O mercado de afretamento de embarcações utilizadas pela indústria de óleo e gás no Brasil tem verificado acirrada concorrência entre embarcações de bandeira nacional e estrangeira. Isso porque, em razão do disposto nos artigos 8º e seguintes da lei 9.432/97, o afretamento de embarcações estrangeiras somente poderá ocorrer, dentre outras hipóteses previstas em lei, quando verificada a "inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido".1
Diante disso, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ editou, em 2015, a resolução normativa 1 ("RN 1/15"), estabelecendo os procedimentos necessários para o afretamento de embarcações estrangeiras no Brasil. De acordo com o previsto nessa resolução, para que uma embarcação estrangeira possa ser objeto de afretamento no Brasil, é obrigatória a realização de um procedimento administrativo formal de consulta ao mercado nacional de embarcações denominado de "circularização".
Na circularização, a empresa brasileira de navegação ("EBN") interessada em afretar uma embarcação estrangeira realiza uma consulta ao mercado de embarcações nacionais sobre a disponibilidade de embarcação de bandeira brasileira que atenda aos requisitos exigidos para o afretamento. Esse processo é realizado eletronicamente por meio de um sistema disponibilizado e operado pela própria ANTAQ chamado SAMA ("Sistema SAMA"). A EBN interessada em afretar uma embarcação estrangeira utiliza esse sistema para informar ao mercado nacional as características da embarcação de que necessita, bem como os serviços e a operação que a mesma deverá realizar.
Caso não haja embarcação brasileira que atenda a esses requisitos e se encontre disponível, a ANTAQ procederá à emissão de um documento denominado "Certificado de Autorização de Afretamento", o CAA, que formaliza a autorização de afretamento de embarcação estrangeira no Brasil. O CAA tem prazo de validade de 12 meses, podendo ser renovado por igual período ao final desse termo por meio de nova circularização.
Caso haja embarcação brasileira que atenda aos requisitos informados na circularização, o proprietário dessa embarcação poderá efetuar o chamado "bloqueio da circularização", que é o procedimento pelo qual a empresa bloqueante oferece a sua embarcação de bandeira brasileira em substituição à embarcação estrangeira que se pretendia afretar. Ainda de acordo com a resolução ANTAQ 1/15, caberá à ANTAQ decidir se o bloqueio é firme, isto é, se a embarcação bloqueante realmente possui as características e requisitos necessários para o atendimento da circularização.2
No processo administrativo de circularização, portanto, figuram como partes interessadas: (a) a empresa brasileira de navegação que pretende afretar uma embarcação estrangeira; (b) a empresa que possui uma embarcação nacional capaz de atender a essa demanda de afretamento; e, por fim, (c) a empresa proprietária da embarcação estrangeira que atenderá ou já está atendendo à demanda de afretamento. O gráfico a seguir ilustra as partes envolvidas/afetadas pelo processo de circularização:
Apesar dos esforços realizados pela ANTAQ, o processo de circularização ainda tem gerado algumas dúvidas e perplexidades entre os agentes do setor.
Primeiramente, é importante destacar que, em 28/2/18, o TCU, em processo instaurado após representação por empresa que atua no setor de cabotagem, proferiu decisão suspendendo os efeitos do artigo 5º, inciso III, alínea "a", da RN 1/15. O fundamento da decisão foi o de que esse dispositivo, que se aplica apenas à navegação por cabotagem, teria imposto obrigações sem respaldo legal. O artigo em questão estabelece que o afretamento de embarcação estrangeira para navegação de cabotagem está condicionado (i) à comprovação de que a tonelagem bruta da embarcação estrangeira não ultrapasse o quádruplo da capacidade total dos navios brasileiros em operação comercial pela empresa afretadora; e (ii) que a operadora seja proprietária de ao menos uma embarcação de bandeira brasileira de tipo semelhante a que está sendo afretada, exigências essas que segundo a decisão do TCU teriam extrapolado os limites impostos pela lei 9.432/97. A decisão foi proferida em caráter liminar e o mérito da questão ainda será apreciado pelo TCU oportunamente.
