I - Introdução
O crime do art. 89 da lei 8.666/93 (dispensa ilegal de licitação) suscita constantes debates nos tribunais pátrios acerca de sua natureza, isto é, se é delito material e exige resultado naturalístico (dano ao erário), ou se é crime formal, caso em que o prejuízo à fazenda pública seria mero exaurimento do ato, sendo desnecessária sua comprovação, ou, ainda, se o tipo demanda a presença de dolo específico1.
Com a edição do decreto 9.412/18 (DOU de 19/6, e entrou em vigor em 19/7/18), que majorou os valores das modalidades de licitação do art. 23, I e II, da lei 8.666/93, a discussão sobre o tipo penal do art. 89 da mencionada lei ganhará um novo componente: o tema da (in)existência de "abolitio criminis" e da "lex mitior" ou "novatio legis in mellus" (art. 5º, XL, da CF/88, art. 2º, parágrafo único do CP; e art. 9ª, in fine, do Pacto de São José da Costa Rica) como efeito do novel diploma legal.
É que, ao elevar os valores das modalidades de licitação, automaticamente alteraram-se os valores limites para dispensa de licitação do art. 24, I e II, da lei 8.666/93, com repercussão na definição e alcance do crime do art. 89 da citada lei, norma penal em branco preenchida/complementada pelos dispositivos dos arts. 23, I e II, e 24, I e II da Lei de Licitações, e, agora, pelo decreto 9.412/18.
A partir de 19/7/18, com a elevação dos valores das modalidades de licitação do art. 23, I, e II, da lei 8.666/93, automaticamente restou majorado o teto regente das hipóteses de dispensa de licitação nos casos dos incisos I e II do art. 24 do mesmo diploma legal, que passaram a ser de R$33.000,00 (trinta e três mil reais) para obras e serviços de engenharia, e de R$17.600,00 (dezessete mil e seiscentos reais) para casos de outros serviços e compras.
E o ponto nodal para a compreensão do tema impõe sejam respondidas as seguintes questões: a norma extrapenal majoradora do teto de dispensa de licitação é dotada de retroatividade? Ou valerá apenas prospectivamente?
O presente artigo tematiza os efeitos da elevação dos valores das modalidades de licitação do art. 23, I e II, da lei 8.666/93, a fim de aquilatar a (in)ocorrência de "abolitio criminis" e da "lex mitior" ou "novatio legis in mellus", e sua incidência retroativa sobre investigações criminais e ações penais em curso e, ainda, para aquelas em que já houve condenação, transitada em julgado ou não, por infração ao art. 89 da Lei de Licitações.
II – Da dispensa como exceção à obrigatoriedade de licitação e as consequências da inércia na atualização do valor para contratação direta
O exercício da chefia do Poder Executivo ou de outros postos igualmente elevados (com poder decisório administrativo) é uma tarefa das mais nobres dentro de uma República e proporcionalmente das mais desafiadoras, dada a rapidez com que grandes problemas de toda ordem surgem e que demandam soluções inteligentes e céleres, afinal, o atendimento do interesse público primário é fluído, multiforme e constitui uma meta perene na República Federativa do Brasil (art. 3º da CFRB2).
Daí que, além de os cargos de Prefeito Municipal, Governador de Estado e de Presidente da República exigirem de seus ocupantes uma vocação quase “sacerdotal” em razão do nível de dedicação que o mandato impõe (e se espera), repleto de renúncias pessoais e familiares em prol do coletivo e da ordem pública, demanda-se, ainda, do chefe mor da administração pública em todos os níveis da federação, a presciência dos diversos riscos a que está exposto no exercício da gestão da coisa pública, dentre os quais, a quase certeza de que em algum momento do mandato se tornará alvo de ação judicial sob a acusação da prática atos de improbidade administrativa ou de ilícitos penais (ora em acusações devidas, ora em acusações indevidas) decorrentes até mesmo de decisões triviais e inerentes ao cargo.
E um dos pontos mais sensíveis desta temática está nas divergências acerca da aplicação das exceções à obrigatoriedade de licitação para as contratações realizadas pela Administração Pública, de que são espécies a inexigibilidade (art. 25 Lei 8.666/93) e a dispensa de licitação (art. 24 do mesmo diploma legal), sendo esta última (dispensa) o foco do presente artigo.
