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O uso correto de "excelentíssimo"

Caso se debruce sobre polêmica de natureza processual civil sobre juiz e juízo, poder-se-á refletir mais sobre a aplicação do tratamento direto ao membro ou ao órgão.

23/7/2018

Um dos princípios mais caros do Estado de Direito é - sem qualquer óbice - o da impessoalidade. Para o jurista Hely Lopes Meirelles, a impessoalidade é "o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que pratique o ato para o seu fim legal, de forma impessoal." Isso implica que as relações entre o Estado e seus subordinados deve repudiar as marcas modalizantes textuais sempre que não sejam consignadoras da boa prática republicana.

 

Para que tal princípio seja talhado na perspectiva linguística estatal - gênero cujas espécies são a oficial, a jurídica, a fiscal etc - o Governo Brasileiro organizou e editou importante portaria conhecida como Manual da Presidência da República. Tal documento traz, no primeiro capítulo, o princípio da impessoalidade, aqui explicitado sob as seguintes bases:

 

 

A finalidade da língua é comunicar, quer pela fala, quer pela escrita. Para que haja comunicação, são necessários: a) alguém que comunique, b) algo a ser comunicado, e c) alguém que receba essa comunicação. No caso da redação oficial, quem comunica é sempre o Serviço Público (este ou aquele Ministério, Secretaria, Departamento, Divisão, Serviço, Seção); o que se comunica é sempre algum assunto relativo às atribuições do órgão que comunica; o destinatário dessa comunicação ou é o público, o conjunto dos cidadãos, ou outro órgão público, do Executivo ou dos outros Poderes da União.

 

Percebe-se, assim, que o tratamento impessoal que deve ser dado aos assuntos que constam das comunicações oficiais decorre:

a) da ausência de impressões individuais de quem comunica: embora se trate, por exemplo, de um expediente assinado por Chefe de determinada Seção, é sempre em nome do Serviço Público que é feita a comunicação. Obtém-se, assim, uma desejável padronização, que permite que comunicações elaboradas em diferentes setores da Administração guardem entre si certa uniformidade;

b) da impessoalidade de quem recebe a comunicação, com duas possibilidades: ela pode ser dirigida a um cidadão, sempre concebido como público, ou a outro órgão público. Nos dois casos, temos um destinatário concebido de forma homogênea e impessoal;

c) do caráter impessoal do próprio assunto tratado: se o universo temático das comunicações oficiais se restringe a questões que dizem respeito ao interesse público, é natural que não cabe qualquer tom particular ou pessoal.

 

Desta forma, não há lugar na redação oficial para impressões pessoais, como as que, por exemplo, constam de uma carta a um amigo, ou de um artigo assinado de jornal, ou mesmo de um texto literário. A redação oficial deve ser isenta da interferência da individualidade que a elabora.

Os céticos à aplicação de tal princípio ao cabeçalho da exordial vaticinam que tal lógica deve ser aplicada apenas aos expedientes oficiais da administração pública (ofício, memorando). Por óbvio, equivocam-se por não perceberem que o texto jurídico e o texto oficial em stricto senso são (como já dito) espécies do texto oficial (estatal) em lato senso. Destarte, as sugestões linguísticas indicadas especialmente do capítulo primeiro do Manual de Redação Oficial da Presidência da República podem ser aplicadas nas espécies do gênero texto oficial em lato senso.

 

Quais são, entretanto, tais normas linguísticas?

 

As principais referem-se à concordância, ao fecho, ao vocativo e ao pronome de tratamento. Sobre os dois últimos é em que há morada nossa polêmica.

 

O Manual da Presidência cita explicitamente que, no Poder Judiciário, - objeto de estudo de nosso texto, já que nos referimos gênero petição - o pronome de tratamento a ser empregado aos ministros, aos desembargadores e aos magistrados é Vossa Excelência. Dessa sorte, um advogado deve referi-se a membros do Judiciário com a impessoalidade, ratificada, por meio linguístico nessa locução pronominal de tratamento.

 

Até aí, tudo bem!

 

Entrementes, a polêmica reside no vocativo. Veja-se o que rege o Manual sobre isso:

O vocativo a ser empregado em comunicações dirigidas aos Chefes de Poder é Excelentíssimo Senhor, seguido do cargo respectivo:

 

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

 

Excelentíssimo Senhor Presidente do Congresso Nacional,

 

Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal.

 

As demais autoridades serão tratadas com o vocativo Senhor, seguido do cargo respectivo:

 

Senhor Senador,

 

Senhor Juiz,

 

Senhor Ministro,

 

Senhor Governador,

Parece notório o fato de que o Manual utiliza-se adequadamente do próprio conceito de superlativo absoluto sintético, advindo da gramática normativa da língua portuguesa. O sufixo -issimo é aglutinação adjetivo-advérbio indicadora de mais alto grau de superlativo.

 

Assim, a presidente do Supremo Tribunal Federal deve receber o pronome Vossa Excelência e o vocativo Excelentíssima, já os demais ministros, conquanto também devam receber o tratamento Vossa Excelência, dignar-se-ão a receber o vocativo Senhor ministro, Senhor relator etc. Caso contrário, argumentar-se-á vagamente sob o conceito de tradição, tão pouco rígido como o solo arenoso do deserto, segundo o intelectual francês Edgar Morin.

 

Ademais, há agravante para o raciocínio de quem defende o Excelentíssimo Senhor Juiz... ! O já revogado Código de Processo Civil de 1973 trazia, no artigo 282, que a petição inicial deveria ser dirigida ao juiz ou ao tribunal, o que foi sumariamente retificado pelo atual Código de 2016, no qual se prevê, no artigo 319, que a petição inicial deve ser dirigida ao juízo. Repito: ao juízo.

 

Caso se debruce sobre polêmica de natureza processual civil sobre juiz e juízo, poder-se-á refletir mais sobre a aplicação do tratamento direto ao membro ou ao órgão. Ocorre, não obstante, que - mesmo assim - não há falar-se em excelentíssimo, porquanto o Manual não indica. O uso seria - meramente - por tradição não corrigida.

 

Cito novamente Morin para argumentar que a reforma do pensamento indica a reforma de um povo.

 

É fundamental viver em um Estado de Direto, em que a égide da norma é o norte da esperança. O contrário tratar-se-á de pessoalidade (mesmo que tradicional).
_____________

*Carlos André Pereira Nunes é advogado e conselheiro da OAB.

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