O Código Penal, apesar de envelhecido em muitos de seus conceitos, sistematicamente vem sofrendo alterações para atender os mais urgentes reclamos sociais. É tarefa árdua, pois mesmo com toda legislação penal catalogada, o índice de criminalidade vem atingindo níveis insuportáveis de insegurança, frustrando não só os cidadãos como o próprio aparelhamento persecutório do Estado, que se encontra impotente.
O Senado Federal aprovou projeto de lei que torna crime a importunação sexual consistente na prática contra alguém de ato libidinoso a fim de satisfazer desejo próprio ou de terceiro, estabelecendo a pena de até cinco anos de prisão. A intentio legis foi de acudir algumas condutas consideradas graves, mas que não estavam disciplinadas no Código Penal, como alguns casos que foram retratados pela imprensa, de homens que se masturbavam e ejaculavam em mulheres no interior de transporte coletivo.
A dignidade sexual da vítima, no exemplo citado, é ultrajada por uma conduta repugnante e vexatória, porém fica fora da esfera protetiva do Direito Penal, pois não se pode falar em estupro, que exige a ocorrência de violência ou grave ameaça, e muito menos na prática contravencional penal da importunação ofensiva ao pudor, que é muito pouco para uma ação tão aviltante.
O vácuo legislativo não permite, em matéria penal, que o juiz aplique a chamada analogia in malam partem, que carrega sérios e danosos prejuízos ao acusado. A premissa estabelecida pelo princípio da anterioridade da lei é no sentido de que o fato considerado criminoso somente poderá ser perquirido judicialmente se existir a previsão legal correspondente. Quer dizer, deve existir um tipo penal de forma autônoma e independente, contendo a descrição do fato ilícito com todos os elementos definidores para que haja a subsunção legal.
Talvez a reforma provocada no artigo 213 do Código Penal pela lei 12.015/09 tenha conferido uma expansão desmedida ao crime de estupro, a ele incorporando o de atentado violento ao pudor, abrindo assim um vácuo interpretativo e possibilitando entendimentos divergentes a respeito de sua prática. Pode acontecer que determinada conduta contra a dignidade sexual seja desproporcional ao crime de estupro, como, por exemplo, se o agente, de modo sorrateiro, ou até mesmo em tom de brincadeira, coram populo, sem a malícia necessária, toca as nádegas ou o seio da vítima, ainda que, repita-se, por mais repugnante que a ação se revele, ausente o dolo recomendado para a conduta, não é motivo suficiente para caracterizar a lascívia do agressor. Pode acontecer, outras vezes, como o caso em discussão, de gravidade incontestável, com rejeição popular e até mesmo de doutrinadores que bradam em sentido contrário, ausente um dos requisitos para a caracterização do estupro, a tipificação venha a se alojar em outro delito ou até mesmo em prática contravencional de pequeno potencial ofensivo.
Em muitos desses casos duvidosos, quando do ajuizamento da ação penal, o Ministério Público oferecia a denúncia pela prática do crime de estupro que, como é sabido, traz elementos constitutivos diferenciados e, durante a instrução criminal, não se apurando a violência ou grave ameaça contra a vítima, o juiz, na sentença, absolvia o réu pela prática do crime perquirido, porém condenava-o pela modalidade contravencional, considerada muito desproporcional com a conduta.
Com o novo tipo penal, tecnicamente não há que se falar no ressurgimento do atentado violento ao pudor, pois sua conduta, hoje, está expressa no artigo 213 do Código Penal, muito embora, na prática, com a sanção presidencial, possa se buscar um meio termo, mas que preveja uma gravidade menor da conduta do agente.
Mas também não se olvida que, como não poderia deixar de ser, o direito penal vive dos fatos que a ele são apresentados e, portanto, está sujeito a enfrentar situações limítrofes entre um dispositivo legal e outro, sobretudo diante da gravidade da conduta e da exposição social, que, muito embora não possa servir de fundamentação válida, provoca grande turbulência na vida social. Como o Direito não é uma ciência exata e sim interpretativa, cabe ao intérprete, principalmente com relação aos novos crimes contra a dignidade sexual, quando aparentemente são iguais, porém dicotomicamente guardam considerável distância, aplicar as regras da Hermenêutica para se buscar a melhor solução para o conflito.
Resta aguardar a sanção presidencial para a proclamação do habemus legem.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.