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Poder constituinte e política ordinária

O poder constituinte é a energia inicial que cria ou reconstrói o Estado. Trata-se de um fato essencialmente político, que consiste no poder de elaborar e de fazer valer uma Constituição. A Constituição, por sua vez, irá converter esse fato político em um poder de direito, institucionalizando uma nova ordem jurídica. De acordo com a teoria democrática, o poder constituinte repousa na soberania popular, isto é, na vontade do povo. O povo sempre conserva o poder de mudar os fundamentos do Estado no qual se insere. Por essa razão, o poder constituinte não está subordinado ao poder constituído, situando-se fora e acima da ordem jurídica em vigor.

10/8/2006

Poder constituinte e política ordinária

Luís Roberto Barroso*

O poder constituinte é a energia inicial que cria ou reconstrói o Estado. Trata-se de um fato essencialmente político, que consiste no poder de elaborar e de fazer valer uma Constituição. A Constituição, por sua vez, irá converter esse fato político em um poder de direito, institucionalizando uma nova ordem jurídica. De acordo com a teoria democrática, o poder constituinte repousa na soberania popular, isto é, na vontade do povo. O povo sempre conserva o poder de mudar os fundamentos do Estado no qual se insere. Por essa razão, o poder constituinte não está subordinado ao poder constituído, situando-se fora e acima da ordem jurídica em vigor.

Desde a promulgação das primeiras Constituições escritas – a americana, de 1787; e a francesa, de 1791 –, o mundo já viveu diversas ondas de constitucionalização. Do exame dos eventos históricos relevantes, é possível sistematizar os cenários políticos em que mais comumente se dá o exercício do poder constituinte, com a elaboração de novas Constituições. São eles: a) uma revolução, como nos casos da França (1791) e de Portugal (1976); b) a criação de um novo Estado, como nos Estados Unidos (1787) e nos países africanos (segunda metade do século XX); c) a derrota na guerra, como no caso da Alemanha (1919 e 1949), da Itália (1948) e do Japão (1947); d) uma transição política pacífica, como na Espanha (1978) e no Brasil, após o fim do regime militar (1988).

Concluído seu trabalho, o poder constituinte volta ao estado latente e a soberania popular se converte em supremacia constitucional. Entram em cena, então, as instituições políticas e jurídicas criadas pela Constituição, que são denominadas de poder constituído. É nesse âmbito que se situa o poder de reforma do texto constitucional. As Constituições têm vocação de permanência, mas não podem aspirar à perenidade. Por isso prevêem a possibilidade de sua adaptação a novas realidades sociais e políticas. Note-se, todavia, que essa competência para aprovar emendas constitucionais está subordinada a requisitos formais e a limitações de conteúdo impostas pela Constituição.

De fato, as emendas têm de ser aprovadas por quorum mínimo de três quintos de cada casa do Congresso e não podem abolir as denominadas cláusulas pétreas, que protegem a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, periódico e universal, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Aqui surge uma questão crucial na moderna teoria constitucional: qual é o fundamento de legitimidade que dá à Constituição essa superioridade jurídica? O que autorizaria uma maioria reunida no passado – no caso brasileiro, há dezoito anos; no americano, há mais de dois séculos – a impor restrições às maiorias futuras, integrantes de gerações que têm outras circunstâncias e outros problemas a equacionar e resolver. Há dois fundamentos para a aceitação histórica do postulado da supremacia constitucional: um subjetivo e outro objetivo.

Do ponto de vista subjetivo, uma Constituição é obra do povo. Normalmente, ela será elaborada em situações de ampla mobilização popular e de exercício consciente da cidadania. A superação do status quo anterior, decorrente da perda de legitimidade que sustentava a ordem jurídica pré-existente, envolverá, como regra geral, eventos protagonizados por grandes contingentes da população. Tome-se como exemplo a reconstitucionalização relativamente recente de países como Brasil, África do Sul, Hungria, Espanha e Portugal. Distantes geográfica e politicamente, todos eles tiveram como elemento comum a existência de movimentos cívicos, revolucionários ou não, que claramente não se integravam à rotina da política comum. Em cada um desses países, a Constituição, a nova idéia de Direito que se impôs, teve sua origem na sociedade e não no Governo ou no Parlamento.

Portanto, na história dos Estados, há momentos constitucionais nos quais a cidadania impulsiona de maneira transformadora o processo social. Institucionalizada a nova ordem, o poder constituinte cede o passo ao poder constituído, o povo dá a vez a seus representantes. Este aspecto envolvendo a participação cívica configura um elemento diferenciador fundamental porque, via de regra, os membros da assembléia constituinte e aqueles que vêm a integrar o parlamento acabam sendo substancialmente os mesmos. Mas as condições históricas e políticas de sua atuação, em razão do grau de mobilização popular, são muito diferentes.

Do ponto de vista objetivo, a superioridade da Constituição se deve à transcendência dos bens jurídicos que ela tutela: a limitação do poder, os valores fundamentais da sociedade, a soberania popular e os procedimentos democráticos. O constitucionalismo democrático funciona como um mecanismo de auto-limitação ou pré-compromisso, por meio do qual se retira do alcance das maiorias eventuais direitos que constituem condições para a própria realização da democracia. Trata-se de uma proteção necessária contra a volatilidade da política e das paixões partidarizadas. A democracia não se resume ao princípio majoritário ou às regras procedimentais de participação política. No seu âmbito encontram-se abrigados, igualmente, valores substantivos e direitos fundamentais.

Essa a teoria constitucional. Agora o fato político. O Brasil precisa, com urgência, de uma reforma política profunda e extensa. Precisa de um choque de legitimidade democrática, de governabilidade e de resgate das virtudes republicanas. Não há nada na Constituição em vigor que impeça essas transformações. Portanto, a reforma – que é urgente – deve ser feita por emenda constitucional, nos seus pontos estruturais, e pela legislação ordinária, nos seus aspectos gerais. O poder constituinte não pertence nem ao Governo nem ao Parlamento. O povo é o único árbitro do momento em que deve ser deflagrado. Este é um trunfo para as situações limite. Assembléia constituinte não é, nem pode ser um produto disponível no balcão da política ordinária.

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*Advogado do escritório Luís Roberto Barroso & Associados e Professor titular de direito constitucional da UERJ









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