A Constituição da República, em seu art. 37, XXI, em obséquio aos princípios da impessoalidade e isonomia, preconizou a obrigatoriedade de processo de licitação para contratação de obras e serviços pela Administração Pública, mas previu exceções: "ressalvados os casos especificados na legislação".
O constituinte originário sabia que, em certos casos excepcionais, a realização do burocrático, custoso e lento certame não atenderia ao interesse público primário. O legislador ao estabelecer na lei 8.666/93 as hipóteses de dispensa e inexigibilidade, densificou e deu concretude ao referido mandamento constitucional.
Dentre as hipóteses de dispensa de licitação, a lei 8.666/93 consagrou as dispensas em face do pequeno valor enumeradas no art. 24, I e II. A premissa do referido dispositivo é que por vezes não é conveniente nem oportuno ao Administrador realizar um processo licitatório estruturalmente custoso, em face do tempo despendido pelos agentes públicos e gastos da Administração Pública com as formalidades exigidas pelas modalidades de licitação, quando se trata de adquirir algo de valor pouco expressivo.
Tanto é assim que o artigo 26 da Lei de Licitações sequer exige justificativas no caso de dispensa com fundamento no art. 24, I e II, eis que referidos dispositivos foram excepcionados das hipóteses que a demandam (preconizadas no próprio art. 26), haja vista ser suficiente apenas o valor para legitimar a contratação direta.
Contudo, o legislador ordinário vinha frustrando as expectativas do constituinte originário, deixando de atendê-las de modo consentâneo à Constituição, na medida em que incorreu em flagrante inércia na atualização monetária dos casos de contratação direta.
E a inércia na atualização monetária do valor do limite para dispensa de licitação fixado no art. 24, I e II, da Lei n. 8.666/93 (obras e serviços de engenharia: R$15.000,00; obras compras e demais serviços: R$8.000,00) produziu resultados nefastos na sociedade.
Isso porque o congelamento desse valor por inércia legislativa amplia exponencial e indevidamente o raio de incidência da tutela penal sobre a atividade do administrador público, e, de outro lado, restringe e torna praticamente nulas as possibilidades de suprir demandas emergentes que demandam soluções rápidas e desburocratizadas tipicamente sanáveis via dispensa, porquanto a aludida cifra de R$15.000,00 ou R$8.000,00, quando instituída em maio de 1998, representava um poder aquisitivo superior frente ao cenário econômico e inflacionado existente nos dias atuais.
A última atualização dos valores previstos no art. 23 da 8.666/93 (cujo valor da modalidade convite repercute diretamente nos valores de dispensa) foi realizada no ano de 1998, quando da publicação da lei 9.648/98. Portanto, lá se vão longos 20 anos sem que haja qualquer correção deste valor, que, diga-se de passagem, não apenas pode, mas deve ser realizado de modo cogente pela Administração a partir do disposto no artigo 120 da Lei de Licitações3.
Na verdade, trata-se de uma obrigação e não apenas de uma faculdade (a despeito do verbo poder), porque sabido que as perdas inflacionárias desde 1998 (mesmo com inflação abaixo de dois dígitos) são expressivas, de modo que a ausência de atualização dos referidos valores simplesmente aniquila a possibilidade legal de dispensa por pequeno valor, visto que atualmente nada ou muito pouca coisa pode ser contratada dentro de limites tão singelos, absolutamente incompatíveis com a dinâmica da gestão de uma prefeitura, por exemplo.
E aí, ante a letargia na atualização do teto da dispensa, as instabilidades econômicas do país e a inflação é que passaram a redesenhar o espectro de incidência do crime do art. 89 da lei 8.666/93. Quanto maior a perda da expressão econômica da moeda frente à inflação, menor se revela o poder aquisitivo do valor descrito no art. 24, I e II da citada lei (aumentando o engessamento da Administração Pública), e, por consequência, maior é a órbita punitiva.
Simples pesquisa na jurisprudência de quaisquer dos tribunais pátrios revela ser elevadíssimo o número de ações penais contra gestores mandatários e contra integrantes do primeiro escalão da administração pública por crimes do art. 89 da lei n. 8.666/93 (dispensa ilegal de licitação), muitas das quais se baseiam exatamente no estouro do teto da dispensa de licitação, geralmente aferível no fracionamento do objeto em diversas dispensas abaixo dos valores regulados nos incisos I e II do art. 24 da precitada lei.
