Migalhas de Peso

A responsabilidade civil do Estado ante a violação dos direitos fundamentais dos detentos e a reparação in natura através da remição de pena

Em que pese a decisão ter sido proferida no ano de 2016, ela ainda se enquadra no contexto atual, já que o Brasil continua com uma das maiores populações carcerárias do mundo, em razão do aumento considerável da criminalidade no país.

10/8/2018

 

Introdução

O presente artigo analisará a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que julgou procedente o RE 580.252, atribuindo ao Estado a responsabilidade objetiva ante a violação dos direitos fundamentais dos detentos em virtude da precária situação do sistema prisional brasileiro, além de sua superlotação, principalmente no município de Corumbá/MS.

Em que pese a decisão ter sido proferida no ano de 2016, ela ainda se enquadra no contexto atual, já que o Brasil continua com uma das maiores populações carcerárias do mundo, em razão do aumento considerável da criminalidade no país.

Ocorre que o aumento da população carcerária traz consequências negativas para a sociedade e, principalmente, para os detentos, que já, além de possuírem a privação de seu principal direito fundamental, a liberdade – em razão do ato ilícito cometido -, há também um tratamento desumano e clara violação à sua integridade física e moral. Isso porque, como será demonstrado, há precariedade nas estruturas e instalações prisionais, que contam frequentemente com celas em péssimo estado de conservação, insalubres, fétidas, sem ventilação e iluminação adequadas e sem sistema de esgoto. Além disso, em grande parte dos presídios brasileiros, há celas superlotadas, com pessoas amontoadas, dormindo em esquema de revezamento, em cima de vaso sanitário, no chão ou em redes fixadas nas paredes. E quando as celas não oferecem espaços suficientes, presos são alojados nos corredores, pátios e até mesmo em contêineres de aço, semelhantes a jaulas de animais.

Assim, restando claro o nexo causal entre o dano causado e a atuação da Administração Pública, evidente a responsabilidade civil do Estado, já que possui dever legal de atender minimamente as condições carcerárias previstas em lei, relativamente aos que estão sob sua custódia, inclusive no sentido de reeducá-los para o retorno à sociedade, devendo reparar este dano causado, seja por dolo ou culpa, conforme art. 37, §6º da CF1.

Entretanto, o questionamento que aqui se faz é de qual seria a melhor forma de reparação civil a estes detentos lesionados. O mais adequado seria a reparação civil em pecúnia ou in natura, mediante remição de pena? O pagamento pecuniário a cada detento melhoraria as condições no sistema prisional, garantindo de volta seus direitos fundamentais violados? A reparação in natura, mediante regressão de pena, aplicaria ao Estado o dever legal reparatório?

 

Breve resumo do RE 580.252

Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão da Terceira Seção Cível do Tribunal de Justiça do Matro Grosso do Sul, em sede de embargos infringentes, representativo do tema 365 da repercussão geral: Responsabilidade do Estado por danos morais decorrentes de superlotação carcerária.

A ação foi proposta através da Defensoria Pública do Estado, por detento condenado a 20 (vinte) anos de reclusão pelo crime de latrocínio – e em liberdade condicional -, pedido de indenização por dano moral em face ao cumprimento da pena privativa de liberdade em estabelecimento prisional superlotado e carente de condições mínimas de saúde e higiene, no município de Corumbá/MS.

A sentença de primeiro grau julgou improcedente a demanda, sendo reformada pelo Tribunal de Justiça local, condenando o estado do Mato Grosso do Sul, por maioria, ao pagamento da indenização, em favor do ora recorrente, em parcela única no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais), tendo como ementa:

"EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DANO MORAL CARACTERIZADO. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL. CONJUNGADA COM O MÍNIMO EXISTENCIAL. PREQUESTIONAMENTO DA MATÉRIA SUFICIENTEMENTE DEBATIDA E DISCUTIDA PELO ÓRGÃO COLEGIADO. RECURSO PROVIDO.

O Estado será responsabilizado a indenizar quando, por ato omissivo, tenha causado dano à particular, desde que comprovada a conduta culposa ou dolosa do ente federativo.

Demonstrado que os problemas de superlotação e de falta de condições mínimas da saúde e higiene do estabelecimento penal (presídio) não foram sanadas, após decurso de um lapso temporal quando da formalização do laudo de vigilância sanitária, violando, por conseguinte, as disposições da Lei de Execução Penal, bem como a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, está devidamente comprovada a conduta omissiva culposa do Estado (culpa administrativa).

Não sendo assegurado o mínimo existencial, não há falar de aplicação da teoria da reserva do possível.

Recurso provido".

 

A decisão recorrida, ao julgamento de embargos infringentes, invocando basicamente a reserva do possível, veio a restabelecer o juízo de improcedência, consoante a seguida ementa:

EMBARGOS INFRINGENTES. REPARAÇÃO POR DANO MORAL. SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA. ATO OMISSIVO DO ESTADO EM GARANTIR A DIGNIDADE HUMANA DO PRESO. RESPONSABILIDADE. APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL. RAZOABILIDADE. IMPOSSIBILIDADE ORÇAMENTÁRIA DO ESTADO. INDENIZAÇÃO INDEVIDA RECURSO PROVIDO.

O Recurso Extraordinário aqui discutido aponta ofensa aos art. 5ª, III, X e XLIX e 37, §6º da CF e insistiu na tese da responsabilidade objetiva do Estado por não garantir condições mínimas de dignidade humana no cumprimento da pena, bem como da inaplicabilidade da teoria da reserva do possível, como fundamento para obstar a indenização pleiteada.

Assim, o RE chegou ao STF por força do provimento de agravo de instrumento pelo min. Ayres Britto, Relator originário, que submeteu ao Plenário Virtual, reconhecendo a repercussão geral da matéria, com a seguinte tese:

LIMITES ORÇAMENTÁRIOS DO ESTADO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. EXCESSIVA POPULAÇÃO CARCERÁRIA. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL. Possui repercussão geral a questão constitucional atinente à contraposição entre a chamada cláusula da reserva financeira do possível e a pretensão de obter indenização por dano moral decorrente da excessiva população carcerária.

 

O Procurador-Geral da República, não diferente esperado, opinou pela negativa de provimento do recurso, especialmente pela ausência do nexo causal entre a obrigação estatal (art. 5ª, XLIX da CF) e o dano supostamente decorrente da superlotação carcerária.

Na ocasião, o então relator, ministro Teori Zavascki, votou no provimento do recurso extraordinário para restabelecer o juízo condenatório nos termos e limites do acórdão proferido no julgamento da apelação, no que foi acompanhado pela maioria, vencidos os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Celso de Mello, que, ao darem provimento ao recurso, adotaram a remição de pena como forma de indenização.

__________

 

1 - CF/88 - Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Disponível em <clique aqui> Acesso em 29/07/2018.

__________

*Veridiana Vallada Antão é advogada, pós-graduanda em Direito Civil pela USP/FDRP.

*Juliana Pavarina Balieiro é advogada, pós-graduanda em Direito Civil pela USP/FDRP.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Doenças que têm direito ao LOAS: Quais são e como solicitar

2/12/2024

Oportunidades tributárias para pessoas físicas

3/12/2024

Art. 166 do CTN, um dispositivo inútil

3/12/2024

Poder de perdoar: Biden, Bolsonaro e limites do indulto presidencial

3/12/2024

TRT de Campinas entende que cabe à Justiça Comum julgar casos entre pessoas jurídicas

3/12/2024