Independentemente da confirmação ou não dessa decisão relacionada à navegação por cabotagem, a RN 1/15, em seus demais aspectos, apresenta alguns pontos passíveis de aprimoramento, visando conferir maior segurança e previsibilidade aos agentes que atuam no setor. Considerando a complexidade das relações jurídicas envolvidas, a importância econômica das questões afetadas por esse processo e as diferentes partes interessadas, os seguintes aspectos mereceriam uma previsão mais detalhada do que a atualmente existente:
(i) a RN 1/15 não contém definição clara quanto às partes que devem ser consideradas como "envolvidas" no processo de circularização, possuindo direito de se manifestar formalmente no processo previamente à decisão da ANTAQ. O art. 9º, § 3º, prevê apenas que haverá "troca de manifestações sobre a matéria entre as empresas de navegação envolvidas", mas não há indicação clara se tais empresas também incluem a proprietária da embarcação de bandeira estrangeira afetada pelo bloqueio realizado por embarcação nacional. Seria salutar, assim, a inclusão de uma previsão específica a respeito do assunto, até mesmo para que todos os agentes potencialmente afetados pela decisão da ANTAQ possam participar do processo, apresentando seus argumentos em favor ou contra o bloqueio realizado;
(ii) outro ponto obscuro da norma é ausência de previsão expressa no sentido de que a decisão aceitando ou rejeitando um bloqueio deverá ser motivada e devidamente comunicada às partes envolvidas no processo de circularização. Por se tratar de um ato administrativo com conteúdo decisório, a exigência expressa de motivação e publicidade da decisão da ANTAQ seria benéfica à transparência do processo, permitindo também o controle judicial da legalidade dessa decisão. Nesse particular, a motivação da decisão é especialmente importante no que diz respeito à competência da ANTAQ para verificar se as condições ofertadas no bloqueio estão compatíveis com os preços praticados no mercado, o que é incumbência da agência, nos termos do art. 10, §4º, da RN 1/15;
(iii) a RN 1/15 também não prevê se, para o bloqueio ser definitivamente aceito, é necessário ou não que um contrato de afretamento seja efetivamente firmado entre a embarcação de bandeira nacional responsável pelo bloqueio e a EBN interessada em afretar ou se, ao contrário, basta a existência de uma embarcação de bandeira nacional com as mesmas características da embarcação estrangeira para que o bloqueio seja válido. Também nesse aspecto parece importante uma definição mais clara, a fim de evitar insegurança jurídica decorrente da existência de um bloqueio sem a confirmação de que a embarcação nacional bloqueadora será efetivamente contratada; e
(iv) por fim, o art. 7º, §4º, inciso I, da RN 1/15, prevê que a circularização deverá conter, de forma objetiva, a descrição das características da embarcação necessárias para realizar a operação de apoio ou transporte, sendo expressamente previstos pela norma o tipo de embarcação, a potência, capacidade de carga, dentre outros. Todavia, a norma não prevê, para os casos específicos em que já exista um contrato de afretamento de embarcação estrangeira em curso, hipótese em que a circularização é realizada para permitir o prosseguimento de um afretamento existente, se esses requisitos devem ser idênticos ao contrato de afretamento em curso. Seria importante esclarecer esse aspecto para os casos em que a circularização, na realidade, está sendo realizada para permitir a renovação de um CAA de uma embarcação estrangeira já afretada e não para um novo contrato de afretamento.
Os pontos acima destacados consistem em possíveis aprimoramentos da RN 1/15, ampliando a segurança jurídica para as partes envolvidas e tornando o processo de circularização mais transparente e previsível, o que, em última análise, tenderá a aprimorar as relações comerciais do setor de afretamento de embarcações nacionais e estrangeiras no Brasil, organizando de forma racional as disputas comerciais por esse mercado tão disputado.
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1 Art. 8º "A empresa brasileira de navegação poderá afretar embarcações brasileiras e estrangeiras por viagem, por tempo e a casco nu."
Art. 9º. "O afretamento de embarcação estrangeira por viagem ou por tempo, para operar na navegação interior de percurso nacional ou no transporte de mercadorias na navegação de cabotagem ou nas navegações de apoio portuário e marítimo, bem como a casco nu na navegação de apoio portuário, depende de autorização do órgão competente e só poderá ocorrer nos seguintes casos:
I - quando verificada inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido; (...)"
2 Art. 10. "O bloqueio do pedido de afretamento será aceito pela ANTAQ quando reconhecida a existência de embarcação brasileira que atenda aos requisitos aplicáveis à prestação das atividades descritas na consulta formulada pela empresa brasileira de navegação.
§ 1º O bloqueio será considerado firme se a embarcação de registro brasileiro estiver disponível para realizar a operação de apoio ou o transporte dentro do período de recebimento ou carregamento estabelecido na circularização.
§ 2º Havendo necessidade, a ANTAQ decidirá quando for caracterizado o bloqueio firme ao afretamento pleiteado, uma vez concluída a troca de informações entre as empresas envolvidas.
§ 3º A embarcação ofertada pela empresa brasileira de navegação deverá atender às informações previstas no § 4º do art. 7º e ser de tipo semelhante à embarcação cujas características foram informadas na circularização.
§ 4º Caso seja instada, a ANTAQ verificará se as condições ofertadas no bloqueio estão compatíveis com os preços praticados no mercado nacional de referência."
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*Luis Cláudio Furtado Faria é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados.
*Erick Mateus Santos Faustino é associado do escritório Pinheiro Neto Advogados.
*Daniel Andrade de Souza é associado do escritório Pinheiro Neto Advogados.
*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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