Essa realidade contrasta com um dos princípios basilares de Direito Penal Constitucional, que é o da intervenção mínima (englobando (a) fragmentariedade, que é dirigida ao legislador; e, (b) subsidiariedade, que é dirigida ao aplicador da lei), porquanto, embora necessária para tutelar bens jurídicos valiosíssimos para a sociedade, o controle social por meio da criação de crimes deve ser excepcional (ultima ratio)4.
Não obstante, é nítido que o Estado brasileiro vem descumprindo a obrigação de atualizar o valor do teto para contratações direta de baixo valor, com o que dá azo a expressivo e indesejado incremento da persecução penal contra agentes públicos que inobservam os limites de R$ 15.000,00, para obras e serviços de engenharia (24, I), e R$ 8.000,00, para compras e serviços (24, II).
Daí que, embora a edição do decreto 9.412/2018 (DOU de 19/6, e entrou em vigor em 19/7/2018), que majorou os valores das modalidades de licitação do art. 23, I e II, da Lei n. 8.666/93, tenha vindo a destempo (levou-se mais de 20 anos para atualizar os valores!!), tal diploma possui grandes virtudes que devem ser aplaudidas, dentre as quais, a mitigação parcial do raio de alcance da norma penal em branco do art. 89 da Lei de Licitações (crime de dispensa ilegal de licitação) e, o principal, a redução do engessamento inviabilizador das atividades do gestor público.
Nesse contexto, como de regra a lei possui efeitos prospectivos5, a redução do raio de alcance da norma penal em branco do art. 89 da Lei de Licitações é vislumbrada porque já a partir de 19/7/18 (quinta-feira), novas dispensas de licitação nos casos de pequeno valor que orbitem acima do antigo limite não mais constituirão ilícito penal por inobservância daquele teto revogado. O novo limite permitirá maior fluidez e agilidade na gestão da coisa pública, notadamente naquilo que depender de contratação direta envolvendo pequenos valores redefinidos no decreto citado.
III – Da retroatividade do decreto 9.412/2018 e seu efeito extintivo da punibilidade no caso do crime do art. 89 da lei 8.666/93: flagrante "novatio legis in mellius"
A pretensão punitiva estatal, na ótica a retroatividade da norma penal benéfica positivada pela Constituição, está sempre subordinada à cláusula "rebus sic stantibus", e a superveniente alteração legislativa que modifique as premissas estruturais tipificantes de um delito determina o esvaziamento do poder punitivo do estado.
No caso tematizado neste artigo, a superveniência de lei "lato sensu" vocacionada à recomposição do valor "teto" para dispensa de licitação, ante a natureza de norma penal em branco do art. 89 da lei 8.666/93, terminou por descriminalizar aquelas dispensas cujos valores orbitaram abaixo do novo "teto", ensejando a inevitável retroação benéfica em favor dos acusados, nos termos do art. 5º, XL, da CF/88, art. 2º, parágrafo único do CP, e art. 9ª, in fine, do Pacto de São José da Costa Rica.
Na prática, por exemplo, se um prefeito de determinado município realizou em 2015 (ou antes disso) duas contratações diretas fracionadas para aquisição de equipamentos de informática em valores de R$9.000,00 e R$8.559,00, mas que deveriam, em função da natureza do objeto, terem sido alvo de uma única contratação via licitação (na modalidade correspondente), o agente público teria cometido o delito do art. 89 da lei 8.666/93, eis que ultrapassado o limite vigente até 18/7/18, nos termos do art. 24, I e II, da citada lei. O mesmo ocorreria caso tivesse realizado uma única contratação direta em 2015 no valor de R$17.000,00 para aquisição de outro item cuja necessidade tenha surgido. Igualmente estaria, em tese, violado o art. 89 da Lei de Licitações (abstraindo-se o caráter de delito material do tipo ali preconizado, tema a ser discutido em outra oportunidade).
Contudo, a partir do mencionado decreto, com a elevação dos valores das modalidades de licitação do art. 23, I, e II, da lei 8.666/93, automaticamente restou majorado o teto regente das hipóteses de dispensa de licitação nos casos dos incisos I e II do art. 24 do mesmo diploma legal, que passou a ser de R$33.000,00 (trinta e três mil reais) para obras e serviços de engenharia, e de R$17.600,00 (dezessete mil e seiscentos reais) para casos de outros serviços e compras.
