O STF, no julgamento do RE 888815, com repercussão geral reconhecida, considerou inconstitucional o ensino doméstico ou familiar, prática pela qual, segundo a Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), cerca de 7.500 famílias, no Brasil, fizeram a opção no sentido de que os filhos sejam educados em casa (homeschooling), desvinculados da escola tradicional. Somente o relator, min. Luís Roberto Barroso votou pela legalidade da proposta, desde que algumas condições fossem observadas. Os demais, a uma só voz, entenderam que não cabe ao Poder Judiciário autorizar e regulamentar a matéria e sim ao Legislativo.
Vencida a fase do julgamento, abre-se a possibilidade de discutir a pretensão perante o Congresso Nacional. Alguns óbices, no entanto, agora apontados, devem ser observados.
O artigo 205 da Constituição Federal proclama a educação como direito de todos e dever do Estado e da família, aqui num verdadeiro espírito de coautoria, visando atingir as melhores condições para o desenvolvimento da pessoa e para o exercício pleno da cidadania. Já adiante, no artigo 208, disciplina que é dever do Estado a educação obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete)anos, preceito reiterado no art. 4º, I, da lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). O artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente sinaliza que incumbe aos pais o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores e o artigo 55 do mesmo Estatuto estabelece a obrigatoriedade dos pais de matricular os filhos na rede regular de ensino. Assim não procedendo, incidem na regra punitiva do art. 246 do Código Penal, que prevê o crime de abandono intelectual, consistente em deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária do filho em idade escolar.
A nova proposta traz inovações que rompem com uma estrutura tradicional e comporta um breve retorno às fontes originárias do saber humano, aquelas que, pela importância e significativas conquistas para a humanidade, pavimentaram e construíram a narrativa pedagógica em busca do devir de uma educação de referência.
Os gregos, influenciados diretamente pelo pensamento filosófico, entendiam que a formação do homem resumia-se na Paideia, que compreendia uma visão completa da educação, envolvendo a poesia, a música, a eloquência e o pensamento político, tudo com a finalidade de proporcionar um modelo de formação ideal. Basta ver pelas obras A República, de Platão, e A Política, de Aristóteles, que a afinidade educativa é moldada no pensamento clássico com fronteiras abertas para buscar o homem na sua essência genuína e perfeita.
Ocorreu neste período o surgimento do òikos, espaço familiar em que o pai projetava o modelo que pretendia seguir para a educação do filho e atingir sua projeção na vida social, independentemente dos valores sinalizados pela pólis.
"Esparta e Atenas, esclarece Cambi, deram vida a dois ideais de educação: um baseado no conformismo e no estatismo, outro na concepção de paideia, de formação humana livre e nutrida de experiências diversas, sociais, mas também culturais e antropológicas. Os dois ideais, depois, alimentaram durante séculos o debate pedagógico, sublimando a riqueza e fecundidade ora de um, ora de outro modelo".1
O tema, que já tem vida própria em muitos países, recentemente veio à tona no Brasil e reveste-se de interessante proposta, pois, acima de tudo, vem calcado na maturidade dos seus seguidores que elegeram a educação como prioridade fundamental. Não se trata de buscar uma abordagem restritiva, concorrendo com o pacto educacional estabelecido, e nem mesmo de se proclamar uma ruptura com a continuidade do ensino e sim de ampliar os espaços com a introdução de novas práticas metodológicas seguindo sempre os parâmetros do informar e do interpretar para a construção do caráter da criança e do adolescente.
Por outro lado, em se considerando a sofrida qualidade do ensino fundamental, em que o sistema educacional ocupa os últimos lugares no ranking mundial, a educação domiciliar passa a ser considerada uma opção para os pais proverem a educação dos filhos, levando em consideração também as convicções pedagógicas, morais, filosóficas, políticas e religiosas, tendo como suporte legal a autonomia familiar contida nos artigo 206, incisos II e III, da Constituição Federal.
É até interessante observar, a título de exemplo, que o próprio Estado se encarrega de promover e realizar o Exame Supletivo, iniciativa que busca jovens e adultos que estão fora da escola ou da idade regular de ensino, para conferir a eles a certificação dos Ensinos Fundamental e Médio. Ora, guardadas as devidas proporções, os pais têm o direito de protestar contra a política educacional do país e, pela proposta do ensino domiciliar, poderão oferecer aos filhos um ensino de melhor qualidade com a certeza de que colherão dividendos para toda a vida.
Por isso que o espaço no Poder Legislativo é mais amplo e aderente ao tema. Várias discussões poderão ser travadas e conciliadas com a feitura de uma lei que possa atender aos anseios daqueles que cultivam o ensino doméstico, vinculando-o à escola convencional. Assim, seria de bom alvitre a regulamentação do homeschooling, cabendo ao Estado estabelecer os padrões curriculares adequados e compatíveis, assim como realizar a avaliação periódica dos alunos que fizeram a opção por esta nova proposta de ensino. "Nos dias de hoje, adverte cautelarmente Russell, um pai sábio provavelmente escolherá, se puder, um método de educação para seus filhos que não seja de fato universal, e, para o bem da experiência, é desejável que esses pais tenham oportunidade de tentar métodos novos".2
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1 - Cambi, Franco. História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU(, 1999, p.82.
2 - Russell, Bertrand. Sobre a educação. Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p.15.
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