dos Estados Unidos ainda não incorporada, naquele momento, por todos os Estados-membros.
Em recente – e preocupante – decisão o STJ praticou o ativismo judicial, ao decidir a par do texto legal contido no Código Civil brasileiro que o prazo prescricional de responsabilidade civil é diferente conforme sua origem contratual ou extracontratual.
Recorde-se que o artigo 206, § 3º do Código Civil, no inciso V utiliza a sentença generalizada "pretensão de reparação civil", sem fazer diferença quanto à origem da pretensão, se contratual ou extracontratual.
O mais curioso é que o Código Civil está em vigor desde 10 de janeiro de 2003, significa dizer, durante 25 anos construiu-se a jurisprudência e doutrina envolta da segurança jurídica dada pelo texto.
De Serpa Lopes1 "quando a lei não fez distinção o intérprete não deve fazê-la (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus). Não deve o intérprete criar, na interpretação, distinções que não figuram na lei".
Observa-se que a distinção, em verdade, é uma criação de hipótese não contemplada inicialmente na lei, e, em última análise, significa conferir ao juiz o poder de inovar no ordenamento jurídico, poder esse que pertence ao Legislativo, conforme já destacou o ministro Marco Aurélio2, "onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo".
Conforme o entendimento firmado naquele julgado pelo STJ – que não se constituiu em precedente na forma estabelecida no artigo 927 do Código de Processo Civil – o prazo trienal de prescrição do art. 2016 se aplica apenas à responsabilidade civil extracontratual, aplicando-se, nas demais hipóteses, o prazo decenal do art. 205.
É um grande esforço compreender que, prazo prescricional que traz prejuízo aos envolvidos no tocante à perda da pretensão, possa ser estipulado por decisão judicial e não por previsão legal como garantia de abstração e generalidade.
O mais curioso é que o acórdão proferido contém o princípio do kamikaze, uma vez ele traz a regra da inovação e, ao final, exige a previsão legal como pilar da segurança jurídica, conforme redigido, "há muitas diferenças de ordem fática, de bens jurídicos protegidos e regimes jurídicos aplicáveis entre responsabilidade contratual e extracontratual que largamente justificam o tratamento distinto atribuído pelo legislador pátrio, sem qualquer ofensa ao princípio da isonomia"3.
Ora, se é necessário previsão legal como garantia de segurança, então como é que se amplia o prazo prescricional sem mudança na lei?
E falamos em mudança porque ninguém nunca duvidou da previsão contida do art. 206, § 3º do Código Civil, referente ao prazo trienal, havendo diferença apenas no que toca à relação de consumo que contém prazo especial definido no art. 25 da lei 8.078/90.
A decisão tomada pelo Tribunal não é saudável ao clima angustiante da economia brasileira, que clama pela estabilidade das relações, sobretudo em tema de tão delicadeza à vida do homem que é o tempo, e o tempo juridicamente qualificado como prescrição.
Oxalá a decisão não se expanda pelas turmas e seja apenas fruto de reserva poética.
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1 Serpa Lopes, Curso de direito civil, Rio: Freitas Bastos, 1998, v.I, p.135.
3 Embargos de divergência em REsp 1.280.825 - RJ (2011/0190397-7).
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*Cristiano Quinaia é advogado do escritório JBM Advogados, especialista em Direito Processual Civil e mestre em Direito Constitucional.