A modificação legislativa em vigor desde 19/7/18 atenuou a valoração ético-social do fato, uma vez que reconheceu que aqueles antigos limites para dispensa do certame, baseados no critério do pequeno valor do objeto, eram insuficientes para fazer valer a vontade do constituinte originário (permitir ao gestor realizar compras rápidas e desburocratizadas em prol do interesse público), desatendida pela inação estatal ao não atualizar ditas cifras.
Com efeito, a questão da antinomia normativa em casos de sucessões legislativas disciplinadoras do complemento da norma penal em branco já foi tema de debate no Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, que ao decidir pela retroatividade do superveniente complemento mais benéfico, vislumbrou não haver hostilidade aos limites temáticos na nova norma avulsa quando seu reflexo na órbita penal ocorre de forma ancilar6.
De outro lado, não há que se falar em qualquer inconstitucionalidade do decreto 9.412/18, ao menos pelo fato de o ato normativo emanar do Poder Executivo, justamente porque o que o princípio da estrita legalidade ou da reserva legal preconiza, em matéria penal, é que a criação de tipos incriminadores seja veiculada por lei formal7, o que obviamente não veda a redefinição do complemento da norma penal em branco pela via do decreto presidencial, circunstância que também não obsta a eficácia retroativa8.
Assim, parece-nos inarredável que, por efeito primário do direito fundamental que é a retroatividade da norma penal mais benéfica, a inovação normativa extrapenal em voga caracterizou abolitio criminis "parcial", ou, ao menos, "novatio legis in mellius" no tocante a fatos pretéritos cujas dispensas consubstanciaram valores abaixo do novel limite trazido pelo aludido decreto, sendo, portanto, alcançados pela retroatividade benéfica.
Não se pode perder de perspectiva, ainda, a total impertinência em tentar estabelecer alguma analogia entre o efeito do decreto 9.412/18 sobre o art. 89 da lei 8666/93, e a sui generis situação do revogado art. 6º, I, da lei 8.137/90 ("crime de venda de produtos ou serviços por preço superior ao oficialmente tabelado"), caso em que o complemento “precificador” da norma penal em branco vigente ao tempo do fato teria ultratividade (art. 3º do CP), mesmo que sucedido por portaria majorante dos preços oficialmente tabelados9.
Contudo, tal analogia não pode ser feita no tocante ao delito do art. 89 da Lei de Licitações.
Em primeiro lugar, o revogado delito de venda ou oferta de produto ou serviço acima do preço "oficialmente tabelado" nasceu em uma situação de crise nacional, e revelou-se como forma de intervenção do governo no domínio econômico, voltada a obstar condutas mercadológicas passíveis de violar direitos humanos. Basta fazer a leitura dos pontos 12 e 13 da justificativa do anteprojeto de lei que positivou o art. 6º, I, da lei 8.137/90, de cujo teor consta expressamente que a norma era necessária ante ao "notório agravamento nos últimos tempos, diante da crise econômica, social"10. O cenário era de instabilidade e anormalidade nacional no campo concorrencial e do livre mercado.
Situação flagrantemente oposta ocorreu no tocante ao art. 89 da lei 8.666/93, uma vez que sua justificação não se baseou em nenhuma situação de anormalidade11, já que seu objetivo foi dar concretude ao disposto no art. 37 da Carta Magna. Ademais, seu complemento tal como positivado até 18/7/18 nos arts. 24, I e II, e 23, I e II, teve redação dada pela lei 9.648/98, ou seja, cerca de oito anos mais tarde que a crise dos anos 90 e cinco anos depois da inaugural Lei de Licitações, distanciando-se temporalmente daquele ano de crise (1990).
Daí ser claramente perceptível que nem o preceito primário do tipo do art. 89 da Lei de Licitações e tampouco a integração do delito pela norma complementadora advieram para vigorar em condições sociais de anormalidade, muito ao contrário, não se vincularam à duração de motivos excepcionais. Advieram para serem perene no Estado Democrático de Direito.
É um típico caso em que o complemento integra-se à norma penal de tal forma que passa a consistir na essência da proibição, e, por tal razão, sua alteração ou revogação acarreta em efetiva mudança da lei penal, retroagindo justamente por se tratar de novatio legis in mellius.
Apesar das divergências doutrinárias quanto à retroatividade da norma penal em branco heterogênea, cabe ter presente a magistral lição de CLEBER MASSON, no que formulou um método extremamente didático e que auxilia na compreensão da temática.
CLEBER MASSON12 leciona:
"O problema relativo ao assunto consiste em saber se, uma vez alterado o complemento da lei penal em branco, posteriormente à realização da conduta criminosa, e beneficiando o agente, deve operar-se a retroatividade. Não há consenso entre os estudiosos do Direito Penal. Basileu Garcia era favorável à retroatividade, em oposição à Magalhães Noronha e José Frederico Marques, entre outros. Em que pese a acirrada discussão, a questão é simples, bastando encará-la em sintonia com o art. 3º do CP. O complemento da lei penal em branco pode assumir duas faces distintas: normalidade e anormalidade. Quando o complemento revestir-se de situação de normalidade, a sua modificação favorável ao réu revela a alteração do tratamento penal dispensado ao caso – a situação que se buscava incriminar passa a ser irrelevante. Nessa caso, a retroatividade é obrigatória. Quando o complemento se inserir em um contexto de anormalidade, de excepcionalidade, a sua modificação, ainda que benéfica ao réu, não pode retroagir. Fundamenta-se essa posição na ultratividade das leis penais excepcionais, alicerçada no art. 3º do Código Penal."
É fato que nosso sistema jurídico carece de uma dogmática mais consistente em tema de direito penal intertemporal, até porque, há que se ter justificativas idôneas e bastantes em si que possam neutralizar aquilo que a Constituição Federal preconizou ser um direito fundamental e que tem aplicação imediata.
Ora, "a eficácia retroativa e a eficácia ultrativa da norma penal benéfica possuem extração constitucional (CF, art. 5º, XL), traduzindo, sob tal aspecto, inquestionável direito público subjetivo que assiste a qualquer suposto autor de infrações penais."13
Como consequência de as previsões constantes do art. 5º, XL, da CF/88, art. 2º, parágrafo único do CP, e art. 9ª, in fine, do Pacto de São José da Costa Rica, constituírem dispositivos definidores de um direito fundamental do réu, a Constituição Federal, no § 1º do art. 5º, explicitou que em tais casos a aplicação é imediata.
Eis o teor do art. 5º, §1º, da CF/88: "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". Não há margem para interpretações contrárias a uma disposição constitucional tão eloquente.
Nessa ordem de ideias, como não há dúvidas de que o complemento do art. 89 da lei 8.666/93 foi editado em situação de normalidade, fica patente que o decreto 9.412/18, ao elevar o patamar de dispensa de licitação positivado no art. 24, I e II, da Lei de Licitações, promoveu verdadeiro esvaziamento da essência da proibição, de modo que foi retirada a concepção acerca do caráter ilícito da conduta do gestor público (ou do empresário fornecedor) que realizou o ato de dispensa que orbitou abaixo do novel teto para contratações diretas.
Dentre os fundamentos que justificam a retroatividade da nova lei penal mais benéfica, estão as razões de ordem humanitária, de liberdade (favor libertatis), de justiça, de equidade, de proporcionalidade e de igualdade de tratamento que deve haver para casos semelhantes14. Humanitária, porque manter a criminalização por dispensa de licitação realizada acima do antigo teto, mas abaixo do novo, configuraria ato sancionatório manifestamente paradoxal, pois estar-se-ia punindo o agente público que buscou realizar e atender o interesse público, o coletivo, em prol do bem comum, enquanto o próprio estado estava inerte em atualizar os valores para contratações diretas. De liberdade, porque, conforme já dissemos, a ingerência do direito penal na sociedade deve ser sempre a ultima ratio. E de justiça, equidade, proporcionalidade e igualdade, porque do contrário, estar-se-ia a permitir a convivência de respostas estatais punitivas antagônicas para atos semelhantes, ferindo-se a lógica da atenuação da valoração ético-social do fato que se tornou um indiferente penal, decorrente da novel norma plasmada no decreto 9.412/18.
IV – Conclusão
Tendo em vista que a positivação do crime do art. 89 da Lei n. 8.666/93 se deu em um contexto de normalidade institucional, e que seu complemento por norma extrapenal não está atrelado a qualquer situação excepcional, a qualificação jurídica de direito fundamental constitucionalmente outorgada à retroatividade da norma penal mais benéfica torna imperativo o reconhecimento de que o Decreto n. 9.412/2018 constitui novatio legis in mellius, tratando-se, pois, de um típico caso em que o complemento integra-se à norma penal de tal forma que passa a consistir na essência da proibição, e, por tal razão, a alteração que promoveu no art. 24, I e II, da Lei n. 8.666/93 acarretou em efetiva mudança da lei penal, de modo a extinguir a punibilidade, por efeito do art. 5º, XL, da CF/88, art. 2º, parágrafo único do CP, e art. 9ª, in fine, do Pacto de São José da Costa Rica.
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1 Em que pese vozes contrárias, no STF a discussão já se encontra resolvida, no sentido de que o delito do art. 89 da Lei n. 8.666/93 é crime material, de ordem a demandar prova do dano ao erário, bem como se reputa imprescindível a demonstração de dolo específico de lesar o patrimônio público (Inq 3962/DF, rel. Min Rosa Weber, julgamento em 20.2.2018).
2 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
3 “Art. 120. Os valores fixados por esta Lei poderão ser anualmente revistos pelo Poder Executivo Federal, que os fará publicar no Diário Oficial da União, observando como limite superior a variação geral dos preços do mercado, no período”. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)
4 Masson, Cléber. Código Penal Comentado. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p. 12/13.
5 Vide art. 5º, XXXVI, da CF/88, e art. 6º da LINDB.
6 A questão foi tratada sob o enfoque do crime de contrabando e a sucessão normativa alteradora de seu complemento. No RE n. 148.687-2/PR, o Excelso Pretório concluiu que a anistia tributária implementada por decreto-lei presidencial não ofendia a constituição e tampouco inibia a retroatividade da lei penal mais benéfica, de modo que a superveniente norma autorizativa de entrada no país de determinada mercadoria até então proibida tinha o legítimo efeito de extinguir a punibilidade dos fatos preteritamente praticados.
7 PRADO. Luiz Regis. Comentários ao Código Penal: Jurisprudência e conexões lógicas com os diversos ramos do direito.11ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 36.
8 Vide: STF, ARE 792.211, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 8/5/2014; RE 719.697, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 31/11/2012.
9 Artur de Brito Gueiros Souza e Carlos Eduardo Adriano Japiassú, em sua obra “Curso de Direito Penal” (2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 112) explanam de forma elucidativa o revogado crime de venda ou oferta de produto ou serviço oficialmente tabelado, que era preconizado no art. 6º, I, da Lei n. 8.137/90. Outra lição bastante clara é dada sobre esse crime na doutrina de Guilherme de Souza Nucci no “Código Penal Comentado” (15. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 50).
10 É o que se verifica das notas 11 e 12 da justificativa legislativa do projeto de lei que desaguou na lei 8.137/90: “ 12. Concomitantemente, o projeto busca coibir a prática dos crimes de abuso de poder econômico, que tanto têm sobressaltado a sociedade brasileira, com notório agravamento nos últimos tempos, diante da crise econômica, social e de exercício de legítima autoridade que propicia, mormente no campo da atividade econômica monopolizada ou oligopolizada, o florescimento da impunidade dos agentes de tais delitos. 13. Objetivamente, cuida-se de instituir legislação protetora da economia popular e da efetiva defesa do consumidor, esmagado pela crescente audácia na prática de tais fatos anti-sociais, de outro turno cerceadora da livre concorrência e inibidora dos princípios regentes de uma economia de mercado compatível com os interesses coletivos merecedores da atuação responsável do Poder Público.”
11 Basta a leitura do projeto de lei n. 1.491/91, e da justificativa que consta ao final, acessível pelo link: clique aqui.
12 Masson, Cléber. Código Penal Comentado. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p. 49/50.
13 Vide: STF, HC 97094, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-234 DIVULG 28-11-2012 PUBLIC 29-11-2012.
14 PRADO. Luiz Regis. Comentários ao Código Penal: Jurisprudência e conexões lógicas com os diversos ramos do direito.11ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 68.
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